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UTIP

Sou enfermeira pediatra. Em dezesseis anos de prática profissional em Enfermagem, minha escolha sempre foi trabalhar com crianças, porque, na minha percepção, elas demandam um tipo de atenção muito peculiar, que somente profissionais dotados de profunda sensibilidade, paciência e empatia conseguem desenvolver bem, sem prejuízo da própria

saúde emocional. É difícil definir o que é preciso para trabalhar com saúde em Pediatria, pois sensibilidade, paciência e empatia são imprescindíveis na prática de quem atua profissionalmente com seres humanos em todos os âmbitos. Mas existe algo específico nos trabalhadores de Enfermagem que escolhem a Pediatria. Talvez possamos definir como "paixão" pela criança, paixão pela simplicidade, inocência, autenticidade e vulnerabilidade da sua condição. Não há como trabalhar em Pediatria sem ter uma identificação forte ou uma paixão pela condição do ser humano enquanto criança.

Ao longo destes anos, pude atuar em diversas áreas do cuidado em saúde em Pediatria, desde a puericultura na área ambulatorial ao cuidado complexo e específico das unidades de terapia intensiva. E até chegar na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP), o foco das minhas ações, em consonância com todas as disciplinas responsáveis pelo tratamento das crianças, sempre foi a busca pelo restabelecimento da saúde, da alegria e da possibilidade de uma vida plena para elas.

Em Pediatria, tudo parece girar em torno da busca pela "cura", pois não é natural para nós, seres humanos, aceitarmos a ideia de que pessoas tão jovens precisam lidar com a doença, o sofrimento e até mesmo a morte. Em nossa cultura ocidental, a doença e o sofrimento infantil são enfrentados como ruptura da ordem natural, uma tragédia, percebida com grande pesar, levando as pessoas a buscarem razões, explicações e até mesmo ajuda e esperança no plano espiritual. Para os profissionais de saúde, a doença na criança é um desafio, encarado geralmente como uma batalha a ser travada contra a morte e a incapacidade. No entender comum, não se medem esforços e não se limitam recursos de tratamento quando se trata da saúde de uma criança.

Porém, a realidade de uma UTIP frequentemente é bastante pesada, nos forçando, muitas vezes, a reavaliar estes conceitos. Há cinco anos assumi o cargo de Enfermeira Assistencial na UTIP do HCPA. Anteriormente, em outras instituições, meu contato com

Cuidados Paliativos se restringiam à assistência de crianças com doenças oncológicas cujos tratamentos falharam e que se encontravam em situação de terminalidade em quartos isolados nas unidades de internação, com sedação contínua, em degradação progressiva dos sistemas que mantêm o organismo vivo. Na minha percepção, uma espera bastante cruel para todos - criança, família e equipe assistencial - embora inevitável, possibilitando à família a elaboração de um luto antecipado e a chance de resolução de pendências relacionadas àquela existência.

Mas na UTIP do HCPA, em face das internações e inúmeras re-internações de crianças com doenças muito graves, progressivas e incapacitantes, observando o impacto enorme que tudo isso traz às famílias em todos os âmbitos (emocional, financeiro, de relacionamentos, etc.), deparei-me com algo que até então não havia experimentado: a possibilidade de avaliar a finalidade de nossas condutas terapêuticas através das reuniões para discussão de casos com o Serviço de Bioética.

O HCPA possui um Programa de Atenção aos Problemas de Bioética desde 1993. Inicialmente, este Programa funcionava através de um Comitê de Bioética Clínica, formado por profissionais com capacitação específica em Bioética, que realizavam reuniões periódicas para discutir os casos encaminhados. Porém, com o aumento da demanda de consultorias ao longo do tempo, foi necessário criar o Serviço de Bioética, em 10 de fevereiro de 2009. Esse Serviço estabeleceu dois tipos de consultorias: as por demanda, solicitadas pelos profissionais de acordo com as necessidades assistenciais, e as pró-ativas, nas quais membros do Serviço de Bioética participam de rounds clínicos e reuniões em situação de parceria com as equipes assistenciais, podendo identificar potenciais conflitos éticos e auxiliar na resolução dos mesmos. Mas, mesmo antes da criação do Serviço de Bioética no Hospital, a UTIP já havia sido pioneira na inserção dos profissionais capacitados em bioética em seus rounds e

reuniões. Desde 1997, se construiu essa relação de parceria devido à grande potencialidade de problemas éticos que o cuidado intensivo às crianças demanda (GENRO et al., 2014).

A Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, campo de realização do presente estudo, tem desenvolvido há alguns anos uma estratégia para contemplar, em seus métodos, os Cuidados Paliativos quando pertinente. Ao contrário da estratégia do Hospital no cuidado ao adulto em fase terminal, que abrange inclusive uma unidade de internação com este enfoque e finalidade, o Setor de Pediatria não dispõe de leitos específicos para Cuidados Paliativos. Uma equipe composta por duas médicas pediatras, uma delas professora e a outra intensivista, foi criada, com o objetivo de fornecer consultoria em Cuidados Paliativos para decisões e acompanhamento dos casos encaminhados nas unidades pediátricas do Hospital.

Na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, os critérios para solicitar a consultoria em Cuidados Paliativos não são muito claros para todos os membros da equipe multidisciplinar. Em geral, os casos de pacientes encaminhados para discussão no round com a equipe da consultoria em Bioética são aqueles que complicam muito do ponto de vista de tratamento, nos quais os recursos terapêuticos disponíveis começam a não surtir o efeito esperado, ou seja, casos de esgotamento terapêutico. Também são encaminhados para discussão casos de crianças com sequela neurológica muito grave e irreversível, como os comatosos e os sem vida de relação.

Os rounds com a consultoria do Serviço de Bioética do Hospital são realizados semanalmente na UTIP, envolvendo ao menos um membro de cada especialidade da equipe multidisciplinar. O objetivo destas reuniões é trazer à tona as discussões a respeito dos casos mais complexos, especialmente aqueles nos quais ainda não há consenso por parte das equipes médicas responsáveis pelo tratamento da criança a respeito da adoção de medidas paliativas. Após esgotadas todas as dúvidas e possibilidades, e a equipe chegar num

consenso, solicita-se, então, a consultoria com a Equipe de Cuidados Paliativos, que irá agendar uma reunião com a família da criança para a primeira abordagem sobre o assunto. Assim se inicia o processo decisório sobre adoção de medidas paliativas na UTIP, respeitando estes passos. Existem situações em que esse processo não é possível, como nos casos de morte iminente, nos quais não há tempo para chamar qualquer tipo de consultoria. Nestes casos, é o intensivista quem toma a iniciativa de conversar com a família, assumindo o papel de comunicador da situação de limitação de recurso terapêutico, solicitando o apoio do enfermeiro responsável pelo paciente nesta reunião.

Após a realização da Reunião com a família, o Serviço de Cuidados Paliativos inclui a criança no Programa de Cuidados Paliativos e passa a fazer o acompanhamento do caso. Um plano de cuidados é definido junto com a equipe médica da UTIP, geralmente contendo a ordem de não-reanimação e o uso de analgésicos de acordo com as necessidades álgicas da criança para priorizar o conforto. Na medida do possível, tenta-se a alta da criança da UTIP para unidade de internação, mas na maioria das vezes isso é inviável devido à complexidade de cuidados e necessidade de sedação contínua inerentes à situação da criança.

Para a Equipe de Enfermagem a comunicação a respeito da adoção de medidas paliativas de cada paciente é realizada através da passagem de plantão a cada turno. O enfermeiro que participou das reuniões para discussão do caso e da reunião com a família para adoção de medidas paliativas tem a responsabilidade de transmitir essas informações importantes ao colega que o sucederá no turno seguinte e ao técnico de enfermagem que será responsável pelos cuidados da criança.

No entanto, mesmo com a garantia da transmissão das informações de um turno para o outro, a eficácia da comunicação esbarra na compreensão que cada membro da equipe de enfermagem tem a respeito dos conceitos da medicina paliativa. Não é raro nas conversas entre os membros da equipe pelos corredores da UTIP ouvirmos indagações, desabafos e

expressões de inconformidade com algumas condutas médicas, como por exemplo: "Por que não suspenderam todos os antibióticos se está em Cuidados Paliativos?", ou "Por que ainda estão coletando exames nesta criança?", ou ainda, "Por que esta criança, que está em Cuidados Paliativos, retornou para UTIP?". Essa incompreensão é fonte geradora de sofrimento para os profissionais de Enfermagem e demais membros da equipe, e, por isso, instigou em mim o desejo de estudar o processo de comunicação que ocorre entre família e equipe assistencial desde o momento em que se decide por propor Cuidados Paliativos a uma criança internada na UTIP.

3 CAMINHO METODOLÓGICO TRILHADO