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5.2 QUANDO A COMUNICAÇÃO É INEFETIVA

5.2.1 Reunião do dia 4 de julho de 2017

A reunião do dia 4 de julho é referente ao caso de uma adolescente de 16 anos encefalopata crônica que desenvolveu grandes deformidades de coluna ao longo dos anos e várias internações prévias por infecções respiratórias, cujos detalhes do histórico de saúde já foram comentados no capítulo 4 a título de exemplificação.

A menina era cuidada pela avó, que assumiu a sua guarda por problemas de drogadição da mãe por ocasião do nascimento da criança. A mãe, tempos depois, curou-se e passou a auxiliar a avó nos cuidados, sem, contudo, reassumir a guarda da filha.

A reunião com a família para abordar o assunto da adoção de medidas paliativas ocorreu no dia 4 de julho, após discussão do caso no round com o Serviço de Bioética, no qual se discutiu a ideia de retomar a abordagem exclusivamente paliativa. Na reunião estavam presentes membros da equipe médica da UTIP, a médica do Serviço de Medicina Paliativa Pediátrica, a enfermeira responsável pela criança e os avós, seus representantes legais. Foi difícil encontrar a família após a reunião para fazer o convite à participação na pesquisa. No dia 6 de julho estive na UTIP para convidar a avó da menina para participar do estudo, porém não havia nenhum acompanhante com ela. No dia 8 de julho quem veio visitar

a criança foi a mãe. Perguntei a ela se esteve presente na reunião do dia 4 de julho. Ela disse que não, mas que a avó havia comentado sobre a reunião com ela. Perguntei a ela o que foi dito na reunião, e ela informou que os médicos chamaram a avó para conversar porque o caso da menina estava muito grave e ela podia falecer a qualquer momento. Ela disse que ambas confiavam muito em Deus e estavam orando pela menina desde então, mas felizes por perceber que ela estava melhorando. No outro dia, quando a avó veio apenas durante uma hora para a visita, convidei-a para participar do estudo, agendando com ela a entrevista para o dia 12 de julho, 8 dias após a Reunião ter ocorrido.

Vamos à análise dos elementos da comunicação ocorridos na Reunião do dia 4 de julho de 2017. Sobre o estado de saúde e situação clínica da criança, o Profissional Médico resume bem o quadro:

Paciente com sequela de paralisia cerebral evoluindo com internação prolongada e múltiplas internações na UTIP. (Profissional Médico, 4 jul. 2017)

De fato, a criança permanecia internada desde o dia 12 de abril de 2017, quando chegou à UTIP muito grave, em choque séptico e necessitou hemodiálise por Síndrome Hemolítico Urêmica. Teve alta da UTIP para a unidade de internação em 22 de abril, retornando para UTIP em 29 de abril com novo quadro séptico, tratado até o dia 6 de maio. Posteriormente, necessitou fazer traqueostomia (TQT) por disfunção respiratória persistente e falhas de extubação. Retornou para UTIP em 30 de junho, novamente com quadro séptico e disfunção respiratória, sendo recolocada em ventilação mecânica por traqueostomia.

O Trabalhador de Enfermagem também percebe um prognóstico reservado, ainda que em vigência de tratamento para complicação aguda (no caso, a infecção respiratória), e a

necessidade de focar o tratamento no conforto. Quando questionado o que lhe foi dito sobre a criança, assim ele responde:

O prognóstico da paciente é reservado, visando conforto da paciente. Neste momento está tratando uma complicação aguda (infecção). Não investir em condutas que possam trazer sofrimento ao paciente. (Trabalhador Enfermagem 1, 4 jul. 2017)

A avó, no entanto, só consegue perceber que essa internação foi a pior de todas e que em nenhuma das anteriores a menina esteve tão grave, mas não consegue precisar elementos do estado de saúde dela:

Eu sei que não é nada boa, é bem complicada a saúde dela (...). As outras internações - ela internou em outros hospitais - mas no máximo o que ela ficava era 10 ou 15 dias, que era problema de pontada ou da sonda, quando estava dando problema, que ela ficava um pouco baixada (...) mas nunca foi tão grave assim que nem agora. Agora foi muito grave. É a primeira vez. E as coisas que ela teve agora ela nunca teve. (Familiar, 4 jul. 2017)

Segundo o Profissional Médico, foi explicado para os familiares sobre o quadro clínico da menina diante da doença crônica e foi dito que a equipe desejava iniciar limitação terapêutica e medidas de conforto para ela. Porém nenhum desses elementos aparece no discurso da avó. Quando perguntada sobre o que foi conversado com ela a respeito da menina, ela responde:

Chamaram nós ali, eu e o vô dela, sentamos ali e falaram que o estado dela era muito grave, que a gente tinha que entender com esses problemas que ela teve com uma certa idade seria pior, quanto mais ela ficava adulta seria pior e que ela poderia faltar de uma hora pra outra. Que eles estavam só preparando nós, mas que era pra eu

ficar descansada que ela era uma criança bem cuidada, bem amada, então que a minha missão aqui na Terra com ela estava perfeita. Me perguntaram se eu tinha uma crença em alguma coisa, e eu disse: eu tenho muita crença em Deus, a última palavra é de Deus, né? Que os médicos podem falar que de uma hora pra outra ela pode partir, mas quem dá a última palavra é Deus. (Familiar, 4 jul. 2017)

Nas palavras da avó, somente se vislumbra algo do que o Profissional Médico afirma ter comunicado: quando ela diz "esses problemas que ela teve com uma certa idade seria pior" possivelmente seja referente à tentativa que foi feita de informar que continuar investindo em tratamento curativo em uma criança com este tipo de problema, que só piora com a idade, talvez não fosse o mais indicado. Porém não foi isso que ela entendeu. Na sua compreensão, pelas suas palavras, aquela conversa era apenas para alertá-los a respeito da gravidade do quadro da menina e do risco de morte referente à sua condição. Porém esse não era o objetivo da reunião, até mesmo porque, naquele momento, a paciente apresentava uma situação de estabilidade hemodinâmica, sem, contudo, conseguir sair da ventilação mecânica.

A falta de compreensão dos objetivos da Reunião fica muito clara quando é perguntado para a avó sobre o que ficou decidido naquela Reunião e como será o tratamento dali para frente. Ela responde que não sabe. E não demonstra nenhuma preocupação ou inquietação quanto ao fato de não saber, porque em momento algum ela compreendeu que a Reunião objetivava fazer uma proposta de mudança de foco no tratamento da menina. Ela confia que a equipe está fazendo o melhor para tratar a sua neta salvando a sua vida, pois essa é a compreensão que ela tem da missão do hospital. Em todas as internações anteriores, mesmo de outros membros da família, é dessa maneira que ela enxerga o objetivo da ação dos profissionais de saúde: salvar a vida das pessoas enquanto Deus não chama para junto de si. Na sua concepção, Deus é soberano para decidir o momento da morte de cada pessoa, independente da ação dos profissionais de saúde. Essa concepção fica bem evidente na sua fala:

Sério, a I. é muito forte. Mas mais forte é Aquele lá de cima… E aqui é um hospital que cuidam muito bem, não tenho nada o que me queixar. (Familiar, 4 jul. 2017)

Na fala seguinte, ela demonstra o que compreendeu sobre o objetivo da Reunião ao compartilhar os assuntos conversados com a filha, mãe da paciente:

Ah, eu disse pra ela... Eu não sabia se eu falava, se eu chorava… o doutor falou com nós, preparou eu e o teu pai que de uma hora para outra a I. pode nos deixar. Daí ela disse: Ai, mãe, não fica assim Se Deus chamar ela, ela vai subir lá pra Jesus e daí quando chegar lá ela vai caminhar, ela vai falar, ela não vai sofrer e se não for a hora dela, Deus vai curar ela. (Familiar, 4 jul. 2017)

Para a avó, a Reunião era uma aviso preparatório para a possível morte da menina devido à gravidade do quadro. E isso foi um choque para ela por dois motivos: primeiro, porque não estava preparada para perdê-la; segundo, porque ela não conseguia vislumbrar no semblante da paciente aquela gravidade toda que ela entendeu nas palavras da equipe médica.

Só que eu nunca conseguia… chegava aqui e não conseguia ver ela, que nem os doutores falavam para mim, mal. Para mim, ela não estava assim… É que nem agora: eu olho para ela e parece que ela não tem nada! (Familiar, 4 jul. 2017)

Esta expressão é algo muito semelhante com o que aconteceu em relação à percepção dos familiares sobre o paciente da reunião do dia 16 de fevereiro de 2017. Os familiares estão acostumados àquela situação de morbidade dos pacientes encefalopatas. Não conseguem perceber sofrimento neles quando estão no seu quadro habitual, pois a vida deles

sempre foi assim, limitada. O conceito deles a respeito da qualidade de vida dos seus filhos é diferenciado em relação ao conceito que a equipe de saúde tem sobre a qualidade de vida destas crianças. Simões et al. (2013) afirmam que quando um indivíduo da família é diagnosticado com Paralisia Cerebral, isso acarreta modificações profundas na dinâmica e estrutura familiar. Segundo os autores, geralmente um dos membros da família assume o papel de cuidador principal, e, a partir desse momento, é obrigado a lidar com um mundo desconhecido de diferentes necessidades a serem supridas. Porém, à medida em que o tempo passa, o ajuste à nova situação ocorre de forma gradual (SIMÕES et al., 2013).

Silva et al. (2010), em uma pesquisa qualitativa a respeito do impacto na vida do cuidador de crianças com paralisia cerebral, encontraram relatos de familiares exprimindo sentimentos de aceitação, superação e alegria pela existência da criança, passado o impacto inicial da notícia a respeito do diagnóstico da condição física e das limitações da criança. E esta parece ser exatamente a relação desta família com a criança da Reunião do dia 4 de julho de 2017: ela está completamente inserida e aceita, há 16 anos, no seio da família, que se adaptou para cuidar dela, e, de certa forma, passou a viver em função dela, aceitando as limitações com tranquilidade, sem pesar. A avó, ao referir que percebe melhora na menina, reaviva a esperança de retornar com ela para a rotina com a qual está acostumada, da qual sente saudade: a menina dormindo na cama ao seu lado, as idas ao centro de reabilitação…

Agora eu estou vendo uma melhora nela. Até eu comento lá na escolinha (...) liguei hoje de manhã para lá, dei notícia dela para a professora e para as tias que são muito apegadas com ela, que estavam muito tristes porque ela estava no hospital, e estava mal mesmo. (...) Daí eu dei a notícia que ela já estava melhorzinha, que eu falei com o médico ontem e, de repente, até a semana que vem ela já ía para o quarto e não tinha tido febre. Elas ficaram muito faceiras. (Familiar, 4 jul. 2017)

Diante de uma situação dessas, para fazer a proposta de mudança de foco no tratamento, é necessário primeiro que a família entenda por que essa mudança irá beneficiar o seu familiar. Jacobson (1969) refere sobre a importância de que o contexto seja apreensível pelo receptor da mensagem para garantir a eficácia da comunicação. Me parece que, neste caso, a equipe, mesmo utilizando-se de uma linguagem (código comum a ambos) adequada ao nível sócio-cultural da família, não conseguiu fazê-los compreender o contexto do que estava sendo explicado. As palavras "Cuidados Paliativos" ou "limitação terapêutica" sequer são mencionadas pela avó durante toda a entrevista. O contexto que necessitava ser compreendido pela família é o de o quanto o sofrimento da menina crescia à medida em que o seu organismo se deteriorava pelas condições muito limitantes que a encefalopatia lhe causava. A necessidade de ventilação mecânica por traqueostomia demandaria outras adaptações enormes na vida daquela família, como conseguir o equipamento e material para poder levá-la para casa e treinamento adequado com supervisão para este tipo de cuidado especializado. E enquanto isso não fosse possível, e ela permanecesse no hospital, a menina continuaria a ser submetida a todos os procedimentos dolorosos inerentes a uma internação: punções frequentes, o risco de novas infecções, o risco de desenvolvimento de lesões de pele pela situação de imobilidade no leito, e tantos outros revezes. A equipe de saúde percebe essa situação de sofrimento com muita clareza, e se compadece dela, desejando oferecer algo diferente. Os dois Trabalhadores de Enfermagem assim se referem ao sofrimento da menina:

Percebo que ainda é um pouco difícil discutir Cuidados Paliativos e definir condutas. Por outro lado, quando se define realmente esta linha de cuidado fica mais "tranquilo" cuidar deste paciente, não vê- lo passar por sofrimentos desnecessários que não irão agregar em benefícios para a paciente. (Trabalhador Enfermagem 1, 4 jul. 2017) Concordo que o momento é de promover conforto e não expor o paciente a mais procedimentos que causem dor ou estresse para o mesmo. (Trabalhador Enfermagem 2, 4 jul. 2017)

Talvez tudo isso tenha sido dito para a família, porém seguramente não foi compreendido. E, ainda assim, ficou estabelecido limitação terapêutica e medidas de conforto para esta paciente a partir da reunião do dia 4 de julho de 2017, como se evidencia claramente nas palavras dos três membros da equipe, quando comentam sobre como será o tratamento daqui para frente:

Limitação terapêutica. Medidas de conforto. (Profissional Médico, 4 jul. 2017)

Tratamento de sintomas, visando conforto, minimizando a dor e sofrimento (procedimentos dolorosos, por exemplo). (Trabalhador Enfermagem 1, 4 jul. 2017)

Segue com antibióticos e inicia administração de morfina contínua para conforto, por enquanto não será retirado CDL (catéter duplo- lumen). (Trabalhador Enfermagem 2, 4 jul. 2017)

O Profissional Médico entrevistado percebeu a reação dos familiares como "adequada diante da notícia". Isso quer dizer que ele acredita que a família compreendeu o que foi comunicado, e que aceitou, apesar de demonstrar sofrimento. Quando relata como se sentiu em relação à Reunião, este profissional escreve:

Satisfeita em comunicar a notícia, triste pela família e seu sofrimento. (Profissional Médico, 4 jul. 2017)

Este sentimento de satisfação provavelmente está relacionado à ideia - embora equivocada - de que foi compreendido tudo o que ele comunicou, foi aceito pelos familiares, e, a partir daquele momento, um maior benefício à criança poderá ser gerado pela mudança de tratamento adotada. Tal equívoco de percepção sobre a compreensão dos familiares

poderia ter sido evitado, novamente, se o método de "validação" da comunicação, descrito por Silva (2002) estivesse sedimentado no processo de comunicação estabelecido nas reuniões. Moritz, et al. (2008) também ressaltam a importância de se avaliar os canais desse processo, identificando as principais barreiras de comunicação e pontuando elementos e estratégias de boa comunicação, bem como corrigindo equívocos. Segundos os autores, uma informação simplesmente transmitida, mas não recebida, não foi comunicada (MORITZ et

al., 2008).

Assim, na Reunião do dia 4 de julho de 2017 a família demonstrou não compreender qual é a situação clínica do paciente, a família não sabe o que ficou decidido, não compreendeu o objetivo da Reunião e o médico não conseguiu perceber corretamente as reações da família. O único ponto positivo concedido a este processo de comunicação pelo Instrumento de Verificação foi o que se refere ao compartilhamento das decisões tomadas com a equipe de enfermagem, que ocorreu adequadamente. Essa Reunião foi classificada como comunicação inefetiva, com pontuação 1 pelo instrumento de verificação.