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Contexto Empírico: a brincadeira infantil

Capítulo 4 – Objetivo e Contexto empírico.

4.2. Contexto Empírico: a brincadeira infantil

A brincadeira infantil e suas relações com o desenvolvimento cognitivo vêm sendo objeto de investigação psicológica há muitas décadas, embora a intensidade destas investigações varie conforme a situação social e política focalizada. A convergência, entretanto, refere-se à importância da brincadeira para o desenvolvimento humano.

Existem três estágios de jogo5 durante a infância: (1) o de exercício, composto pela repetição de seqüências de ações e manipulações que provocariam satisfação e prazer pelas atividades motoras; (2) o jogo simbólico, que surgiria como um produto da gênese e desenvolvimento da representação e da linguagem na criança; e (3) o estágio do jogo de

regras, que inicia a transição de uma fase individual da criança para uma fase social (Piaget,

1979; p. 39). Para Maluf (2003), a brincadeira também passa por progressivas aprendizagens e desenvolvimentos, cuja classificação vai das brincadeiras individuais às brincadeiras sociais ou coletivas.

Leontiev (1988) postula, de certa forma como Piaget e Maluf, a existência de estágios de desenvolvimento dentro das brincadeiras infantis, uma vez que admite que crianças de diferentes idades brincam das mesmas coisas, mas de formas diferentes, embora este autor não apresente estágios de desenvolvimento para a brincadeira infantil. Para Leontiev, assim como para Vygotsky (1991), a brincadeira ocupa um lugar de destaque no desenvolvimento cognitivo da criança, de forma que se torna uma atividade essencial para alguns domínios, respondendo pela ocorrência das mudanças cognitivas mais importantes na criança, confirmando a tese de que este seria um contexto privilegiado para a abordagem do processo de construção de significados.

5 Na literatura termos como brincadeira, brinquedo e jogo freqüentemente são tratados como sendo a mesma

Continuando, temos autores defendendo as características da brincadeira infantil. Vygotsky, por exemplo, diverge de algumas concepções a respeito destas características dos jogos e brincadeiras. De acordo com outros estudiosos, como Piaget por exemplo, as regras são encontradas apenas nos estágios mais avançados, para Vygotsky, no entanto, as regras sempre estão presentes nos jogos, independentemente do estágio de desenvolvimento. O que as difere são as formas como surgem, existindo regras inclusive nas situações imaginárias, ainda que de forma oculta, assim como todo jogo com regras contém, também de forma oculta, situações imaginárias.

Brougère (1995), por sua vez, defende as reflexões sobre a brincadeira, cuja característica principal seria a possibilidade da criança ser um sujeito ativo. Em concordância com outros autores, propõe que o jogo e a brincadeira incluem características de extrema relevância como a metacomunicação, as modalidades de comunicação, o reconhecimento e a troca de sinais.

Dessa maneira, podemos verificar que alguns estudiosos vêm postulando a importância e definindo várias características para a brincadeira, especialmente a de promover ambientes de aprendizagem. É comum, portanto, a concepção dos jogos e das brincadeiras como ferramentas importantes para o desenvolvimento cognitivo e como propiciadores de espaços para a construção de conhecimentos. Neste estudo, restrinjo as análises ao contexto da brincadeira infantil, buscando as relações desta com a significação ou com a inserção da criança na cultura. Neste momento, então, apresentarei uma breve discussão sobre a forma como pesquisadores, tanto da brincadeira infantil como do desenvolvimento cognitivo de maneira geral, têm olhado esta relação (brincadeira e significação), procurando justificar, agora sob outra ótica, a escolha da brincadeira infantil como contexto empírico da investigação do processo de construção de significados.

A brincadeira simbólica, também relacionada aos propósitos deste estudo, é predominante e progressiva nas idades entre os dois e os sete anos, período em que a criança começa a utilizar-se de símbolos, além dos movimentos físicos. Entre as características deste tipo de brincadeira estão a ausência (ou ocultação) de regras ou a criação destas apenas pelas crianças; primazia da imaginação e da fantasia; ausência de um objetivo definido, além do de brincar; e a possibilidade de adaptação da realidade aos desejos da criança. (Maluf, 2003). Um dos seus principais valores, entretanto, seria este “valor analógico”, permitindo à criança tratar ‘A’ como se fosse ‘B’ ou vice-versa; o que Piaget chamaria de assimilação deformante; liberando a criança para tratar a realidade como ela pode ou deseja. (Macedo, 1997).

Estudiosos de destaque na Psicologia, inclusive de diferentes orientações filosóficas como Luria (1988), Piaget (1979), Freud (1976a; apud Mrech, 2002) e Vygotsky (1991), estão envolvidos na demonstração da importância da brincadeira simbólica ou do faz-de-conta para o desenvolvimento. Bomtempo (1996), sugere que a brincadeira simbólica aumenta habilidades lingüísticas das crianças, levando a solucionar melhor os problemas e a desenvolverem o sentido da cooperação, promovendo assim o desenvolvimento cognitivo e afetivo-social da criança. A estreita relação entre brincadeira simbólica e significação é demonstrada especialmente na ênfase que a criança dá ao significado atribuído ao objeto e à ação em detrimento da ação em si (Bomtempo, 1996). Esta autora, ao discutir Vygotsky, coloca ainda as estreitas relações entre a brincadeira simbólica e o processo de significação da cultura e do mundo, afirmando que para Vygotsky o “jogo simbólico é um mecanismo comportamental que possibilita a transição de coisas como objetos de ação para coisas como objetos do pensamento”. (p. 64).

Contudo, inúmeros autores vêem o brincar, de uma forma geral, como espaço da criação cultural por excelência. Criação cultural para Brougère (2002) pode ser interpretada como construção e compartilhamento de significados. O brincar seria uma atividade com

significação social precisa e não uma dinâmica interna do indivíduo, a cultura lúdica, produto da interação social. O indivíduo, neste sentido, teria um papel ativo, seria co-construtor de interações que supõem interpretação de significações dirigidas aos objetos destas interações.

Kishimoto (2002), outra autora que há anos se dedica ao estudo dos jogos e brincadeiras infantis, investigou, por sua vez, a importância da brincadeira para a cognição humana a partir do ponto de vista de Bruner. A autora concluiu que Bruner usa os mesmos paradigmas da linguagem para investigar a brincadeira, focalizando a natureza, a origem e a evolução da competência, assim como a importância desta atividade para a aprendizagem de comportamentos sociais e o uso de ferramentas. Nestas discussões, Kishimoto afirma que “crianças que brincam aprendem a decodificar o pensamento dos parceiros por meio da metacognição, o processo de substituição de significados, típico de processos simbólicos”. (2002; p. 150). O que também alimenta a tese de que o contexto da brincadeira infantil seria o cenário no qual torna-se possível ‘capturar’ empiricamente o processo de construção de significados.

Outros estudiosos também preconizaram a estreita relação entre a brincadeira e a gênese da significação. Para Freud, segundo Mrech (2002), o brinquedo e o brincar são representantes psíquicos dos processos interiores da criança. Para Winnicott, outro autor apresentado por Mrech, os brinquedos e as brincadeiras estão entre a realidade concreta e a realidade psíquica da criança.

Em resumo, as análises advindas de diferentes investigações e escolas de pensamento destacam a brincadeira de diversas maneiras. Através destes destaques é possível apreendê-la como: (a) o espaço da criação cultural por excelência; compartilhar e ‘criar cultura’ podem ser compreendidos como ‘construir significados’; (b) produto da interação social; para haver interação é necessário construir e compartilhar significados; (c) promotora do

ao promover a construção de significados; (d) possibilitadora da transição de coisas como

objetos concretos para coisas como pensamento; afirmação que pode ser considerada como

protótipo da descrição do próprio processo de construção de significados; e (e) proporcionadora do aumento da habilidade lingüística, o que seria esperado, considerando as estreitas relações entre linguagem e construção de significados.

Pelos motivos descritos e apoio encontrado na literatura, a brincadeira infantil parece apresentar-se como contexto ideal para a observação e a descrição da emergência do processo de construção de significados; considerando ainda que é “através de seus brinquedos e brincadeiras que a criança tem a oportunidade de desenvolver um canal de comunicação, uma abertura para o diálogo com o mundo dos adultos [...]”. (Bomtempo, 1996; p. 69); possível apenas com a construção de significados, ou seja, “existe realmente uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de significações, [...]”. (Brougère, 1995; p. 30).

No próximo capítulo (Metodologia) descrevo detalhadamente os participantes, materiais e procedimentos que compuseram a presente investigação.

Capítulo 5 - Metodologia

As análises de videografias realizadas neste estudo foram divididas em duas partes: “Análises e Discussões I e II”, respectivamente, capítulos 6 e 7. Esta divisão foi baseada nos diferentes grupos de participantes, materiais utilizados e procedimentos seguidos na investigação. As características destas partes estão descritas abaixo e de acordo com a ordem de apresentação das análises e discussões subseqüentes.

Parte I:

Participantes:

No total participaram desta parte sete crianças. Três delas (“crianças principais”) foram submetidas a diferentes situações de interação, as outras compõem as díades (ou tríade) das situações de observação. As três “crianças principais”, duas meninas e um menino, com idades entre quatro anos e meio e cinco, estavam matriculadas em pré-escolas da rede particular de ensino da cidade de João Pessoa - PB. A decisão por esta faixa etária passou por algumas reflexões. Inicialmente, imaginei que o participante ideal para o empreendimento de tentar capturar o processo de construção de significados deveria encontrar-se entre um ano e meio e dois anos e meio de idade, quando a criança está começando a falar. Contudo, as inúmeras dificuldades que caracterizam a pesquisa com participantes desta idade, além do apoio encontrado em estudos de Vygotsky me autorizaram a estender a faixa etária das participantes:

(...) rejeitamos tranqüilamente que se atribua a uma criança de um ano e meio a descoberta da função simbólica da linguagem, operação intelectual consciente e sumamente complexa (...) o uso funcional do signo, mesmo o mais simples que uma palavra, aparece bem mais tarde e é totalmente

inacessível a uma criança daquela idade. (Vygotsky, 2001; p. 146; grifo nosso).

Vygotsky também cita outros teóricos do desenvolvimento (tal como Montessori) que denominam esse período (entre quatro anos e meio e cinco) como “sensível”. Explico. Na ontogênese este período seria aquele em que o organismo estaria mais sensível a certas influências, provocando mudanças em diferentes profundidades e este coincidiria com o que denominam “prazos optimais da aprendizagem”. Em seus estudos Vygotsky verificou que neste período “operamos com a natureza puramente social dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, que surgem a partir do desenvolvimento cultural da criança cuja fonte são a colaboração e a aprendizagem.” (p. 335). Neste sentido, a faixa etária selecionada seria adequada para uma primeira abordagem do processo de construção de significados.

A idade das crianças que interagiram com as “crianças principais” variaram entre três e oito anos (criança 1.1 – seis anos; criança 2.1 – sete anos; criança 3.1 – oito anos e criança 3.2 – três anos de idade). As mães das crianças principais também participaram de um momento de interação com os seus filhos ou filhas.

Materiais:

Nesta parte da investigação foram disponibilizados para as crianças vários brinquedos e materiais: caixa-casa (embalagem de mobílias em miniaturas que representava diferentes cômodos de uma casa), móveis, eletrodomésticos e utensílios em miniaturas, bonecos e bonecas de diferentes tamanhos e sexos, dinossauro, ferramentas em plástico, automóvel em forma de jipe de guerra, motocicleta, bicicleta, peças para montar, violão pequeno, um livro com texto e gravuras em preto e branco, folhas de papel em branco, caixa de giz de cera

colorido, massa de modelar colorida (figura 01), um objeto não familiar (engrenagem de descarga sanitária) (figura 02) e uma sucata (estabilizador para computadores com fios coloridos desconectados) (figura 03).

Figura 01 – A maioria dos brinquedos (inclusive em miniatura) utilizados nas brincadeiras das crianças principais.

Procedimento:

A brincadeira, eleita como contexto empírico deste estudo, é uma atividade considerada fundamental para o desenvolvimento humano e para a construção de funções mentais superiores (Piaget, Vygotsky, Leontiev, entre outros estudos mais recentes como os já citados no capítulo 4). Minick (2002), por exemplo, lembra que Vygotsky afirmou que

é por meio da atividade lúdica da criança que o pensamento e os significados são libertados de suas origens no campo perceptivo, oferecendo o fundamento para o desenvolvimento ulterior da linguagem e seu papel nas formas avançadas de pensamento e imaginação. (p. 51).

A intenção, na escolha da brincadeira, foi também evitar situações comuns em estudos de desenvolvimento, tais como a proposição de tarefas ou o acompanhamento de tarefas didáticas cotidianas em escolas. Em concordância com outros autores sobre a necessidade de estudos nos quais as “tarefas” não fossem definidas com precisão, tais como situações mais distantes da própria escola ou cotidiano escolar (Schaffer, 2002). Pretendia, além disso, nas situações de interação, possibilitar uma melhor visualização do papel desempenhado por diferentes parceiros e da influência destes em atividades posteriores da criança. Em resumo, nesta parte da observação encontramos a distribuição de interações entre as ‘crianças principais’ e outros participantes descritas no quadro abaixo (Quadro 01):

Quadro 01 – Distribuição das situações observadas na primeira parte do estudo

Criança 1 (Cr1)

[menina- 4a10m] (a) brincando com a mãe e (b) brincando com um par [outra menina].

Criança 2 (Cr2)

[menino- 4a7m] (a) brincando com a mãe, (b) brincando sozinho e (c) brincando com um irmão mais velho.

Criança 3 (Cr3)

[menina- 4a10m] (a) brincando sozinha, (b) brincando com a mãe e (c) brincando com outras duas crianças, uma mais velha [menino] e outra mais nova [menina].

Cada momento (a, b e c) durou em média 18 minutos, aconteceu em seqüência, nas residências das crianças (crianças 2 e 3) ou na sua casa-escola (criança 1)6. Solicitou-se às crianças apenas que brincassem com o que desejassem entre os brinquedos disponibilizados (“pode brincar a vontade, com o que você quiser”). Às mães foram explicados os diferentes momentos para que elas estivessem presentes em um (interação da criança principal com a mãe), ausente no outro (criança principal brincando sozinha) e trouxesse a outra criança no terceiro (criança principal brincando com um par – díade). No momento em que a mãe estava presente foi dito que brincasse a vontade com o seu filho ou filha.

Parte II

Participantes:

Nesta Segunda parte participaram ao todo oito crianças, formando quatro díades de idades diferentes das crianças principais, submetidas também a diferentes procedimentos distribuídos da seguinte maneira:

• Criança mais nova (três anos de idade) praticamente com os mesmos materiais e procedimentos da parte I. Inicialmente a criança brincou sozinha, por aproximadamente 15 minutos e depois com um par (aproximadamente mais 13 minutos).

• Segunda díade – duas crianças com seis anos de idade e cursando a primeira série.

6 As brincadeiras da criança 1 foram videografadas na escola onde ela estuda e que também pertence a mãe dela.

Materiais: objetos estranhos (engrenagem de descarga sanitária e sucata de

estabilizador de computador), folha de papel em branco, uma caixa de giz de cera coloridos, livro com texto e gravuras em preto e branco, uma caixa de massa de modelar colorida e um texto relacionado à engrenagem de descarga sanitária (anexo 17), ferramentas de plástico, três jogos com peças de encaixe/montar.

Procedimento: As crianças foram solicitadas a brincar com o que desejassem,

conversar entre elas e perguntar se precisassem. Inicialmente brincavam a vontade (15 minutos), depois chamava-se atenção para o texto sobre o “gradêgo”.

• Terceira díade – crianças com seis e sete anos de idade, cursando a primeira série.

• Quarta díade – crianças com sete anos de idade, cursando a segunda série, e nove anos, cursando a terceira série).

Materiais: Apenas o texto sobre o gradêgo e posteriormente o próprio objeto

(engrenagem de descarga sanitária).

Procedimento: Foram solicitadas a ler o texto, olhando as gravuras e conversando a

respeito. A observadora tentava ajudá-las questionando e confrontando suas respostas com as informações do referido texto.

Inicialmente as crianças liam o texto juntas, depois com a observadora que os questionava. Por último, era apresentado o “gradêgo”, objeto da gravura (engrenagem da descarga sanitária).

7 Dando à engrenagem de descarga sanitária o nome de “gradêgo” e contendo uma fotografia desta junto a um

Todas as videografias desta segunda parte foram realizadas na escola das crianças, em diferentes momentos e numa sala onde havia apenas um armário de ferro e uma prateleira de madeira.

A intenção ao colocar diferentes faixas etárias foi promover, mais uma vez, a oportunidade de realizar confrontos entre os achados nas diferentes idades. O objetivo, portanto, foi proporcionar mais situações diferenciadas possíveis para este momento, de modo a enriquecer nossas conclusões.