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2. ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA FRANCESA: AS SOCIEDADES

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO E A ESTRUTURA FUNDIÁRIA

O meio rural na Europa durante a Idade Média predominava o modo de produção feudal que estabelecia as regras de produção e as relações sociais se assentavam no trabalho servil. Com a dissolução desse sistema ocorreu à formação de sistemas agrários diferenciados em toda a Europa, construídos a partir das especificidades de cada país, mas especialmente determinado pelo jogo de forças estabelecido entre camponeses e senhores feudal no cercamento das terras (ANTONELLO; DINIZ, 2001). No que refere à França, predominou a base do que Servolin (1989 apud ANTONELLO; DINIZ, 2001) denominou de “modelo camponês12”, o qual se desenvolveu em pequenas porções de terra e alicerçado no trabalho familiar.

A revolução francesa, em 1789, foi o processo que consolidou o fim o servilismo feudal ainda presente no final do século XVII. No

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De acordo com estudos clássicos sobre o campesinato, algumas características representam o modo de vida camponês: i) autonomia relativa em relação a sociedade como um todo; ii) importância estrutural do grupo doméstico; iii) um sistema econômico de autarquia relativa; iv) uma sociedade de inter-relacionamentos; v) autoconsumo; vi) atividade produtiva como modo de vida e não como negócio; vii) o trabalho se concentra na família ou com poucos servidores. Em suma, o campesinato tradicional está alicerçado na relação propriedade- família- trabalho (ABRAMOVAY, 1992; WANDERLEY, 1999; MENDRAS, 1986; LAMARCHE, 1993).

entanto, a base dessa revolução foi o ideal econômico da burguesia emergente. “Com o decorrer do tempo, a Revolução Francesa mantém as unidades camponesas não mais dependentes de uma camada senhorial, mas da própria sociedade urbana” (LANDIN; MONTEIRO, 1986, p. 38).

Após a Primeira Guerra Mundial o Estado passou a intervir na transformação do espaço rural a partir da criação de políticas de modernização da agricultura. O que Antonello e Diniz (2001) denominam de Política Agrícola Moderna (1919-1929). Essa política agrícola cria as bases nas quais será consolidada a agricultura francesa moderna.

As bases dessa política foram lançadas no período entre 1919-1924, com a criação das “Chambres d’Agriculture” (Câmaras da Agricultura), destinadas a desempenharem o papel de representantes oficiais da agricultura em cada departamento e, particularmente, de executar a política do Estado. Assim, atuam sobre o plano local, tanto como órgão de poder como de execução de trabalho técnico, principalmente, no tocante ao desenvolvimento tecnológico (ANTONELLO; DINIZ, 2001, p. 55).

De acordo com Hespanhol (2007), o Estado tenta institucionalizar as representações do meio rural, em nível departamental, por meio da criação das Câmaras de Agricultura em 1924. Essa instituição é reconhecida como uma instituição inovadora e moderna, já que a representação das organizações profissionais, em especial o sindicalismo agrícola, está prevista e que o direito de voto é reconhecido aos assalariados agrícolas e às mulheres.

Entretanto, é após a Segunda Guerra Mundial que as principais ações são realizadas. Segundo Antonello e Diniz (2001) a estrutura fundiária francesa estava desenhada a partir de um número expressivo de micro parcelas, inferiores a 5 ha, descontínuas que, muitas vezes, se limitavam umas com as outras e se entrecruzavam por todos os lados, configurando um caos fundiário e social.

Roux e Roinon (2010) afirmam que o quadro do Pós Segunda Guerra era de uma produção agrícola incapaz de garantir a segurança alimentar da população, apesar desse segmento incorporar mais de 7,5 milhões de pessoas, aproximadamente um terço da população economicamente ativa. A escassez de alimentos era tão grave que um

regime de racionamento foi mantido até 1949. O governo Francês, aponta a solução do problema na superação do atraso técnico e inicia o processo de modernização da agricultura francesa.

Consciente do atraso técnico da agricultura, o governo fomenta um vigoroso relance da produção, não somente ajudando os agricultores a adquirir meios de produção (motorização, fertilizantes e equipamentos) e a melhorar sua produtividade, mas igualmente empreendendo reformas de estrutura (pesquisa agronômica, formação e intervenção no mercado fundiário). Com milhares de pequenos agricultores tendo uma forte aversão ao risco, era necessário garantir o escoamento da produção a fim de incitar investimentos visando o aumento da produtividade. Desta maneira, a política protecionista do pré‐guerra não foi abandonada, ao contrário, reforçada pela implantação de mecanismos de regulação dos mercados e das importações (ROUX; ROINON, 2010 p.7). O propósito de modificar esse cenário ocorre em consonância com os processos de urbanização e de reconstrução do país. Uma das consequências foi um expressivo esvaziamento do meio rural francês. Em 1936, 47% da população francesa era residente no meio rural, já em 1999 o índice diminuiu pela metade com 24% vivendo no meio rural. O Censo de 2007 aponta que apenas 22,5% da população residiam na área rural. A diminuição da população residente rural está associada às mudanças estruturais realizadas no Pós Guerra, que deslocou grande parte da população rural, em especial os mais velhos, para as cidades (INSEE, 2000, 2010). A população ativa na agricultura, consequentemente, também diminuiu consideravelmente. De acordo com a Tabela 01, no início do século XX 43,1% da população garantia seu sustento da atividade agrícola. Entretanto, esse percentual começa a cair depois da Primeira Guerra Mundial, atingindo a marca de cerca de 36%. Após a Segunda Guerra Mundial que os números passam a diminuir vertiginosamente, com 26,7% em 1954 e 13% da população vivendo da agricultura nas zonas rurais, em 1970. Esse índice chega a 4,8% em 1993.

Tabela 01: Evolução da população agrícola na França entre 1906e 1993.

Ano População ativa na Agricultura

(%) 1906 43,1 1921 42,5 1931 36,3 1936 36,9 1946 36,4 1954 26,7 1962 20,1 1970 13,1 1973 11,8 1977 8,9 1980 8,0 1983 7,1 1985 6,6 1990 5,2* 1993 4,8**

Fonte: Antonello; Diniz (2001), apud. SERVOLIN (1989); * ROY (1993); ** HERVIEU (1996).

De acordo com Boinon (2011) desenvolver a tecnologia, competitividade e corrigir a fragmentação fundiária excessiva em pequenas propriedades rurais pouco produtivas foram os objetivos do arsenal jurídico implantado ao longo dos 20 anos subsequentes à Segunda Guerra. Esse processo advém de uma forte demanda por parte do Centro Nacional de Jovens Agricultores (CNJA), que reivindicava o processo de modernização agrícola como projeto político para a agricultura francesa, considerada atrasada e precária (CAZELLA; SENCEBÉ; 2012).

O forte envolvimento dos jovens se deve a um sentimento de insatisfação. De acordo com Buchou et al. (1999), até então, os jovens que viviam no meio rural assumiam um papel social passivo, senão inexistente, pois não havia outro recurso a não ser esperar a herança ou que seus parentes se tornassem incapazes, para assumir o comando dos estabelecimentos familiares, situação muito diferente dos jovens que viviam nas cidades.

Na década de 50, os movimentos ligados à juventude rural ganham força e buscam sua identidade, com destaque para a ação da Jeunesse Agricole Catholique (JAC). Mas era evidente para esses jovens que um novo projeto para a sucessão não ocorreria via o sindicato majoritário, a Fédération Nationele des Syndicats d’Expoitants Agricoles (FNSEA), o qual, em 1958, era constituída por 70% dos seus membros com idade acima de 50 anos. Frente a essa situação, esses jovens optaram pela constituição de um sindicato autônomo, que mais tarde se filiou ao FNSEA, o CNJA (BUCHOU et al., 1999). Esse movimento fez com que o CNJA conseguisse derrubar as bases conservadoras da FNSEA, que centrava o debate na política de preços. Integrando ao debate as demandas sobre o tema da estrutura agrícola, modernização e profissionalização (ABRAMOVAY, 1999).

De acordo com Hervieu (1997, apud HESPANHOL, 2007), o mundo rural francês passa a ter quatro pilares representativos na nova estrutura institucional montada no Pós Segunda Guerra: as duas federações sindicais (FNSEA e o CNJA), uma confederação de organizações econômicas de crédito mútuo, a Confederação Nacional da Mutualidade e da Cooperação e do Crédito Agrícola (CNMCCA) e um estabelecimento público representado pela Assembleia Permanente das Câmaras de Agricultura (APCA).

As propostas de modernização da CNJA preconizaram o desenvolvimento de uma racionalidade econômica mais apurada, consequentemente, à adoção de posicionamentos de natureza liberais. Mas isso não significou a negação da intervenção estatal, ao contrário, à proposta era que o Estado junto com os sindicatos conduzisse as transformações (ABRAMOVAY, 1999). Antier e Marques (2011) reforçam que essa foi umas das poucas políticas de modernização da agricultura que contou com a participação ativa da base social interessada.

Assim, foram então instituídas, em 1960, as denominadas “Políticas de Estrutura” que, segundo Merlet (2002a), são o conjunto de políticas agrícolas que buscam a modernização da agricultura e a adequação do acesso à terra e às novas exigências técnicas e sociais, conservando um sistema de exploração agrícola de base familiar. Essas ações tinham como proposta uma completa reorganização das estruturas agrícolas a começar pela malha fundiária que consistiam em três estratégias principais: i) aposentadoria vitalícia para agricultores mais idosos como estímulo para liberação das terras; ii) criação das SAFER para regular o mercado de propriedades agrícolas; iii) proibir um estabelecimento que já tem terra suficiente a adquirir mais, a fim de

evitar excessiva concentração de terras (BOINON, 2011; BOUCHOU et al., 1999).

De acordo com Remy (2004, p.09) essa legislação consistiu na escolha de um tipo ideal de estabelecimento agrícola, em detrimento de outros: “[...] selecionaram os agricultores mais jovens para assumir unidades de produção modernas, especializadas e intensivas, eliminando-se a massa dos camponeses muito idosos e pequenos sem condições para levar adiante a missão modernizadora.” Os jovens que possuíam unidades muito pequenas e não conseguiam aumentar suas terras eram convidados a deixar a agricultura e ingressar nas filas de empregos das indústrias, que se encontrava em escassez de mão de obra..

Desse modo, foi instituída uma “superfície mínima de instalação”, a SMI, definida para cada pequena região agrícola, abaixo da qual não se podia esperar benefícios de subvenções e empréstimos bonificados. Aqueles que não dispunham dessa superfície eram convidados a antecipar sua aposentadoria, caso fossem idosos, graças à instauração de uma indenização vitalícia por abdicar da agricultura (IVD). Esta indenização era reservada aos que arrendassem ou vendessem suas terras a agricultores que se instalavam ou cresciam, atingindo a superfície mínima exigida e, assim, chegando a constituir os estabelecimentos viáveis (RÉMY, 2004, p. 10).

Em suma, o estabelecimento agrícola desejado era de caráter familiar de porte médio, que empregasse dois membros da família em tempo integral e que garantisse a reprodução da família sem precisar recorrer a outras atividades e produzir uma renda comparável a outras camadas sociais médias, corrigindo a disparidade econômica e social da atividade agrícola. Essas intervenções foram financiadas pelo Fundo de Ação Social para o Ordenamento das Estruturas Agrícolas e intermediadas pelas SAFER.

2.3 O papel das SAFER no processo de modernização agrícola