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1. GOVERNANÇA DA TERRA E (RE)TERRITORIALIZAÇÃO

1.1 GOVERNANÇA: ENFOQUES TEÓRICOS E PERSPECTIVAS

de uma construção complexa, cujas discussões estão sujeitas a variações conceituais e semânticas nos diferentes campos do conhecimento. As análises coorporativas se debruçaram intensamente sobre esse tema. Contudo, nesta dissertação foi enfatizada a maneira como as ciências sociais e políticas têm tratado o assunto.

Andion (2007) afirma que o termo governança não se caracteriza como novidade, uma vez que sua utilização remonta aos séculos XVII e XVIII período em que era entendido como sinônimo de governo. De acordo, com Dallabrida (2011a), o conceito de governança foi retomado, com outros significados e sem grande repercussão, pelas pesquisas sobre o mundo empresarial na década de 1930. O debate se intensificou na década de 1970 na busca de coordenações eficazes de dispositivos operacionais das empresas. Em 1975, o termo é resignificado e se atém à discussão sobre o poder e as organizações. A partir de então, passa a ser associado aos problemas relacionados à governabilidade das democracias ocidentais, em especial, na Europa Ocidental, Japão e

Estados Unidos. Isso se deve à capacidade limitada de resposta das instituições políticas desses países frente à crescente e diversificada demanda do contexto democrático do capitalismo avançado. Esse foi o objeto de análise que aprofundou o “debate em ciências políticas em torno do Estado e centrou-se em suas falhas diante das funções associadas à regulação, ao bem-estar e ao desenvolvimento social” (MILANI; SOLINÍS, 2002, p. 271).

No entanto, o termo governance ganha grande repercussão quando adotado pelo Banco Mundial, em 1992, fazendo referência a assuntos públicos no contexto da imposição de políticas neoliberais (MERLET, 2006). Nesse contexto, a discussão sobre a governança está associada ao ajuste das políticas públicas ao novo modelo democrático. Santos (1997) afirma que essas construções sobre governança surgem paralelamente à tese que acreditava que a crise de governabilidade estava alicerçada no excesso de democracia e a “solução estaria em um Estado forte, sugerindo-se o predomínio do executivo no processo decisório e o isolamento burocrático como forma de controlar a participação social e garantir a eficácia e racionalidade das políticas públicas” (SANTOS, 1997, p. 3).

É importante ressaltar que o tema da governança surge no bojo da análise política sobre governabilidade frente ao contexto democrático. De acordo com Hass (2006), essas duas dimensões tendem a ser confundidas. Melo (1995), afirma que a noção de governabilidade se distingue de governança, pois a primeira se refere ao exercício da autoridade política e suas condições e a segunda qualifica a forma de aplicação dessa autoridade. Ou seja, a governabilidade tem uma expressão fundamentalmente estatal e está vinculada ao sistema político- institucional, representa um conjunto de elementos para o exercício do governo. Nesse sentido, a sociedade civil é seu alvo e não sujeito (AGUILAR, 2010). Já a governança não se restringe aos aspectos gerenciais e administrativos e nem à eficácia do Estado, pois opera em um plano mais abrangente, englobando diversos segmentos da sociedade (GONÇALVES, 2005; DINIZ, 1997).

Os trabalhos realizados pelo Banco Mundial associam governança à noção de bom governo (good government) e boa governança (good governance) (SANTOS, 1997). Dessa forma, o Banco Mundial (1992, p. 1, tradução nossa) definiu governança da seguinte maneira: “é o exercício da autoridade, controle, gerencia e poder do governo”, sendo interpretada como a forma com que o poder é exercido por um país na administração dos recursos sociais e econômicos. Essa capacidade governativa está intimamente associada à concepção de “boa

governança”, que foi definida como: "[boa] governança é fundamental para a criação e manutenção de um ambiente que favoreça o desenvolvimento eqüitativo e é na componente essencial para políticas econômicas sólidas" (BANCO MUNDIAL, 1992, p. 1, tradução nossa).

Dessa forma, o termo passa a ser relacionado à ideia de um estilo ótimo de gestão pública, baseado na eficiência e eficácia na aplicação dos recursos, na transparência e no accountability9.“Com isso, um sentido mais prescritivo, ligado à ideia de reestruturação do Estado e na redução e transferência de responsabilidade para a esfera privada, passa a acompanhar o debate sobre governança” (ANDION, 2007, p. 76). Esse quadro provocou muitos debates referentes à sua capacidade de promover a "boa governança", pois na maioria das vezes tinha uma tendência a estimular processos de enfraquecimento dos Estados e suas funções redistributivas, dada sua subordinação à lógica da política econômica liberal (MERLET, 2006).

Calame (2003) lança uma crítica importante sobre o tema, argumentando que a visão difundida pelo Banco Mundial tem um caráter reducionista ao entendê-la apenas como a instituição do bom governo. Para esse autor, essa formulação corresponde a uma visão administrativa da sociedade e propaga a ilusão que existe uma receita de good governance, que pode ser aplicada em diferentes contextos, calcada em um modelo indissociável do economicismo dominante.

Diante das críticas relacionadas à abordagem do Banco Mundial, uma gama de novas concepções e ressignificações sobre o conceito de governança – seu significado, aplicação e efeitos – passaram a ser construídas. Para Ferrão (2010), o tema da governança passa então a se relacionar intimamente com questões vinculadas à perda de vigor do modelo moderno e racionalista de Estado e a necessidade de superar a sua estagnação. Esse mesmo autor destaca que o novo alicerce da

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Termo em inglês, sem tradução para a língua portuguesa, que remete à obrigação de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados. Um termo em português seria responsabilização, precisamente significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar suas atividades. Não se trata apenas de relatar os termos quantitativos das suas ações, mas de auto avaliar o trabalho, de tornar pública suas atividades e seus resultados (ANDION, 2007).

abordagem sobre governança está associado a quatro frentes prioritárias de debate, indissociáveis entre si.

Em primeiro lugar está à questão da reforma administrativa do Estado, debate iniciado na década de 1980, devido as maiores exigência e aprofundamento da democracia e maior proximidade dos cidadãos da ação pública. Nesse momento, vários países optaram por soluções vinculadas aos processos de desconcentração e descentralização administrativa, centradas na constituição de diversos níveis administrativos, proporcionando uma nova repartição de atribuições entre os níveis nacional, regional, sub-regional, local e territorial.

A segunda frente refere-se à reformulação do papel do Estado, o que indica a abertura do debate sobre a transição entre um modelo de Estado interventor e executor, que atua de maneira verticalizada para uma nova concepção sobre papel do Estado centrado em intervenções de natureza reguladora, que valoriza as relações estabelecidas com os distintos atores e na organização de redes. Esse processo se convencionou chamar de transição da ótica do governo para a da governança. Isso favorece a discussão que induz fronteiras cada vez mais tênues entre entidades públicas, privadas e terceiro setor, multiplicando as parcerias (público-público e público-privado) e a contratualização entre o Estado e outras entidades.

A terceira questão refere-se à democracia participativa e deliberativa processo que deriva de uma maior estruturação de alguns setores da sociedade civil, em especial, a multiplicação de organizações não governamentais e pressupõe maiores demandas para as construções de agendas participativas. Essa frente está fortemente imbricada ao surgimento de metodologias mais descentralizadas de mobilização, diálogo, concertação de interesses e de decisão, a exemplo do planejamento estratégico e orçamento participativo. Por fim, o debate refere-se à “europeização” dos processos de decisão e a problemática da governança ganha centralidade na construção do projeto da União Europeia, sobretudo nas questões relacionadas ao território e governança multiníveis.

Essa discussão sobre a renovação do modelo de Estado na ótica da transição para processos mais permissivos do ponto de vista da participação nas instâncias decisórias possibilita a construção de diferentes nuances até alcançar um modelo de governança que contemple de forma ampla os diferentes segmentos da sociedade e as formas de repartição de poder entre os mesmos. Na maioria das vezes, esses espaços são profundamente marcados por conflitos e interesses particulares. Rover (2007, 2011) faz um esforço importante em

estabelecer dois perfis de governança baseado no grau de autonomia dos diferentes atores sociais. A opção do autor foi construir dois “tipos ideais” de governança: a civil e a cívica. A governança civil ocorre quando os interesses setoriais e privados prevalecem em detrimento do sentido público e da universalidade da gestão política.

Numa governança civil os atores sociais mais capazes têm espaço para sua autoafirmação e disputam posições de poder sem haver uma institucionalidade pública que privilegie o interesse público. Em outras palavras, há limitadas normas, procedimentos e formatos organizativos que privilegiem a distribuição universalista e inclusiva de bens da sociedade, frente aos interesses dos atores com mais poder e organização. Nos casos de uma governança civil, o indivíduo (pessoa ou organização privada) se coloca como anterior ao interesse público, tendo a autonomia dos atores privados precedência sobre a autonomia das instituições públicas (ROVER, 2011, p. 135).

A governança será entendida como cívica quando indicar maiores possibilidades de autonomia política ou pública, ampliando a possibilidade de participação e representação dos diferentes atores e grupos sociais.

[...] a governança pode apresentar um perfil cívico, marcado pela precedência da autonomia pública frente à autonomia privada, tendo como fundamento a valorização dos interesses e do espaço público como forma de legitimação. Num contexto no qual prevalecesse uma governança cívica, a legitimação dos processos de decisão se constituiria através de uma autodeterminação coletiva do fórum de governança, na qual os espaços e as políticas efetivamente públicas teriam prevalência aos interesses privados (ROVER, 2011, p. 136).

No entanto essas tipologias são interessantes para compreender as maneiras como a governança pode ser exercida. Mas na prática não encontramos essa lógica dualista as dinâmicas civil e cívica ocorrem concomitantemente nos mesmos espaços de participação. A predominância de um sobre o outro está alicerçada na maneira como as relações de poder impactam nos espaços e demandas públicas.

Em suma, pode se afirmar que a governança está relacionada de forma estrutural ao processo de repartição de poder entre governadores e governados, à legitimidade do espaço público em constituição, aos processos de negociação entre os atores sociais e à necessidade de descentralização político-administrativa. Como um “processo complexo de tomada de decisão que antecipa e ultrapassa o governo” (MILANI; SOLINÍS, 2002, p. 273). Nesse sentido, a governança deve dar conta de maneira mais abrangente da multiplicidade de atores e também abarcar o conceito de regulação e descentralização. Pois é aí que reside a inovação do conceito de governança, não está mais unicamente vinculado à ação do Estado. Trata-se da regulação do Governo e formas de condução e organização da sociedade (instituições e atores). “Governança transcende com isso o conceito tradicional estatal e remete a formas adicionais de condução social” (SCHNEIDER, 2005, p. 34).

Ao introduzir a concepção de repartição de poder, descentralização e regulação, alguns autores partiram dos termos adotado pelo Banco Mundial para promover uma nova discussão e ampliar a concepção de boa governança.

Se definirmos a governança como a maneira pela qual a sociedade administra os interesses gerais e o bem comum, bem como os interesses particulares de cada um de seus membros, a boa governança é aquela que assegura o melhor equilíbrio possível entre interesses gerais / bens comuns e interesses particulares numa relação de equidade (MERLET; THIRION; GARCES, 2006, P. 18)

Seguindo essa concepção, os mesmos autores elencam dois conceitos essenciais que podem ajudar a assegurar essa relação de equidade. O primeiro se refere à noção de direito, que exprime e esclarece as bases universais dos interesses de cada indivíduo. Ou seja, todo grupo humano tem certo número de direitos que a sociedade deve assegurar. O segundo conceito abarca a concepção de democracia para

além da delegação de poderes pelos sufrágios, mas sim como a possibilidade dos diferentes grupos exprimirem seus interesses (individuais e coletivos) e exercerem seus direitos. A democracia é fundamental para a governança por sua capacidade de oferecer a possibilidade de todos os grupos expressarem seus anseios e por sua capacidade de introduzir algum tipo de consenso em torno da proposta de equidade. Cabe ressaltar que é um processo que, com frequência, resulta em uma relação de força a favor daqueles que estão mais bem colocados no jogo político (MERLET, THIRION; GARCES, 2006).

Em suma, a governança perpassa as dimensões de ampliação da participação, da responsabilização, regulação, controle e concertação social e accountability. Se assim entendida, a governança permite definir princípios comuns adequados a diferentes situações, mas torna impossível que se crie uma receita universal, que possa ser aplicada a todas as circunstâncias (CALAME, 2003). Isso se deve ao fato da sua capacidade de implementação se estabelecer no jogo de forças e na capacidade de apropriação do poder pelos atores envolvidos.

No âmbito desta dissertação optamos por aprofundar a análise do conceito de governança a partir da sua associação à noção de território, uma abordagem que objetiva resignificar o conceito governança, com o objetivo de superar a formulação dos organismos internacionais, baseado na proposta de relativização do papel do Estado. Essa abordagem considera “[...] as articulações e interdependências entre atores sociais na definição de formas de coordenação horizontal e vertical da ação pública e regulação dos processos econômicos e sociais territoriais” (PIRES et al., 2011, p. 36).

Dessa forma, os conceitos de governança territorial possibilitam compreender as estratégias dos atores para resolver de forma coletiva os seus problemas locais e regionais como a gestão dos recursos hídricos, questões produtivas relacionadas à aglomeração de uma atividade específica, questões ambientais e, no caso desta pesquisa, os problemas fundiários, especialmente, o acesso à terra. Isto é, gerir questões relacionadas ao seu contexto territorial, podendo ser um município, uma rede de municípios, uma região e/ou um território culturalmente delimitado, “onde os atores locais relacionam-se e concebem instituições que os representem, além do próprio ambiente institucional pré-existente” (PIRES et al., 2011, p. 38).