• Nenhum resultado encontrado

1. GOVERNANÇA DA TERRA E (RE)TERRITORIALIZAÇÃO

1.3 DESCENTRALIZAÇÃO: ASPECTOS CONCEITUAIS,

De acordo com Guimarães (2002) e Dallabrida (2011b), as contribuições sobre descentralização são recorrentes e de longa data. Ao longo da história ocorreram sucessivos processos de centralização e de descentralização política, a exemplo do centralismo romano e da descentralização feudal. Na América Latina, o centralismo político aconteceu primeiro nos períodos coloniais e depois os processos de independência podem ser considerados como ações de descentralização. Já o estabelecimento das nações exigiu o centralismo nacional, a partir da dominação, hegemonia e consensos entre as oligarquias locais. Com seus altos e baixos, o impulso centralista prevaleceu no continente latino-americano, com maior expressão principalmente no século XX (FINOT, 2001; GUIMARÃES, 2002).

Para Finot (2001), o paradigma centralista, em especial na América Latina, consolidou uma forte cultura paternalista e clientelista. Os processos de descentralização surgem nos ajustes democráticos dos últimos 20 anos. Matos Filho (2002) sugere que esse novo paradigma,

pode tender a reforçar as estruturas de dominação já existentes. Atualmente, a temática da descentralização ocupa lugar importante nas agendas de discussão de organismos internacionais, governos, academia, partidos políticos e sociedade civil.

Guimarães (2002) faz um esforço de elencar um conjunto de tipologias recorrentes na literatura sobre o tema, construídas a partir de diferentes vertentes teóricas sobre a descentralização e, consequentemente, com diferentes objetivos que se pretende alcançar com a sua implementação. Esses “tipos” são divididos em dois níveis: i) para qual instância a tomada de decisão é transferida; ii) modalidades apresentadas para a descentralização.

No primeiro nível são definidas quatro definições: i) desconcentração é a transferência de responsabilidades administrativas dentro da instituição; ii) a delegação corresponde ao processo de transferência de atribuições gerenciais da estrutura central para instituições externas que, no caso do Estado, pode ser a atribuição de responsabilidades para organizações não governamentais e/ou filantrópicas; iii) a devolução pode ser “considerada como transferência de responsabilidade fiscal e administrativa para as unidades subnacionais de governo ou para autoridade regional ou local dentro de unidades administrativas” (GUIMARÃES, 2002, p. 06); iv) a privatização se refere à transferência de responsabilidades públicas para a iniciativa privada.

O segundo nível, o das modalidades apresentadas para descentralização, também é composto por quatro categorias: i) funcional está relacionado ao processo pelo qual são transferidas ao segmento descentralizado apenas competências específicas; ii) a delimitada se refere a apenas um setor de atividade; iii) o territorial remete ao poder decisório distribuído às instâncias definidas e constituídas no âmbito de um território; iv) a política é “considerada como a forma máxima da descentralização, quando o corpo descentralizado é gerado a partir de processos eleitorais e se pode reconhecer uma estrutura administrativa descentralizada” (GUIMARÃES, 2002, p. 06).

Apesar de estas tipologias terem sido objeto de muita crítica e consideradas apenas um exercício de taxionomia, foram amplamente utilizadas e difundidas na literatura sobre o tema. Mas deve-se compreender a descentralização como um processo dinâmico e em constante transformação, que engloba a transferência de poder, portanto, imbuído de uma grande capacidade geradora de conflitos, aspectos difíceis de adequar em tipologias (GUIMARÃES, 2002).

No contexto desta dissertação, a descentralização é compreendida não apenas como a construção de novos níveis administrativos, mas sim como um processo político de apropriação e transferência de poder. De acordo com Montecinos (2005) é um processo de transferência de poder político, fiscal e administrativo, desde o nível central do governo até os níveis subnacionais, incluindo as esferas da sociedade civil organizada. Esse modelo está imbricado ao processo de reconfiguração do Estado e consolidar um caminho mais democrático para as sociedades (MONTECINOS, 2005). Ou seja, um processo político associado a uma nova forma de governar.

Apesar do primeiro nível das tipologias abarcar o processo de desconcentração, dentro do marco conceitual adotado, é importante esclarecer melhor a distinção conceitual entre os processos de desconcentração e descentralização, pois essas duas dimensões são comumente confundidas. A primeira diz respeito ao tratamento de questões administrativas e a segunda a processos de transferência de poder e autonomia.

Descentralização implica redistribuição do poder, uma transferência na alocação das decisões. É, portanto, mexer nos interesses dos grupos de poder, enquanto a desconcentração é a delegação de competência sem deslocamento do poder decisório. No contraste de ambos os termos é preciso ter claro que, embora ambos se constituam na práxis como ferramentas legítimas para transformar a ação governamental, há uma notória diferença nas consequências da implementação de uma ou da outra (TOBAR, 1991, p.4).

Esses dois conceitos não ocorrem em processos necessariamente relacionados, pois pode haver descentralização sem desconcentração e vice versa. Atualmente, nas discussões sobre reestruturação do Estado, a descentralização vem sendo concebida, por um lado, como um instrumento de redução das funções básicas e indispensáveis do Estado. Por outro lado, é interpretada como um aspecto necessário para democratização da administração pública, da burocracia e dos partidos, através da multiplicação de estruturas de poder. Essa abordagem evidencia a multiplicidade de possíveis compreensões e aplicações dos processos de descentralização, que variam desde uma simples transferência de competências (desconcentração) a uma complexa reestruturação do poder decisório (CASTRO, 1991).

Para o meio rural essa temática tem sido muito difundida nas discussões sobre planejamento e execução das políticas públicas. Nessa área Schneider (2004) chama a atenção para quatro elementos chaves que estão na pauta do desenvolvimento rural na última década: i) redução/erradicação da pobreza rural; ii) o protagonismo dos atores sociais e sua participação política; iii) desenvolvimento territorial; iv) sustentabilidade ambiental. Ao reforçar a necessidade de participação social, esse autor reafirma o debate sobre as transformações na relação entre Estado e sociedade civil, principalmente na execução das políticas públicas no meio rural brasileiro.

1.3.1 Descentralização política no Brasil: um olhar para o rural A temática da descentralização do Estado tem sido recorrente no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988. De acordo com Rover (2007), esse processo permitiu que os municípios passassem a ganhar maior autonomia. Essa nova orientação foi denominada de municipalização das políticas públicas. Apesar dos avanços ocorridos desde então, as competências da União permaneceram muito grandes, quando comparadas a outras esferas subnacionais.

Leite, Bonnal e Delgado (2007) apontam que a nova institucionalidade construída pelos processos de descentralização criaram novos espaços públicos com intuito de preencher essa lacuna entre as esferas estatais e a sociedade civil. No entanto, a efetividade desse processo foi comprometida pelo fato dos municípios serem espaços políticos onde as oligarquias locais têm enraizado seu poder político. As prefeituras e câmaras de vereadores estão impregnadas pela capacidade de arregimentação política dessas oligarquias.

De acordo com Matos Filho (2002), a municipalização contribuiu para que fossem instituídos inúmeros conselhos, desde a esfera federal até municipal. Atualmente, todos os municípios brasileiros construíram ao menos uma modalidade de conselho municipal. Apesar dos avanços obtidos na gestão e implementação de políticas públicas via municípios, “[...] na maioria das vezes exigem que pequenos municípios ‘se voltem para o próprio umbigo’, mediante criação de conselhos apenas municipais, quando igualmente importante seria induzir articulações intermunicipais” (VEIGA, et al., 2001, p. 57-58).

A grande maioria dos municípios rurais brasileiros defronta-se com a escassez de recursos - humanos e financeiros - para implementar de forma isolada iniciativas de planejamento do desenvolvimento. As

análises de Abramovay (2001), Veiga (2002) e Veiga et al. (2001) realçam a necessidade de se promover articulações intermunicipais com vistas a suprir as limitações locais e potencializar a utilização dos recursos escassos.

O que mais falta é um arranjo institucional que ajude articulações intermunicipais [...] a diagnosticar os principais problemas rurais de suas respectivas microrregiões, planejar ações de desenvolvimento integrado, e captar os recursos necessários à sua execução. Trata-se de encorajar os municípios rurais a se associarem com o objetivo de valorizar o território que compartilham [...]. Ou seja, o papel dos governos federal e estaduais deve ser o de estimular iniciativas que no futuro poderão ser autofinanciadas, mas que dificilmente surgirão, ou demorarão muito para surgir, se não houver o indispensável empurrão inicial (VEIGA, et al., 2001, p. 82-83).

O que tem sido apontado como alternativa de superação dessas limitações é a criação de uma esfera pública intermediária entre os Estados federados e os municípios. Como resposta a essas novas propostas, alguns ministérios têm adotado a perspectiva do desenvolvimento territorial no processo de formulação e implementação de algumas políticas públicas.

Cabe ressaltar, também, que na maioria das zonas rurais brasileiras a democratização das relações de poder está diretamente ligada ao acesso à terra. A concentração fundiária é uma das variáveis responsável pelos processos de marginalização social de grande parte da população rural. De acordo com Abramovay (1999), o acesso à terra é uma das condições necessária para que a população rural possa se dotar de um maior número de ativos, mas isso é possível se a terra vier acompanhada de um novo ambiente institucional local e regional e permita a revelação dos potenciais com que cada território pode participar do processo de desenvolvimento.

Em suma, pode-se dizer que apesar das limitações, essas transformações institucionais promovem importantes mudanças nos projetos de desenvolvimento e nos mecanismos de governança envolvidos, especialmente nos projetos para o meio rural e nas políticas de acesso à terra, historicamente marcadas pelo centralismo e conflitos com as demandas sociais. A descentralização permite a ampliação da

governança no sentido cívico, ou seja, aumenta a participação dos beneficiários diretos, a regulação social dos fundos públicos e aos mecanismos de transparência e de responsabilização social.

1.4 Governança da terra e (re)territorialização da agricultura