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CONTEXTUALIZAÇÃO DO LABOR EM SEU ELEMENTO SIGNIFICANTE E SUA INSERÇÃO NA DINÂMICA DOS DIREITOS SOCIAIS PARA DIGNIFICAÇÃO DO

TRABALHADOR

Na mesma proporção que a liberdade consiste no vetor da dignificação humana, o trabalho igualmente dignifica seu executor; logo, para entender a inserção do objeto de pesquisa do presente trabalho, qual seja, a autonomia da vontade exercida pelo preceito da liberdade do trabalhador frente aos contratos de trabalho, importa trazer à baila uma análise sistêmica do elemento posto à disposição do empregador como objeto deste contrato: o trabalho.

A análise semântica do termo trabalho consiste num gerúndio que em si não designa o produto final, mas apenas o resultado da ação trabalhar, evidenciando, portanto, que a própria nomenclatura não revela os elementos essenciais para construir a conceituação de

64 PIOVESA, Flavia. Direitos Humanos, O princípio da Dignidade Humana e a

Constituição de 1988. In: PIOVESAN, Flávia e GARCIA, Maria (organizadoras). Teoria Geral dos Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção doutrinas essenciais;v1). 2011. Pg: 316

43 labor, mas tão somente significar seu ato. Este fato remonta ao desprezo incrustado na antiguidade clássica em relação às atividades que não fossem voltadas para a política, as quais excluíam toda uma categoria da condição de cidadãos da pólis, motivo pelo qual toda e qualquer atividade que despende-se um esforço físico era relegado aos inimigos vencidos (escravos) e aos operários do povo em geral, os quais tinham uma maior liberdade de atuação no campo privado, porém, permanecia na mesma condição que os escravos quanto à atuação na política65.

Ora, o regime democrático instaurado na pólis grega defendia como atuação humana de ponta o desenvolvimento da retórica para defesa das vontades nas deliberações em assembleia; o uso do vernáculo, portanto, consistia na ocupação intelectual a interferir nos ditames da sociedade e, por isso, era prestigiado como atividade desenvolvida pelo ócio produtivo. Em oposição a este ócio figuravam os trabalhadores, que negavam o ócio, desenvolvendo atividades braçais classificadas por Aristóteles como ocupações que importavam em desgaste físico não atribuído aos cidadãos. A visão aristotélica de labor não se atrelava a um conceito de cidadania, mas sim, em razão da quantidade de esforço dispendido, de modo que a vida contemplativa resultará no ideal de ócio tão mais produtivo quanto fosse o grau de abstração alcançado pela “completa e ininterrupta liberdade de movimentos e ações”66.

Este pensamento guiou a visão aristotélica ao comparar o escravo a coisa, isto é, negar o ócio em favor de seu senhor, motivo pelo qual o escravo é assemelhado às demais formas de vida animal pela atividade que desenvolvia e peça completa exclusão das faculdades de deliberar e decidir, como também de prever ou escolher. Esta dinâmica mostra-

65 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2010. Pg. 99,100.

66 GOMES, Fábio Rodrigues. O Direito Fundamental ao Trabalho: Perspectivas

44 se manifestamente incompatível com os preceitos da dignidade humana, sobretudo do trabalhador; contudo, os apontamentos a serem oportunamente erigidos nos tópicos seguintes demonstrarão que a mitificação da autonomia irrestrita da vontade retida do homem, ao contrário do vetor constitucional pátrio, o elemento volitivo da vontade no campo pragmático, pois é a norma que estabelece a existência de uma igualdade mítica de condições, inexistindo no plano material, esta, tão sonhada igualdade de condições para fruição da autonomia irrestrita.

Retomando o cerne da temática ora sugerida, a Antiguidade clássica tinha por premissa maior que o trabalho desenvolvido pelo corpo e para atender às vicissitudes do homem consistiam em atividade servil. Negar o ócio era exercitar uma atividade servil que implicava na escravidão do ser por sua necessidade67. A escravidão, neste momento histórico, realizava verdadeira distinção de classes, pois os que parcela da população que enaltecia e desenvolvia a vida contemplativa pelo ócio produtivo eram considerados inseridos na classe de cidadãos, por outro lado, quem desenvolvia atividades servis negando o ócio (negócio) foi sagrado num espectro de nível secundário destituído de cidadania. Em que pese a evidente exploração de mão de obra era desenvolvida para afastar o caráter servil de determinadas atividades daqueles que experimentavam a vida contemplativa, tal circunstância não dava azo a um subterfúgio de exploração da mão de obra como um instrumento de obtenção de lucro68.

Num salto metodológico para a era moderna, a ideia de labor que unificava o pensamento de Smith ao de Marx, na era Moderna, era o repúdio ao trabalho improdutivo por considerá-lo parasitário. Todavia, o traço distintivo da obra de Marx tem seu conteúdo voltado para um aspecto de tal relevância da produtividade humana que encerra a característica a distinguir o homem dos demais seres. A exemplo disto Max Weber fala sobre

67 ARENDT, Hannah. Ob. Sup. Cit. Pg. 102,103.

45 a necessidade de trabalho para a construção da vida, em seu pensamento, o labor é o meio pelo qual o ser adquire os elementos que dignificação a vida69.

Invertendo a dinâmica da tradicional atividade contemplativa da sociedade Antiga, a era Moderna, sobretudo pelos ideais do liberalismo econômico, não formula uma teoria para distingui o trabalho de “nosso corpo” e a obra de “nossa mão”, de modo que afastando-se desta necessária distinção entre animal laborans e homo faber, a era moderna reserva um espaço para discussões a caracterizar as distinções necessárias acerca do trabalho produtivo, distinguindo-o do improdutivo. Posteriormente à Revolução Industrial emerge a discussão sobre a mão de obra qualificada e não qualificada resultante da divisão das atividades laborais e, mais tarde, a ressignificação do labor manual e intelectual70.

A diferenciação menos perfeita, porém, mais eficaz da teoria moderna entre trabalho produtivo e improdutivo reside na respectiva distinção entre obra e trabalho. Embora o resultado de determinado labor venha a se esvair tão rápido quanto o dispêndio de força para sua consecução, o elemento único e mais revolucionário de todo sistema consiste na força humana despendida para produção destes bens, por mais efêmeros ou inúteis que eles possam parecer71.

A dinâmica do labor alçou o patamar de dignificação do homem de tal forma que, ao contrário do pensamento antigo, a vida contemplativa deixou de ser um ideal a ser alcançado em razão do esvaziamento dos bens que esta vida possa alcançar. Ocorre, portanto, o esvaziamento do traço distintivo entre trabalho e obra, o que por via de consequência torna toda obra um trabalho ante a concepção que a força de trabalho consiste

69 WEBER, Max. A Ética protestante e o Espírito Capitalista. Rio de Janeiro: Martin

Claret. 2008. Pg. 55

70 ARENDT, Hannah. Ob. Sup. Cit. Pg. 105.

46 no exercício de uma função vital72.

Cristalino, portanto, que embora dignificado pelo trabalho, o homem passa a sujeitar-se em face do outro para vender sua força de trabalho, não importando as condições em que eram desenvolvidas, mas apenas que o resultado prático era alcançado: para a classe operária, o salário para adquirir coisas e a classe patronal, obtenção de lucro como resultado da mais valia da classe operária.

Em outras palavras, a teoria moderna de trabalho evidencia um nivelamento de valores que igualam os seres pelo trabalho, tanto o industriário quanto o empregado apresentam-se num patamar de igualdade pelo trabalho, pois a dinâmica da isonomia de labores igualam tanto quem despendem o esforço físico para produzir um objeto como para construir o projeto deste objeto, embora este último tenha se desenvolvido por uma atividade pensante, a produtividade do trabalho, sobretudo na teoria marxista, é mensurada pela força de trabalho humano despendido e “não na qualidade ou no caráter das coisas que produz”73.

Ante à dicotomia engendrada no Estado Liberal em que no plano das relações sociais havia uma liberdade tenazmente defendida em seu viés individual e ilimitado, enquanto que na esfera pública, os poderes instituídos pelo povo, a atuação da representação política e popular, assim considerada pelo modelo de outorga de poderes, inexistia, nesta senda, qualquer ingerência estatal na limitação ao direito privado, porquanto nesta visão constitucionalista norte-americano e das tradições germânica e austríaca, o direito tinha um cunho positivista aos moldes da filosofia kelseniana, conforme já elucidado alhures.

Eis o contexto do liberalismo, em cujo ápice desenvolvido pelo capitalismo financeiro desponta o trabalho que trouxe ao seu executor a condição de coisa,

72 ARENDT, Hannah. Ob. Sup. Cit. Pg. 110.

73

47 correspondendo este obreiro a mero insumo no processo de produção, fato que relegava o ser trabalhador a uma total degradação social comparado a um objeto descartável.74 Toda a legislação vigente à época conferia ao trabalho, no contexto da livre iniciativa, como fonte de riqueza, pregando, ainda, o livre comércio, a concorrência e a divisão do trabalho. A liberdade, neste contexto, trouxe a reboque crescente rivalidade comercial de modo a incentivar melhorias nos métodos produtivos, como o despontar da energia a vapor, fator este a conduzir alterações na forma de produção. O trabalho, que antes era desenvolvido de forma tipicamente artesanal e domiciliar, passou a um modelo fabril exigindo, do trabalhador, maiores níveis de produtividade (Iannonne, 1992, Pg. 53).

A exploração do homem pelo labor desenvolvido por suas mãos ganha dinâmica na sociedade industrial moderna, sendo possível o não favorecimento de condições dignas de labor, pois o trabalho era o elemento a dignificar, inexistindo qualquer obrigação patronal em face de seu empregado. A dinâmica da política neoliberal extraiu o máximo de exploração possível até que o eixo vetor da liberdade fosse questionado após a Primeira Guerra Mundial com a criação de organismos internacionais e deliberativos do labor do homem como a OIT. O reflexo destas determinações trouxe ao mundo moderno um novo fôlego desta feita para proteção do trabalhador e não do trabalho em si.

3.2 SÍNTESE DOS DIREITOS SOCIAIS ESCULPIDOS NAS CONSTITUIÇÕES