• Nenhum resultado encontrado

Contextualização histórica nos diferentes espaços sociais dos adolescentes

Historicamente, a sociedade se configurou adultizada e excludente, ocorrendo uma adaptação e evolução em relação às crianças e aos adolescentes. Inicialmente, as crianças eram reconhecidas como seres incapazes, dependentes, desconsideradas como seres capazes de emoções e sentimentos. As que conseguiam sobreviver eram consideradas miniaturas adultas. Os adultos não respeitavam as diferenças de idade e os assuntos eram relacionados tão somente à vivência adulta.

Em relação a estes estudos, Ariés (1981) inaugurou uma linha de investigação no campo da nova história que trouxe consigo um farto material de pesquisa, em especial sobre a infância. Este estudo ficou conhecido no Brasil nas últimas decádas do século XX. A mudança da concepção de infância, a influência da escola, do trabalho, do lazer, da religiosidade e a transformação da concepção de família são temas fundamentais para compreender a inserção, a formação das crianças e, futuramente, o adolescente na sociedade.

O primeiro sentimento da infância, caracterizado pela paparicação, surgiu no meio familiar, na companhia de criancinhas pequenas. O segundo, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, até o século XVI, e de um maior número de moralistas no século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes. Esses moralistas haviam-se tornado sensíveis ao fenômeno outrora negligenciados da infância, mas recusavam-se considerar a criança como brinquedos encantadores, pois viam frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento passou para a vida familiar. (ARIÉS, 1981, p.105).

Ao longo do processo de desenvolvimento da humanidade, nos diferentes espaços, históricos e culturais, os adolescentes vão se ajustando ao meio em que estão inseridos. A urbanidade passa a ser uma questão fundamental para a caracterização das crianças e dos adolescentes em conflito com a lei, pois é nesse espaço que ocorre a maior incidência de delitos. Isto porque há grupos de vulnerabilidade social, onde o acesso às drogas, a prostituição, o alcoolismo e a ineficiência de Políticas Públicas inclusivas são determinantes para a prática da incidência de delitos.

Nesse aspecto, o trabalho urbano sucumbiu com o tempo dedicado por homens e mulheres aos seus filhos. As mulheres passaram a assumir postos de trabalho para dar conta das exigências do mercado de trabalho e, consequentemente, as crianças e os adolescentes tornaram-se vítimas desse processo, perdendo a oportunidade de conviver um maior tempo com seus pais. Nesse contexto, a sociedade industrial brasileira introduziu um novo conceito de tempo, que passou a ter um valor diferenciado, em que a qualidade da atenção e do lazer deveria ser de melhor qualidade, o que infelizmente não aconteceu.

Neste sentido, Kramer e Leite (2007, p. 19) asseveram que:

A ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira. Ao contrário, ela aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudam a inserção e o papel social da criança na comunidade. Se, na sociedade feudal, a criança exercia um papel produtivo direto (de adulto) assim que ultrapassava o período de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura. Este conceito de infância é, pois, determinado historicamente pela modificação nas formas de organização da sociedade.

A concepção que hoje se tem em relação às crianças e aos adolescentes é diferente daquela que existia na Idade Média. Naquela época a fase da infância durava enquanto a criança ainda não conseguia ser independente e, além disso, não era vista como um ser diferente do adulto. Sendo assim, as crianças eram encarregadas de algumas tarefas, passando a fazer parte do mundo adulto.

O processo evolutivo da contextualização histórica das crianças e dos adolescentes nos diferentes espaços sociais é discutido nos segmentos da sociedade. Sua implementação ocorre por meio de normas jurídicas e práticas ainda inconsistentes, mas que precisam avançar para romper preconceitos e estigmas com relação às crianças e adolescentes, vislumbrando novos paradigmas. São fatos que necessitam o rompimento histórico, cultural e social que divergem no meio da sociedade de adultos.

Ariés (apud KRAMER; LEITE, 2007, p. 19) corrabora com a seguinte ideia: O sentimento moderno de infância corresponde a duas atitudes contra- ditórias dos adultos: uma considera a criança ingênua, inocente e pura e é traduzida por aquilo que ele chamou de “paparicação”; a outra surge simultaneamente à primeira, mas se contrapõe a ela, tomando a criança como um ser imperfeito e incompleto, que necessita de “moralização” e da educação feita pelo adulto.

Essas duas concepções contraditórias que permeiam o pensamento moderno em relação à infância na sociedade adulta se fazem presentes nas práticas implementadas por meio da forma como são vistas as crianças e os adolescentes no meio social, econômico, histórico e cultural. Existem segmentos que desmerecem a capacidade do pensamento, enquanto outros impõem valores, princípios elaborados que não permitem questionar e muito menos infringir a norma segundo o desejo de muitos adultos em formatar as crianças e os adolescentes de acordo com a contextualização social existente na sociedade contemporânea.

Atualmente, as crianças e os adolescentes são portadores de direitos e de deveres, merecedores do respeito à integridade física e psicológica. Neste sentido, pode-se constatar uma inversão de paradigmas a partir da seguinte afirmação: “[...] A criança não é um adulto em miniatura, não é um protótipo de homem/mulher, antes ela já o é, e o será de forma ainda mais plena, completa se a ela forem garantidas condições para seu pleno crescimento” (VERONESE, 1999, p. 201).

É embrionária a inserção histórica e social do termo adolescente na sociedade, pois somente no século XX começou a ser usado a fim de conceituar um período do desenvolvimento humano entre a infância e idade adulta, que engloba desde a puberdade ao completo desenvolvimento do organismo. Trata-se de uma fase de alterações físicas e mentais que não ocorrem apenas no próprio adolescente, mas também relativamente ao seu entorno.

Sendo assim, o Estado brasileiro, a partir da sua Independência, trouxe como herança cultural e histórica alguns conceitos elaborados segundo as concepções europeias. Alguns intelectuais passaram a discutir e introduzir alguns avanços em relação aos filhos de escravas, mas que estavam aquém de uma real consideração de Direitos Humanos. A Assembleia Constituinte de 1823 trouxe à tona essa questão social como preocupação dos constituintes, sendo que D. Pedro I desconsiderou toda a discussão ao outorgar a primeira Constituição de 1824.

A partir de 1860 a problemática das crianças que eram escravas no Brasil começou a criar corpo num movimento da intelectualidade, sendo aprovada uma lei no Senado que proibia em qualquer venda separar os filhos escravos do pai e o marido da mulher. Em 1871 foi aprovada a Lei do Ventre Livre, a qual concedia a liberdade às crianças nascidas de escravas. Este processo criou amarras por parte da elite brasileira, dificultando a total liberdade das crianças, cuja ação foi considerada uma utopia, já que os pais continuariam escravos.

Os poucos avanços alcançados no Período Imperial de 1822/1889 ocorreram pela necessidade do mercado. O aspecto econômico forçou a sociedade brasileira a avançar em setores que estavam emperrando o desenvolvimento. A mudança de paradigma em relação à forma de contratar a mão de obra neste período se deu por intermédio da pressão inglesa que proibiu o tráfico de navios negreiros. Mais tarde, a Lei Eusébio de Queirós tratou desse tema a nível de Brasil e, na sequência, preventivamente, evitou a posse da terra pelos ex-escravos, instituindo a Lei da Terra, em 1850.

As crianças e os adolescentes de classes sociais vulneráveis e negras, contudo, ainda eram estigmatizadas e vistas como escravos no período pós- abolição, diferenciando-se das demais crianças da sociedade. Cultural e historicamente a escravidão deixou sequelas visíveis por um longo período. E, hoje, quando menos se espera surgem atitudes estigmatizadoras e preconceituosas em relação às crianças e os adolescentes, especialmente quanto a sua condição de gênero, raça e cor.

Existe uma normatização jurídica que assegura os Direitos e garantias às crianças e aos adolescentes, assim como a universalização do atendimento, a prioridade, a proteção integral sem discriminalização de cor, sexo, religião. Não há, entretanto, uma normatização jurídica que combata o crime de discriminação racial. Sendo assim, o sistema jurídico encontra-se incompleto e precisa ser ajustado para sua efetivação plena, respondendo a contento todas as classes sociais independentemente de condição social, econômica e política.

No início da República, todavia, surgiram legislações estabelecendo formas de organização que deram base e assistência à infância desvalida. Na época, o governo não dispunha de instituições para abrigar a infância desvalida, como se pode perceber por meio do Decreto nº 439, de 31 de maio de 1890, no seu art. 1º que determinava a seguinte redação:

A assistência à infância desvalida na Capital Federal, por parte dos poderes públicos, será constituída enquanto o Governo não puder fundar outros estabelecimentos, pelas atuais instituições Casa de São José e Asilo dos Meninos Desvalidos, destinadas a receber, manter e educar menores desvalidos, do sexo masculino, desde a idade de 6 anos até os 21 anos. Já o reconhecimento da criança como sujeito de direitos é uma conquista recente no Direito brasileiro, que ocorreu evolutivamente, pois durante um longo

período da história brasileira ela era tida apenas como uma promessa de futuro. A adoção da doutrina da proteção integral na Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, foi o marco fundamental de todo esse processo de transformação jurídica.

Neste sentido, pode-se observar o entendimento de Lima e Veronese (2009, p. 3), a seguir:

O direito da Criança e do Adolescente adota princípios da universalização do atendimento e da não discriminação, ou seja, os direitos devem ser concretizados a todas as crianças sem distinção de cor, raça, sexo e origem, sendo que todos os instrumentos jurídicos vedam a discriminação, mas não criam mecanismos específicos de combate à discriminação racial. O modelo de medida socioeducativa implantado pelo Estado e a sociedade em relação às crianças e os adolescentes em conflito com a lei foi elaborado a partir da lógica do sistema carcerário presente nas sociedades capitalistas contemporâneas, e está longe de realizar a ressocialização e de inseri-los na sociedade. Nesse sentido é preciso avançar em direção a políticas afirmativas de uma nova realidade.

Neste contexto, na pesquisa aleatória efetuada para este estudo pode-se observar a fala do ex-conselheiro tutelar B:

Olha, o meu conceito sobre a ressocialização da criança e do adolescente, em princípio a criança, ela nunca precisava passar por isso, por uma Fase, por problemas desses, desde que a família hoje existente no Brasil tivesse outra estrutura, tivesse uma reforma social, eu acho que isso precisa acontecer, mas a recuperação muitas às vezes não acontece. (ex- conselheiro tutelar B).

O diálogo citado deixa transparecer a falta de um ajuste nas formas de encaminhamentos e procedimentos das instituições e legislações que tratam desse assunto. As políticas públicas deveriam ser iminentes e presentes nas camadas sociais vulneráveis, pois já é sabido que os problemas das crianças e dos adolescentes em conflito com a lei são problemas sociais e estruturais da própria sociedade.

A fim de ilustrar o fato relativo à inserção de políticas públicas transcreve-se o Parecer da Escola Municipal Fundamental 15 de Novembro, Ijuí-RS, em relação ao ex-adolescente A, que frequentou as aulas no ano de 2006, sendo tema da pesquisa aleatória efetuada para este estudo:

Conforme solicitação de órgãos de apoio, assistência social e demais instituições a quem possa interessar este parecer, podemos afirmar o seguinte: o aluno está frequentando os estudos neste estabelecimento de ensino, além das aulas normais no turno da manhã, o mesmo frequenta o projeto segundo tempo do governo federal, coordenado pelo SESC, de 2ª, 4ª e 6ª à tarde e 3ª à tarde participa na escola do projeto coordenado pela invernada adulta do CTG Farroupilha, projeto Bailando na Tradição. É um menino, cidadão, possível de ser inserido na sociedade, desde que a mesma dê oportunidades e acabe com o estigma que o mesmo carrega. Percebemos que o desvio de valores na qual o mesmo se apresenta fora da escola é reflexo de uma sociedade que apela ao consumismo, obrigando as pessoas sem posse apelar de forma alternativa a determinados atos ilícitos na sociedade. Por isso, é o risco que corremos quando valorizamos o ter e não o ser. Segue suas notas do 1º trimestre de 2006 (ESCOLA MUNICIPAL FUNDAMENTAL 15 DE NOVEMBRO, 2006).

Quadro 3. Notas do 1º trimestre de 2006

Matéria Nota do 1º trimestre Nº de faltas (aulas)

Português 76 04 Educação Física 90 - Artes 80 04 Matemática 90 06 Ciências 67 03 História 65 04 Geografia 71 02 Espanhol 82 07

Fonte: documento interno da Escola Municipal Fundamental 15 de Novembro (2006).

Este parecer é um exemplo de inserção de políticas públicas, juntamente com instituições de ensino conveniadas com outras instituições que propõem projetos de inclusão de crianças e de adolescentes, possibilitando a ressocialização, envolvendo os mesmos em atividades de crescimento intelectual, de recreação e de lazer. Seu objetivo é melhorar, assim, o processo de ensino e aprendizagem, conforme se pode verificar nas notas e na frequência escolar do referido aluno.

Nesse aspecto também se pode observar que o gosto, o prazer em participar de um grupo, estar inserido em um local, no qual possam se identificar com o espaço, com os profissionais e com os próprios colegas são elementos fundamentais para a permanência e o sucesso das crianças e dos adolescentes conforme registra o ex-adolescente A:

[...] como eu era muito apegado naquela escola, morei naquele bairro, me identificava muito com aquelas pessoas, não por elas serem humildes, mas eu era humilde também, não me adaptei nas outras escolas por causa disso, nisso voltei estudar nessa escola. [...] Foi através de lá que apareceram projetos que acabei participando e desenvolvendo meus dons que se abriram portas. (ex-adolescente A).

Tomando como exemplo o estudo deste caso que faz relação com a ressocialização do adolescente em conflito com a lei, fica claro que há muito o que fazer. Mudanças de atitudes dos profissionais precisam ser repensadas, assim como alterações na estrutura física e organizacional das instituições, criação de legislações, propostas de mudança de paradigmas e criação de medidas socioeducativas como forma de reeducação e não de castigo e nem de punição.

Conforme consta no relatório da entrevista realizada pela Assistente Social no dia 26 de dezembro de 2003, informando ao Conselho Tutelar sobre o ex– adolescente A que se encontrava em conflito com a lei, tem-se que:

[...] Durante a entrevista ficou visível a relação afetiva estabelecida com a instituição SOS Vida na cidade de Santo Ângelo, RS. No entanto, não podemos garantir que o adolescente seja encaminhado a este espaço, mas que continuará recebendo um acompanhamento sociofamiliar nas questões que dizem respeito à matéria de Serviço Social e de Assistência Social. O que neste momento podemos afirmar é que a situação familiar não é adequada para a convivência [...]. (CONSELHO TUTELAR, 2003).

Neste sentido se confirma a relação afetiva como determinante no processo de ressocialização, porque o adolescente precisa se identificar com a instituição, bem como necessita de credibilidade dos profissionais que estão envolvidos com ele, além de perseverança, persistência, coragem e determinação para reencontrar o caminho da reconstrução da dignidade e da cidadania.

Essa questão é marcante na vida do ex-adolescente A, pois corrobora com os ideais demonstrados por ele no passado, pois quando questionado: “O que você

faria hoje se você tivesse oportunidade de voltar o tempo?” o mesmo respondeu de

maneira semelhante ao passado, em 16 de setembro de 2013, como se observa a seguir:

Entrevistador: O que você faria hoje se você tivesse oportunidade de voltar o tempo?

Tem muitas coisas erradas que eu fiz. Quando estive no SOS Vida, em Santo Ângelo, me apeguei muito com as pessoas de lá, tenho maior vontade de trabalhar lá na clínica de reabilitação de dependentes químicos, porque me identifiquei muito com aquelas pessoas lá, eu acho que gostaria muito de poder ajudar, poder transmitir o ensinamento, o aprendizado que eu tive lá. (ex-adolescente A).

Sendo assim, conforme a descrição feita pela assistente social no relatório da entrevista, que está nos arquivos do Conselho Tutelar de Ijuí-RS, no que tange à família do ex-adolescente A, tem-se: “O que no momento podemos afirmar é que a

situação familiar não é adequada para a sua convivência”. O depoimento leva a

refletir se as instituições e seus profissionais tomam as atitudes corretas a fim de tornarem as práticas afirmativas, diferentemente do que a família lhe ofereceu.

As instituições e seus servidores reproduzem as mesmas atitudes da família. Tendo isso em vista, de que forma a sociedade pode cobrar a ressocialização das crianças e dos adolescentes em conflito com a lei? Não é preciso reproduzir as práticas educativas ultrapassadas nas instituições, pois não são sinônimo de ressocialização, e é na família que as crianças e os adolescentes convivem com vulnerabilidades e potencialidades. Daí o reflexo da situação: crianças e adolescentes em conflito com a lei.

A ampliação de políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes e o envolvimento das famílias e das instituições em redes24, com objetivos claros, buscam ouvir as crianças e os adolescentes para minimizar os conflitos, tendo por base a sociedade. A questão que justifica o conflito entre a lei das crianças e dos adolescentes com os princípios éticos na sociedade deveria servir de premissa para uma sociedade igualitária, fraterna, justa e sem violência, uma vez que estes são desafios permanentes de todos os cidadãos.