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3. Desafios Jurídico-Tributários da Implementação das normas IFRS no Brasil: apresentando a perspectiva jurídico-tributária sobre o tema

3.1. A perspectiva jurídico-tributária sobre a implementação das normas IFRS no Brasil

3.1.1. A Primazia da Essência sobre a Forma e os conflitos de qualificação 1 Conceitos, características e elementos

3.1.1.2. Contextualização do princípio da Primazia da Essência sobre a Forma no panorama jurídico-contábil

Ao discorrerem sobre o princípio da Primazia da Essência sobre a Forma, alguns doutrinadores jurídicos criticam a terminologia utilizada pelas normas contábeis, afirmando que as mesmas não deveriam fazer referência à “forma legal”, que é apenas a maneira pela qual um negócio se exterioriza, mas sim à natureza jurídica do mesmo.

Essa opinião é representada por BIANCO ao analisar a questão do leasing. Para o autor, a orientação em questão não deveria ser chamada de “Primazia da Essência sobre a Forma”, mas sim de “Primazia da Substância Econômica sobre a Natureza Jurídica”:

O autor daquele texto [Pronunciamento Conceitual Básico] ainda confunde forma jurídica com natureza jurídica. A forma, em Direito, significa a maneira por meio da qual o negócio jurídico é exteriorizado, não tendo qualquer relação com a sua natureza jurídica. (...)

Em linguagem técnica, portanto, o que o autor do texto quis dizer é que, do ponto de vista econômico, a retrovenda é, na sua essência, uma espécie de

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financiamento. E para a contabilidade, os negócios jurídicos realizados devem ser registrados nos livros contábeis de acordo com a sua essência econômica e não em função da sua natureza jurídica.

Assim sendo, o que na contabilidade é chamado de princípio da “primazia da essência sobre a forma” poderia ser mais bem definido como sendo o princípio da “primazia da substância econômica sobre a natureza jurídica do negócio realizado”.103(g.n.)

Nossa análise, portanto, deveria tomar como premissa os objetivos próprios de cada ciência: à contabilidade interessa a natureza econômica das informações, pois sempre será voltada ao objetivo do lucro. Ao direito, por seu turno, interessa o negócio jurídico pretendido por seus usuários.

Para o mesmo sentido aponta BIFANO, para quem existem lentes de observação distintas para o mesmo fenômeno:

A busca pela essência econômica deve-se voltar à realidade econômica que ensejou o nascimento da coisa, pois só dessa forma será possível determinar sua natureza, para fins contábeis. A busca pela natureza jurídica deve-se voltar à causa dos atos jurídicos, como contido no sistema. A partir da edição da Lei 11.638/07 consagrou-se, em definitivo, a distinção entre os princípios que norteiam as relações econômicas, para fins de registro contábil, e aqueles que norteiam as relações jurídicas, na atividade empresarial. (...) A diferença de tratamento, dado às mesmas coisas, pela Contabilidade e pelo Direito, é determinante nas novas relações que se instauram entre essas práticas.104 (g.n.)

De fato, contabilidade e direito sempre tiveram suas aproximações e seus distanciamentos, mesmo antes da edição da Lei 11.638/07. A Lei 6.404/76, em sua redação original, já preconizava em seu artigo 177 que as demonstrações contábeis fossem elaboradas com observância aos "princípios contábeis geralmente aceitos", expressos nas Resoluções CFC n° 750/93 e 744/94.

Tal norma, inclusive, já era prevista no arcabouço da contabilidade brasileira desde o ano de 1985, quando o Instituto Brasileiro de Contadores105(IBRACON) emitiu a Estrutura Conceitual Básica da Contabilidade, posteriormente aprovada pela CVM por meio da Deliberação n° 29/86106.

Ocorre que, ainda que já existisse orientação que permitisse a prevalência da essência sobre a forma para fins contábeis, a contabilidade brasileira sempre esteve impregnada por normas contábeis de natureza exclusivamente tributária, que

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BIANCO, João Francisco. Aparência Econômica e Natureza Jurídica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 176.

104

BIFANO, Elidie Palma. Op. Cit. p. 129.

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Em 2001, o IBRACON passou a se chamar Instituto dos Auditores Independentes.

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Dispõe o artigo 2º da Deliberação CVM nº 29/86 que “a contabilidade possui um grande relacionamento com os aspectos jurídicos que cercam o patrimônio, mas, não raro, a forma jurídica pode deixar de retratar a essência econômica. Nessas situações, deve a Contabilidade guiar-se pelos seus objetivos de bem informar, seguindo, se for necessário para tanto, a essência ao invés da forma.”

impediam qualquer modificação que causasse impactos em obrigações tributárias ou em sua quantificação. Conforme observado por OLIVEIRA:

(...) princípios contábeis nunca puderam se imiscuir na definição do fato gerador do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro (CSL), nem na determinação da sua base de cálculo, pois estas matérias estão submetidas à reserva de lei em virtude do princípio da legalidade, instituído pela Constituição Federal no art. 150, inciso I, e explicitado no Código Tributário Nacional em vários dispositivos, mas principalmente no art. 97. (...)

Mais especificamente, a contabilidade não podia criar um fato descrito em norma jurídica como hipótese de alguma obrigação tributária, e também não podia modificar o fato na sua realidade e nos seus efeitos derivados das normas jurídicas que os regulavam, limitando-se, portanto, a ser o retrato fiel de uma realidade econômica e jurídica externa a ela.107

Isso também foi observado por BIANCO. Na passagem selecionada, o autor esclarece que a contabilidade sempre buscou registrar informações que melhor traduzissem a situação econômica da entidade. Entretanto, esse objetivo da ciência contábil sempre foi colocado em segundo plano quando os critérios e objetivos tributários entravam em jogo:

Como se vê, é evidente o conflito entre as duas formas de registrar contabilmente o mesmo negócio jurídico. Esse conflito estava acomodado até pouco tempo atrás, mas não resolvido. Isso porque as autoridades fazendárias sempre exigiram das pessoas jurídicas que os lançamentos contábeis fossem feitos – tanto nos livros contábeis como nos fiscais – obedecendo ao critério da prevalência da natureza jurídica sobre a aparência econômica.

O contribuinte estava livre para utilizar qualquer um dos critérios. Mas caso quisesse conferir efeitos fiscais aos lançamentos feitos, a sua contabilidade deveria seguir o critério exigido pela lei fiscal, ainda que inadequado do ponto de vista da técnica contábil.

(...) Diante disso, qual das taxas adotar? A real ou a legal? As pessoas jurídicas acabavam optando pelo critério adotado pela autoridade fazendária, em prejuízo da pura técnica contábil, para poder garantir efeitos fiscais aos lançamentos contábeis feitos. E as demonstrações contábeis acabavam sempre apresentando valores que, do ponto de vista contábil, não espelhavam a realidade econômica da empresa.108

Da leitura das passagens selecionadas percebe-se que o princípio da primazia da essência sobre a forma não é nenhuma novidade. O que mudou foi apenas a relação entre as normas tributárias e as normas contábeis que, após a edição da Lei 11.638/07, as últimas puderam finalmente aliar-se aos princípios contábeis, e não às necessidades e fins tributários.

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OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A Tributação da Renda e sua Relação com os Princípios Contábeis Geralmente Aceitos. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 399.

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Contudo, a necessidade de elaborar demonstrações contábeis compatíveis com os critérios adotados internacionalmente ocasionou uma revisão completa do assunto pelo legislador ordinário. Conseguiram, assim, os contabilistas, fundamento legal para impor os seus critérios para a elaboração das demonstrações contábeis. E o mais importante deles seria justamente a primazia da substância econômica sobre a natureza jurídica dos negócios realizados.

Com a revitalização da figura contábil da primazia da essência sobre a forma a partir da edição da Lei nº 11.638/07, a contabilidade brasileira libertou-se das “amarras do Fisco” e se alinhou aos padrões internacionais, o que serviu para ampliar a distinção entre os princípios que norteiam as relações econômicas e aqueles que norteiam as relações jurídicas.

Confira-se, nesse sentido, os comentários de IUDÍCIBUS, MARTINS e GELBCKE a respeito:

Talvez a maior modificação seja mesmo a introdução, de maneira clara, da figura da ‘Primazia da Essência sobre a Forma’ como característica fundamental da informação contábil. Esse conceito estava inserido na Deliberação CVM n. 29, de 1986, mas de passagem, sem que lhe houvesse sido dada a característica de um ‘princípio’ propriamente dito. (...). Ou seja, de agora em diante, não pode mais o profissional de contabilidade, ou o gestor da empresa, ou o auditor independente, simplesmente ‘seguir as regrinhas, ‘seguir as letras do contrato’ etc.109.

Esta universalização dos padrões internacionais certamente foi a causa de uma importante mudança de paradigma em matéria contábil, que implicou no abandono de normas rígidas de contabilização, para estabelecer a possibilidade de julgamento dos eventos contábeis com base na essência econômica da operação.

Em decorrência da utilização, pelo direito tributário, das demonstrações contábeis como suporte fático para a incidência de tributos, a conquista da autonomia da contabilidade frente às normas jurídicas brasileiras não foi aceita por parte dos doutrinadores do direito110 que passaram a apontar riscos inerentes à continuidade da utilização desse suporte em um cenário em que a contabilidade passou a privilegiar a demonstração da substância econômica sobre a natureza jurídica.

O tópico seguinte destina-se, assim, a retratar os riscos, críticas e problemas que, na opinião da doutrina nacional, emergem da aplicação da primazia da essência sobre a forma no cenário jurídico-tributário brasileiro.

109

Suplemento do Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações. São Paulo: Atlas, 2009. P. 13.

110

Conforme demonstrado ao longo do presente capítulo, houve certa resistência por parte da doutrina , incluindo nomes de peso como Ricardo Mariz de Oliveira, João Francisco Bianco e Natanael Martins.

3.1.1.3. Controvérsias na aplicação da Primazia da Essência sobre a Forma

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