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Contextualizando o Paranoá em sua história e lutas populares

Percursos metodológicos e narrativos

5.7 Contextualizando o Paranoá em sua história e lutas populares

Em relação ao local de pesquisa, acreditamos que cabe realizar breve histórico da cidade do Paranoá, especialmente em suas lutas populares pela fixação dos moradores na região. Conforme nosso referencial teórico, discutimos a região administrativa do Paranoá, não apenas como local de moradia, mas como território vivido pelos sujeitos em suas dimensões existenciais e políticas, de modo que a narrativa destes, descontextualizada da história de sua inserção em seu território faz com que sua fala perca seu lugar como agente da história e da política.

Reis (2000) fez estudo sobre narrativas nas quais as histórias pessoais de alguns moradores do Paranoá apresentaram íntima relação com a luta por moradia, água e pela oferta de alfabetização de jovens e adultos nessa região. O Paranoá originou-se do acampamento de obras da construção de Brasília em 1957. Com o término da construção da barragem do Lago Paranoá, em 1960, o governo permitiu que as famílias continuassem a morar lá.

Com o passar do tempo, a região chegou a ser o maior assentamento urbano da capital, com a necessidade de os moradores antigos ampliarem seus barracos e com a vinda de migrantes pelo êxodo rural brasileiro, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. A partir daí, o aumento da população assustou tanto o governo quanto os Figura 1: Mais um dia de Protesto - Gersion de Castro

106 moradores antigos, de modo que foram iniciadas ações violentas do governo para desalojar os moradores e mandá-los para outras regiões, especialmente, porque o Paranoá situa-se entre duas regiões com moradores com alto poder aquisitivo de Brasília (Lago Norte e Lago Sul).

Nesse momento, aqueles migrantes que haviam construído a região na qual moravam eram expulsos violentamente, situação que se repetiu em diversas regiões do Distrito Federal. É importante notar a situação na qual aqueles que construíram a cidade com seu suor e luta não puderam residir na região, com a tentativa do governo de alojá- los em locais mais distantes das regiões centrais.

Reis (2000) destaca que sendo rotulados pela alcunha de “invasores” dada pelo governo, os construtores de Brasília foram alçados à posição de ilegalidade e crime. Em 1988, ocorre um evento que marcou a história da luta pela fixação dos moradores do Paranoá, “O Barracaço”, que permitiu a fixação dos moradores em agosto desse mesmo ano. Apresentamos narrativa de militante do período que representa como ocorreram esse processo de luta pela moradia e o enfrentamento entre diferentes grupos políticos da comunidade e o governo:

(...) Ocorre, então, o Barracaço. Nos mobilizamos. Nos organizamos. E de uma noite para o dia, construímos 1.500 barracos de madeira. Isso, em 1988. A Polícia veio com tudo, para derrubar tudo e a gente não deixou por menos, não! A gente construiu barricadas também. Nos não estávamos tão desmobilizados assim. (...) Os barracos começaram a ser construídos e a polícia e o aparato de guerra veio pelo Lago Norte. Cercaram todo o Paranoá. (REIS, 2000, p.33).

Apesar de parte desse processo histórico não ser conhecido por alguns moradores da região, consideramos importante situar como essa luta pela moradia e pela sobrevivência estão presentes, até hoje, direta ou indiretamente, no cotidiano deles. O estudo de Reis comenta como a luta pela moradia permitiu a organização política de diversos segmentos da cidade, culminando na criação de grupo de alfabetização de jovens e adultos, e do Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá – CEDEP.

107 Ao mesmo tempo, discute o modo como – na conquista pela fixação dos moradores – os construtores de Brasília foram retirados de onde moravam, local que se tornou um parque vivencial (região que os antigos moradores, atualmente, chamam de “Paranoá Velho”). É discutido por Reis (2000) que, ao se mudarem para o Paranoá “novo”, os moradores perderam os laços de vizinhança, e após a conquista da fixação, houve certa perda da mobilização que havia até o momento.

Fazemos esse breve relato histórico acreditando que não podemos compreender a narrativa dos moradores do Paranoá sem situar as lutas populares pelas quais eles passaram. Acreditamos que, mesmo sem conhecer essas lutas, aqueles que moram na região encontram-se situados nesse processo histórico e, até hoje, estão envolvidos em aspectos da vida em comunidade oriundos desse processo. Cabe contextualizar que, até hoje, há processo na justiça em relação à legalização dos lotes conquistados no Paranoá. Portanto, como aparecerá na narrativa analisada, mesmo atualmente, a luta pela moradia é uma realidade concreta no cotidiano dos moradores do Paranoá.

Em relação à participante da pesquisa, ela viveu durante esse período de luta pela moradia, além de relatar que teve um familiar como liderança, de modo que discutiremos aspectos de sua narrativa em relação a isso, posteriormente. Acreditamos que a clínica dos CAPS é construída em território existencial e comunitário, portanto, a revisão histórica desses processos é fundamental, segundo proposta de clínica nômade (ROLNIK, 1997) e sensível à dimensão da cultura e das lutas populares (VASCONCELOS, 2009).

Figura 2: Arteiros do Pau de Sebo - Gersion de Castro

108 5.8 Questões éticas

Tomamos o cuidado ético de informar aos participantes que as entrevistas realizadas não estavam inseridas como atividades terapêuticas nem vinculadas a qualquer tipo de benefício ou perda associada ao tratamento. O pesquisador principal deste projeto é Psicólogo do CAPS em questão, portanto foi feita, tanto em TCLE quanto durante todo o processo de realização da pesquisa, a diferenciação entre os momentos de pesquisa e os espaços de cuidado ofertados pelo CAPS do Paranoá.

Ao mesmo tempo, partindo das reflexões da pesquisa em Psicanálise, compreendemos a influência que o processo de pesquisa exerce sobre a relação transferencial entre pesquisador e usuário. Em relação a isso, reforçamos a responsabilidade de, mesmo após o término da pesquisa, estarmos disponíveis para acolhimento a demandas que surgirem decorrentes do processo de pesquisa. Nasio (2001) recomenda que, com a conclusão do estudo, este deve ser apresentado ao sujeito, permitindo que ele leia e autorize o trabalho escrito. Nesse sentido, se vale das orientações de Freud, ao propor que, preferencialmente, a pesquisa seja realizada apenas depois de concluída a análise, para que aquela não interfira no processo de análise. Mezan (1998) retoma Freud (1937/1996), reforçando a necessidade de omitir dados identificatórios irrelevantes à análise, utilizando os aspectos mais profundos da relação analítica que não permitem a identificação do sujeito. Acreditamos que, com a necessidade de desenvolver novos dispositivos clínicos na atenção psicossocial, não podemos aguardar o fim do processo terapêutico. Apesar disso, com os cuidados éticos, descritos anteriormente, é possível construir o conhecimento em saúde mental reconhecendo a autoria do sujeito sobre seu saber, sem identificá-lo nem prejudicar seu tratamento. Consideramos que os efeitos da realização da pesquisa no tratamento devem ser levados à relação transferencial e trabalhados à luz das questões que vinham sendo construídas anteriormente ao início da pesquisa.

Alguns autores defendem que, no campo da saúde mental, as entrevistas podem consistir em momentos de acolhimento e sensibilidade ao sofrimento do outro, apesar de não ser o objetivo central (MIRANDA & ONOCKO CAMPOS, 2010). Vasconcelos e cols. (2006) trazem alguns pontos a serem considerados em relação aos desafios éticos no estudo de narrativas. Inicialmente, devem-se considerar as dificuldades da construção da narrativa como reconstituição subjetiva de uma história pessoal dolorosa,

109 uma vez que muitos usuários ainda estão em processo de elaboração inicial de sua vivência, na busca de dar contorno à experiência vivida.

Outra questão levantada por Vasconcelos e cols. (2006) é o cuidado com o qual deve ser realizada a transcrição das falas, para que, na passagem da fala emotiva, não seja perdida a carga expressiva e catártica. A passagem do poeta Patativa do Assaré, utilizada na apresentação deste capítulo, parece demonstrar os limites que a transcrição e a passagem de mecanismos orais de transmissão do saber ao registro escrito apresentam. Conforme discutimos, Winnicott (1971/1984) não acreditava que a gravação e a transcrição de falas permitiam acesso fidedigno às questões relativas à transferência. Apesar disso, acreditamos que a gravação das entrevistas narrativas permite que voltemos ao material diversas vezes, nos permitindo associar livremente junto ao sonhar do usuário, mesmo após a conclusão da entrevista. O uso de diário de campo, durante a pesquisa, e referente a anotações anteriores a esta, também permite que sejam acessados aspectos da relação transferencial e da construção narrativa, para além da entrevista.

O projeto foi submetido à apreciação do Núcleo de Ensino e Pesquisa – NEPS do Hospital do Paranoá, visando à aprovação da pesquisa pelo Diretor do Hospital e pelo Gerente do CAPS. Após a aprovação de ambos, o projeto foi enviado ao comitê de ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal – FEPECS, respeitando a Resolução nº 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, e foi aprovado (anexo 3). Foi lido, conjuntamente com o usuário e/ou com o acompanhante (para casos nos quais o usuário possui responsável legal), o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (anexo 1).

Colocamos a responsabilidade ética de encerrar a entrevista a qualquer momento, caso esta abrisse campos de sofrimento com os quais o participante não conseguisse lidar. Assim me coloquei à disposição para acolhimento do participante, ou para realizar encaminhamento deste a outro profissional da instituição caso fosse necessário. Conforme estabelecido na Resolução número 196/1996 IV – 3 A, do Conselho Nacional de Saúde, foi avaliado pela equipe multidisciplinar e pelo pesquisador se o usuário tinha autonomia para assinar o TCLE, ou se era necessário autorização do representante legal, realizando avaliação psicossocial, segundo estabelecido nos critérios de exclusão acima, utilizando os seguintes indicadores:

110 diagnóstico padronizado pela Classificação Internacional de Doenças – CID 10, autonomia no desempenho das atividades de vida diária e condição psíquica por meio de anamnese psicológica, além de ter sido avaliada a condição legal (se está sob curatela ou não).

O pesquisador principal fica responsável em manter em sigilo as identidades dos participantes da pesquisa. Permanece a responsabilidade de também apresentar o relatório final da pesquisa à equipe técnica do CAPS II do Paranoá, por comunicação oral dos resultados em reunião de equipe, com o objetivo de que sua ação possa propor discussões na equipe e sirva como modo de avaliação das ações realizadas por ele. Especialmente em relação às gravações das entrevistas, às transcrições e aos demais materiais que expõem dados identificatórios dos sujeitos, todos serão mantidos sob a responsabilidade do pesquisador e serão destruídos após o fim da pesquisa.

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Capítulo VI