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Da experiência de ilusão ao viver criativo com a cultura

A Cultura como campo de transicionalidade e viver criativo

4.1 Da experiência de ilusão ao viver criativo com a cultura

Para a compreensão da cultura como área intermediária entre a criatividade primária – e silenciosa, ou alucinatória, nos casos de sofrimento grave, por estar escondida detrás do falso-self – e a percepção objetiva da realidade (WINNICOTT, 1971/1992), vemos a necessidade de contextualizar o conceito de ilusão na obra de Winnicott.

É a partir da experiência de ilusão que o bebê vai, progressivamente, construindo essa área, já que: “A adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este uma ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar” (WINNICOTT, 1975, p. 27). O fenômeno da ilusão permite ao bebê encontrar no ambiente o suprimento de suas necessidades, no campo da

73 transicionalidade, pois o acolhimento das necessidades do bebê deve ser realizado para ele poder suportar, progressivamente, as falhas ambientais, desde que predomine a constância e a confiabilidade do ambiente como pré-requisitos à autonomização. Winnicott (1959/1994) mostra que a experiência de ilusão permite que o ambiente apresente ao bebê objetos reais, os quais são concebidos, inicialmente, de modo alucinatório.

Portanto, a adaptação ativa da mãe às necessidades do bebê o capacita para confiar no ambiente, introduzindo-o à vida simbólica e a acreditar que os objetos encontrados no mundo são reais, já que, nos estágios iniciais, a mãe permite “tornar real a alucinação” vivida pelo bebê. O ritmo do espaço entre bebê e mãe – ou analisando e analista – é ditado pela dupla, de modo que a mãe, pela devoção sensível às necessidades do bebê vai, progressivamente, lhe apresentando a realidade objetiva, trazendo a ele sua presença de modo paradoxal, que se revela como alteridade e familiaridade, ao mesmo tempo, no encontro entre o gesto do bebê e o da mãe (SAFRA, 2004).

Nesse sentido, vai sendo possível a desilusão do bebê, a partir do momento em que ele pode suportar a ausência da mãe como presença – dimensão paradoxal – revelando que, após a presença constante e confiável do ambiente, esta pode ser introjetada pelo bebê dando-lhe condições para viver a integração, existir com o mundo e sentir-se vivo, real e criativo (WINNICOTT, 1971/1992). É na experiência de ilusão e, posteriormente, desilusão, que se constrói a autonomização na teoria winnicottiana, remetendo à sua discussão sobre a capacidade de estar só, após a introjeção da presença do ambiente suficientemente bom (WINNICOTT, 1957/1983, 1971/1992). O autor situa que, se o bebê vive o fenômeno de ilusão sem ter quem acolha sua capacidade criativa, o vive como loucura solitária, alucinando um mundo que desejaria viver, porém que nunca lhe foi apresentado pelo ambiente (1971/1992, WINNICOTT). Já no campo da cultura como transicionalidade, a vivência deste fenômeno pode ser compartilhada e inscrita na realidade por meio de suas produções culturais singulares, assentadas na tradição e herança cultural (SAFRA, 2004).

É importante contextualizar que a compreensão de Winnicott sobre a Cultura sempre faz referência à experiência na cultura, ou seja, ao uso criativo desta que o bebê vai adquirindo, progressivamente. Para o autor, usar consiste em uma atividade mais

74 complexa que o relacionar-se com os objetos, já que este último pode acontecer ainda de modo alucinatório, fazendo referência apenas à sua realidade interna (WINNICOTT, 1971/1992). O uso do objeto implica, no início, a aceitação do princípio da realidade e a posse singular do objeto, ao mesmo tempo. Isso ocorre pela passagem da relação com os objetos, e, posteriormente, na possibilidade de o objeto sobreviver às tentativas de destruição pelo bebê, permitindo a entrada daquele no registro da transicionalidade e no preenchimento do espaço potencial pelos movimentos criativos do bebê.

Portanto, sempre discutiremos o uso criativo que o sujeito faz da cultura, ou sua impossibilidade de realizá-lo, levando-o a viver as relações objetais de modo alucinatório para o resto da vida, ou consistindo em sua submissão à realidade, ficando seus movimentos criativos escondidos por detrás do falso-self (WINNICOTT, 1971/1992). Assim, o termo uso não faz referência a uma categoria utilitarista, mas, pelo contrário, versa sobre a possibilidade de o bebê viver sua primeira posse de objeto não-eu, entrando no registro dos fenômenos transicionais, tendo a sua abertura a relacionar-se com grupos e sentimentos afetuosos, sendo, posteriormente, o fundamento da amizade e da aceitação da realidade externa (ABRAM, 2000).

Winnicott comenta que a experiência cultural faz referência, essencialmente, à experiência de usar os fenômenos transicionais pelo brincar. Conceitua a cultura como a tradição herdada que só existe como algo original se situado na tradição, simbolizando a dimensão paradoxal da união–separação, algo: “do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos” (WINNICOTT, 1975, p.138). Conforme foi discutido anteriormente, Winnicott está interessado em compreender “do ponto de vista do bebê” (NAFAH NETO, 2009) como ele vive a cultura, já que sua teoria foca-se na cultura como superposição do brincar de duas pessoas, a mãe e bebê, ou a relação entre analista e analisando. Posteriormente, o ambiente auxilia o bebê, ou o sujeito, a inserir-se no e com o mundo simbólico, permitindo a ele “brincar” com a tradição humana, por sua originalidade pelo gesto espontâneo (SAFRA, 2004).

Portanto, o autor não utiliza nenhuma concepção que pense a Cultura como entidade externa ao sujeito, ou restrita às práticas sociais, mas como experiência transicional, assentada na passagem do legado geracional, como tradição herdada, “produto da tradição oral”, na qual “é possível perceber a existência de um fundo cultural, estendendo-se por seis mil anos, e fazendo a história da cultura humana.”

75 (WINNICOTT, 1975, p.138).

Em capítulo anterior, discutimos os modos como a cultura popular é transmitida pela tradição oral e pelas narrativas, o que acreditamos poder ser compreendido pela noção de experiência cultural pela Psicanálise Winnicottiana, como experiência original, assentada na tradição, versando sobre o viver criativo do sujeito no e com o mundo.

Godoy (2007) afirma que uma contribuição importante desse autor é não separar a apresentação do sujeito em suas dimensões discursivas das funções sensoriais, o que faz com que, mesmo as práticas culturais mais sofisticadas, sejam compreendidas como originadas nas primeiras experiências do bebê com o mundo, pelas vivências de ilusão, as quais são vividas esteticamente, já que o bebê apenas apresenta a capacidade simbólica potencialmente. Com isso, a saúde psíquica é compreendida longe do terreno da ausência de patologia, referindo-se ao sentir-se vivo e real no e com o mundo. Godoy (2007), ao fazer referência às questões colocadas por Winnicott em sua obra Playing

and Reality (1971/1992), afirma:

(...) a possibilidade de viver experiências no campo da transicionalidade é o que assegura o enriquecimento do indivíduo, sua ligação com o passado e a possibilidade da construção ativa de seu próprio futuro. Não encontramos ai as condições da saúde psíquica? (p. 102)

Assim, retomamos a tese desse trabalho de que toda abordagem saudável e, portanto, criativa, origina-se na inscrição do sujeito na cultura, que se dá no espaço potencial, como afirma Godoy (2007): “(...) é de onde, sem o abandono de nós mesmos, alcançamos o outro” (p. 112). Em diversos momentos, Winnicott (1971/1992) comenta o modo como as experiências culturais e a aquisição da capacidade de usar os objetos e fenômenos transicionais é um modo de viver saudável, e só é possível por meio da vivência de maternagem suficientemente boa que capacita o bebê a confiar no ambiente e viver as experiências culturais como união à adaptação materna, e separação, na criação original do sujeito sobre e com o mundo.

Em sua discussão sobre O Destino do objeto transicional, Winnicott (1959/1994) comenta a proximidade que o viver criativo e saudável tem com a experiência de loucura, já que a experiência que vivemos no fruir artístico e na inserção criativa na cultura permite que sintamos que “a experiência, acoplada à preparação que

76 eu mesmo fiz para ela, capacita-me a criar um fato glorioso. Eu o desfruto porque digo que o criei, alucinei-o, e é real, e teria estado lá houvesse eu ou não sido concebido” (WINNICOTT, 1959/1994, p.47). O autor comenta que, tanto na vida cultural, quanto na vida do bebê, “aceitamos a Loucura”, já que podemos projetar nossas percepções imaginativas em objetos e pessoas externas, podendo a realidade externa tornar-se para nós “uma veste para os nossos sonhos” (WINNICOTT, 1959/1994). Consideramos, neste estudo, que esses fenômenos descritos podem ser compreendidos como a inserção do sujeito na cultura, ou seja, a aceitação da realidade externa sem a perda do contato com o self, e a sua inserção com a cultura. Essa inserção consiste em processo criativo de encontrar na realidade externa o que havia criado em sua realidade interna. Discutiremos a seguir os modos como essa compreensão de cultura pode consistir em dispositivo clínico na atenção a sujeitos em sofrimento psíquico grave, buscando a prática sensível à sua inserção na e com a cultura.

4.2 Dimensões clínicas da cultura no cuidado com sujeitos em sofrimento psíquico