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Percursos metodológicos e narrativos

5.2 A Narrativa como recurso de pesquisa

92 estudo de narrativas pode propiciar a abertura ao processo histórico de constituição dos usuários dos CAPS, anteriormente à busca ao serviço, até seu momento atual, e sua projeção futura. Essa metodologia permite a construção de análises biográficas que situem a história do sujeito em função de determinado acontecimento de sua vida ou de seu contexto social (BAUER & GASKELL, 2000). A narrativa é colocada como experiência de reconstruir a própria história para alguém, o que a coloca necessariamente direcionada ao entrevistador como sujeito, ao mesmo tempo, sem utilizar a estruturação de entrevistas diretivas, possibilitando que o sujeito se coloque na narrativa por meio de seu “idioma pessoal” (SAFRA, 2004, 2006b). Em todo narrar há uma experiência a ser contada para alguém, criando um espaço potencial, no qual – no campo dos objetos e fenômenos transicionais – é transmitido o conhecimento de geração a geração (SAFRA, 2006a).

Walter Benjamim (1936/1994), ao discutir a contribuição da obra de Nikolai Leskov ao estudo das narrativas, traz reflexões importantes sobre o papel das narrativas na transmissão do saber transgeracionalmente e em relação à perda das narrativas com a atual ênfase na comunicação pela informação. Para esse autor, as narrativas têm uma aproximação com o ato de dar conselhos, não como prática de responder a alguém, mas com meio de dar continuidade ao existir, às experiências transmitidas na narrativa que ficam em aberto para que sejam contadas e reconstruídas tanto pelos ouvintes quanto por futuros narradores.

Benjamim remonta o caráter artesanal do ato de narrar como algo que não se perde no tempo nem busca transmitir o conhecimento puro ou verdadeiro, em oposição à informação que busca verificação imediata e torna-se obsoleta em pouco tempo. A narrativa imprime a marca do narrador no ato de recontar a mesma história diversas vezes, sempre com a possibilidade de reinventá-la, transmitindo, ao mesmo tempo, saberes transgeracionais. O ouvinte tem papel ativo na construção da narrativa, já que seu interesse em conservar o narrado o mantém unido ao narrador. Benjamim situa que, mesmo as narrativas escritas, têm sua origem na transmissão oral e na esperança de comunicar o que é experienciado, com suas raízes na vida cotidiana do povo.

Utilizamos essas referências na realização da entrevista narrativa e em sua análise, uma vez que nosso objetivo não é ter perguntas respondidas ou buscar alcançar o saber verdadeiro em relação à história de cada sujeito. Pelo contrário, buscamos

93 propiciar um espaço de construção entre narrador e ouvinte, que permita que a narrativa seja reconstruída com o esforço de visibilizar a autoria do narrador sobre a experiência vivida em sua inserção na e com a cultura popular.

Ao comentar esse texto de Benjamim, Safra (2006b) discute como a narrativa busca tornar presente e compartilhada – no espaço potencial – uma experiência que foi vivida como saber sobre a condição humana, enraizada em uma comunidade. Para Safra, a dificuldade da sociedade atual em construir registros temporais que comportem o durar, experimentar e compartilhar faz parte do fenômeno do desenraizamento. Portanto, o ato de narrar permite, no contexto analítico, dar contorno ao gesto espontâneo do analisando, recolocando suas questões existenciais frente à sua comunidade, propondo dinâmica semelhante ao jogo do rabisco, já que este não busca apenas interpretar o conteúdo inconsciente, nem pode ser reduzido como técnica. O narrar apresenta a oportunidade de compartilhar uma experiência, consistindo em abertura ao acontecimento e crítica ao estabelecido, conforme pontua Safra (2006b):

O conto não só acolhe, possibilita o perdão e enraíza, mas também traz o desconforto decorrente do inédito, o que implica certa desconstrução de si. O narrar tem um pé na tradição e outro na abertura para o futuro e para o inédito. (...) Narrar implica acolhimento da posição originária, a partir da qual um gesto se torna possível e insere algo de singular como contribuição para todos os outros homens. (p.32-33)

Dutra (2002) comenta que o ato de contar e escutar uma experiência envolve um

estar com-no-mundo, como experiência vivida de participar da história e reconstruí-la,

por nossa condição de não acabamento existencial. Essa autora utiliza as contribuições de Benjamim e Heidegger para pontuar a utilização da narrativa pela ótica fenomenológica e existencial. Com isso, retoma que a interpretação das narrativas só pode acontecer se falamos ao sujeito, e não do sujeito, visto que pela narrativa há uma abertura à experiência entre pesquisador e pesquisado. Figueiredo (1994) explica que, para Heidegger, a “(...) compreensão e interpretação são dimensões originárias do estar- no-mundo; ou seja, o homem é compreendendo o mundo que se abre para ele e interpretando os entes que se mostram a ele dentro do mundo” (FIGUEIREDO, 1994, p.18).

94 É importante destacar que o conceito de compreensão utilizado por Heidegger não faz referência a um ato reflexivo e racional, conforme discutido anteriormente. Ela se dá como forma de ser-no-mundo e estar-com o outro, aspecto que interroga o ser em relação à sua abertura e ao não acabamento existencial (DUTRA, 2002). Com essas formulações, propomos a compreensão da narrativa como forma de o sujeito exercitar a compreensibilidade frente ao mundo e interrogar seu ser-no-mundo, possibilitando a vivência de ser-com o outro, estabelecendo um encontro no contexto da pesquisa pelo estudo de narrativas, como afirma Dutra (2002):

Isso porque o encontro ao qual nos referimos aqui implica a abertura dos sujeitos à experiência, nesse caso, pesquisador-pesquisado, quando um deles revela-se para o outro, que, por sua vez, é afetado por essa e na sua experiência. (p. 374).

Cabe situar que estamos discutindo algumas das contribuições da fenomenologia ao estudo de narrativas, porém reconhecendo que a fenomenologia não pode ser compreendida como um todo, unificado e com saberes unívocos. Portanto, delimitamos o referencial fenomenológico que utilizamos neste estudo como aquele proposto por Heidegger e alguns estudiosos de sua obra, diferentemente da proposta de redução fenomenológica proposta originalmente pela fenomenologia de Husserl. Este último compreende a razão ligada à subjetividade pelo método especulativo-dialético de Hegel, utilizando a redução fenomenológica como método para alcançar o mundo vivido, ou seja, a essência do ser (DUTRA, 2002).

Já Heidegger (1927/1999), admitindo a impossibilidade de ser realizada a redução completa do fenômeno, propõe método especulativo-hermenêutico, redimensionando a questão do ser à sua disposição afetiva, a qual nos dota de compreensibilidade anterior à cognição e à consciência. Portanto, concordamos com esse autor ao acreditarmos que a existência do ser no e com o mundo não se limita à subjetividade, mas se funda na interrogação do ser em relação ao seu mundo vivido.

Acreditamos que a metodologia de estudo das narrativas, por meio de referencial analítico e fenomenológico, nos permite buscar meios de os usuários dos serviços de saúde mental construírem seus modos singulares de posicionarem-se historicamente frente às suas experiências, recolocando suas questões originárias em seu horizonte

95 existencial a partir de sua relação de ser-com e no mundo, vivido por sua condição de abertura existencial. É em seu caráter de crítica ao estabelecido e de acontecimento inédito, assentado na tradição, que os sujeitos podem compartilhar suas experiências frente à alteridade paradoxal. Assim, a narrativa oferece espaço acolhedor e experiência de não integração, ao mesmo tempo, possibilitando o viver criativo dos sujeitos em sofrimento psíquico grave.