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3. LACAN: DA CONTINGÊNCIA À “VERDADEIRA

3.1 CONTINGÊNCIAS DO SER: A MORTE, A MULHER, O

Freud, (1953-54), Lacan comenta como Freud fora atraído pelo sentido

e pelo significado dos sonhos e dos sintomas, interessado que estava nos enigmas de sua própria história, de seus próprios sonhos. ―Daí ser Freud para todos nós um homem que, como cada um, está colocado no meio de todas as contingências – a morte, a mulher, o pai.‖ (LACAN, 1986/1953-54, p. 10), diz ele. O que nesse Seminário Lacan nomeou como ―retorno às fontes‖ – da parte de Freud, mas também de sua parte na tentativa de resgatar o caminho percorrido pelo seu antecessor –, aponta de entrada o destaque por ambos conferido à mulher na teoria psicanalítica.

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Ainda que Freud tenha usado a expressão ―desenvolvimento psicossexual‖ e que muitas vezes seja inevitável referir-nos aos processos subjetivos pelo termo ―desenvolvimento‖, não é possível, pela psicanálise, compreender a psicossexualidade no mesmo sentido que algumas disciplinas da Psicologia, por exemplo. Isso se deve a duas razões: porque não operamos com a ideia de um normal ideal a ser atingido por um desenvolvimento de etapas previstas (igualmente ideais); e porque as fases e processos descritos por Freud e Lacan se sobrepõem em um percurso não linear e não progressivo, uma vez submetido ao funcionamento inconsciente, ou seja, sua outra lógica de temporalidade e também à plasticidade de fixações, regressões, deslocamentos e condensações.

Mas o que significa a inclusão da mulher nessa série de ―contingências‖? Do latim, contingentia significa acaso25

, e pode ser compreendida como uma circunstância, eventualidade, ou acontecimento. No entanto, trata-se de um ―acontecimento do qual não podemos reduzir o aparecimento a um feixe de causalidades; é um acontecimento (como uma emergência) de ocorrência possível, mas incerta‖ (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1993, p. 56). Na lógica clássica, ela representa um tipo de proposição que não é necessariamente verdadeira, nem necessariamente falsa. Ainda no domínio da filosofia, a contingência é aquilo que pode ser, se opondo assim à necessidade, que não pode deixar de ser. ―O contingente implica, portanto, a ausência de um determinismo rígido‖ (DUROZOI; ROUSSEL, 2005, p. 106).

Para os filósofos da existência26, a contingência é uma característica fundamental do ser, uma vez que não possui, em si mesmo, sua própria razão de ser e cuja existência não é, portanto, necessária. A finitude do ser humano figuraria então como sua contingência radical; daí também a morte inserida na série de contingências do ser compreendida por Lacan.

Assim, o caráter contingencial do pai e da morte como elementos da série refere-se à impossibilidade de deduzi-los por uma cadeia prefixada ou por um determinismo rígido. Adotando como orientadores esses outros elementos da série (o pai e a morte) no desenvolvimento teórico de Lacan, seria igualmente possível pensar que a mulher como contingência demarca, assim como esses outros dois elementos, sua importância como função. Trata-se da escolha de uma maneira de conceber o sentido da contingência no contexto em que ela é discutida.

Entende-se aqui por função27 o uso estabelecido por Lacan ao longo de suas discussões, como, por exemplo, nas expressões função

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O termo acaso torna inevitável sua associação ao correspondente grego tyché, central na tragédia de Eurípides e comentado na teoria de Jacques Lacan acerca da compulsão à repetição e do conceito de real, em oposição ao automaton de Aristóteles. O acaso na tragédia grega, em especial, na Medeia de Eurípides e na concepção de feminino, elaborada por Lacan no período compreendido pela presente pesquisa serão debatidos nas seções finais. 26

Kierkgaard, Jaspers, Heidegger, Marcel e naturalmente Sartre, para citar os mais conhecidos.

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Em A significação do falo (1958), por exemplo, Lacan (1998/1958b, p. 700) relaciona muito intimamente os termos ―significação‖ e ―função‖ (o que assinala a importância do simbólico no uso do termo) e, ao mesmo tempo, utiliza uma referência à matemática, ao dizer que ―o falo como significante dá a razão do desejo (na acepção em que esse termo é empregado como ‗média e

paterna, materna, função da linguagem, função do objeto, etc. Ainda

que não haja trabalhos específicos sobre este uso, é possível observar que, especialmente na década de 50, Lacan estava impregnado dos termos da linguística (a função na e da linguagem) e do estruturalismo como um todo (a função em termos das relações que se estabelecem dentro de uma determinada estrutura com um determinado funcionamento). Por fim, há a incorporação de um sentido matemático, a saber, a função como lei (para cada valor corresponde um elemento) que reitera o valor relacional da função. Assim, ao sugerir pensar as contingências em termos de função, são levadas em conta todas essas noções, que poderiam ser resumidas como o efeito mais ou menos estruturado ou estabelecido por uma organização cultural e/ou individual.

Nesse sentido, o pai, a morte e a mulher constituem funções distintas, que podem deixar de incidir ou variar quanto a sua incidência no sujeito. Assim, o modo circunstancial como esses ―eventos‖ incidem é que determina a importância/resultado – mas também a incerteza – de sua função. São, enfim, modalidades que operam de acordo com sua inscrição e com a posição do sujeito que se constitui por esse processo. A morte, por sua vez, só pode ser compreendida em seu estatuto de contingência ou função, na medida em que está posta como inevitável – mas ao mesmo tempo, desconhecida como experiência – e associada à noção de desamparo28 inauguralmente destacada por Freud (1926; 1930). Da mesma forma, o papel da pulsão de morte ou Tanatos reafirma a possibilidade dessa interpretação.

Nesse momento da obra de Lacan – da ―primazia do simbólico‖29 e do desenvolvimento dos registros do imaginário30 e do real31 – a razão extrema‘ da divisão harmônica). Outrossim, é como um algoritmo que vou emprega-lo agora [...]‖ Vale lembrar que o algoritmo se refere, grosso modo, a uma combinação de elementos que, corretamente empregados, solucionam ou satisfazem determinado problema.

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Ver p. 38. 29

Esta expressão é utilizada para designar os primeiros anos do ensino de Lacan, que se caracterizam pela ênfase do registro simbólico na constituição subjetiva. Extraído da antropologia, o termo simbólico foi empregado por Lacan, a partir de 1936 e como substantivo masculino, ―para designar um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia, permitindo-lhe referir- se a ele, consciente e inconscientemente ao exercer sua faculdade de simbolização. Utilizado em 1953, no quadro de uma tópica, o conceito de simbólico é inseparável dos de imaginário e real, formando os três uma

mulher tomada como possibilidade representa, assim, uma das contingências do ser. Mais tarde (especialmente após a década de 1970), a partir da prioridade conferida ao terceiro registro (o Real) na formalização de uma nova tópica (R.S.I) centrada na noção de gozo32, surgirão afirmativas em que o caráter contingencial da mulher parece atingir seu patamar absoluto, especialmente a de que A mulher não

existe (1972-73)33. Aliás, em 2004, já levando em conta os sete últimos Seminários de Lacan (em especial O Sinthoma, 1975-76), Miller é estrutura. Assim, designa tanto a ordem (ou função simbólica) a que o sujeito está ligado quanto a própria psicanálise, na medida em que ela se fundamenta na eficácia de um tratamento que se apoia na fala.‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 714)

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O termo Imaginário é ―[...] correlato da expressão estádio do espelho e designa uma relação dual com a imagem do semelhante. [...] o imaginário se define, no sentido lacaniano, como o lugar do eu por excelência, com seus fenômenos de ilusão, captação e engodo‖. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 371)

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O conceito de real passa a fazer parte do pensamento lacaniano a partir de 1953, inspirado no vocabulário da filosofia e no conceito de realidade psíquica de Freud. O real passa a ―designar uma realidade fenomênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar.‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 645).

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O conceito de gozo atravessa toda a obra de Jacques Lacan. Inicialmente relacionado ao prazer sexual, ele passa a implicar a ideia de uma transgressão da lei, associando-se ao campo das perversões sexuais (ROUDINESCO; PLON, 1998). Relaciona-se também ao masoquismo, em sua íntima relação com a compulsão à repetição. A partir da década de 1970, Lacan utiliza o conceito ―no âmbito de uma teoria da identidade sexual, expressa em fórmulas da sexuação que levaram a distinguir o gozo fálico do gozo feminino.‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 299).

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Esta polêmica afirmação foi colocada por Lacan (1972-73) para questionar um universal feminino. Decorre do que chamou de ―fórmula da sexuação‖, isto é, sua utilização do quadrado lógico de Apuleio, contendo quatro proposições lógicas a respeito do falo e da exceção à castração. A partir dessa formalização, Lacan insiste que se considerem as mulheres uma a uma, diante da inexistência de um conjunto que defina ―A‖ mulher. O conjunto do ―todo‖ sustenta-se por uma exceção e, por isso, é possível definir um conjunto masculino, centrado no funcionamento fálico, em função da exceção paterna à interdição, sustentada por Freud (1913) em Totem e Tabu. O mesmo não pode ser dito em relação à mulher que, de acordo com esta lógica, fica não-toda inscrita no funcionamento fálico. Tal formulação permite a Lacan atribuir ao feminino um gozo que não se insere na vertente fálica, um gozo que, por esta razão, decidiu chamar de feminino ou gozo Outro.

categórico a respeito da noção de contingência: ―O que é da ordem do acontecimento [événement] propriamente dito, é o que não poderia acontecer, tudo o que sai do círculo do possível. Este é o sentido exato que Lacan dá à contingência‖ (MILLER, 2004, p. 63. Tradução da autora34).

Por enquanto, é importante lembrar que essa formalização lacaniana do tema sustenta-se, não obstante, na conhecida noção freudiana de psicossexualidade e sua plasticidade, comentada nos próximos parágrafos a respeito dos Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, 1905). Será adotada a sequência do pensamento lacaniano na tentativa de esclarecer o raciocínio teórico que subsidia sua afirmação sobre o ato da ―verdadeira mulher‖. A seguir, a noção de contingência referida à mulher será explicada ao adquirir um estatuto de ―questão do ser‖. Essa noção, por sua vez, pode ser tomada como a versão lacaniana da mulher como o ―continente obscuro‖ freudiano, representando, como ―questão do ser‖, o enigma maior que o sexo impõe ao ser.

3.2 QUESTÕES DO SER: O SEXO, A MORTE, A PROCRIAÇÃO