• Nenhum resultado encontrado

O contista Monteiro Lobato e o gosto pelo ato de narrar histórias

Antes de lançar-se como autor de literatura infantil, com A Menina do Narizinho Arrebitado, de 1920, Lobato é respeitado por seu talento como contista. O gosto pelo ato de narrar histórias, aliás, marca vários momentos da vida do autor. É importante que se recuperem alguns desses momentos na seqüência do trabalho, privilegiando, pois, a prosa de ficção da série literária designada pelo próprio autor de Literatura Geral. Essa motivação básica para o contar, narrar histórias irá determinar, em grande parte, a sofisticação discursiva alcançada no livro analisado, Reinações de Narizinho.

Edgard Cavalheiro aponta como provável primeira produção de Lobato com seu próprio nome o conto “Gens ennuyeux” (Gente aborrecida), publicado em O Onze de Agosto, o jornal do órgão estudantil da Faculdade de Direito de São Paulo, onde o escritor ingressa em 1900. A publicação dá-se em 1904, como resultado do primeiro lugar obtido pelo ficcionista num concurso de contos promovido pelo referido órgão. Monteiro Lobato ganha a seguinte avaliação de Amadeu Amaral: “... trecho bem construído, de prosa forte, maleável, corrente, colorida, e sobretudo tão pessoal e tão espiritualmente irônica.”85 Percebe-se que algumas das qualidades que fariam do autor um mestre da narrativa já são reconhecidas nessa primeira publicação: o domínio do curso da narração, a capacidade de envolver o leitor, a espontaneidade e originalidade de seus meios, o toque irônico.

Quando se forma em Direito, o que se dá também em 1904, aos vinte e dois anos, o escritor já possui contos e crônicas suficientes para um livro, mas ainda acha prematuro lançar-se na cena literária brasileira. Revela isso ao amigo Godofredo Rangel, com quem inicia, ao retornar a Taubaté, uma longa correspondência, posteriormente recolhidas em volume por Edgard Cavalheiro, sob o título A barca de Gleyre. Com o amigo, Lobato discute muitos assuntos, mas os literários têm primazia nas cartas. É tão grande sua preocupação com a técnica narrativa, que, mesmo sendo possuidor de recursos admiráveis como prosador, o que já fora reconhecido por Amadeu Amaral, ainda é severo na autocrítica:

85 “Vida e obra de Monteiro Lobato por Edgard Cavalheiro”, prefácio de Urupês, 9.ed. São Paulo: Brasiliense (1a

Tenho um defeito grave: espremo e encurto demais o enredo, não o esclareço bem, não dou coloridos de transição, faltam-me tons, passo bruscamente duma coisa para outra, de modo que eu me entendo mas não me entendem os outros.86

Em outra carta, Lobato expõe a Rangel suas ambições como ficcionista e afirma que quer escrever contos como os de Maupassant, de Kipling, narrativas “concentradas”, que tenham “drama” ou que o levem a “entrever” drama. Diz que anseia por textos “com perspectivas”, que façam o leitor interromper a leitura para fixar-se numa “mosca invisível”, ou seja, para meditar sobre o que está no conto. Ele fala ainda da intenção de, através de sua ficção, deflagrar o que vai dentro do leitor e que não encontra expressão: “coisas”, “idéias”, “imagens”, “desejos”. Finaliza dizendo que quer escrever contos os quais o leitor possa resumir e contar a um amigo, e que, também esse amigo possa se interessar pelo texto87.

As ambições do autor não são poucas, e como já tivesse decidido a somente publicar um livro quando se considerasse amadurecido e seguro quanto aos princípios da arte narrativa, continua escrevendo, sempre com pseudônimos, e lendo muito. Datam de 1906 as produções “De como quebrei a cabeça à mulher do Melo” e “O pito do Reverendo”.

Em março de 1906 é nomeado para a promotoria de Areias e lá, em meio à desolação do lugar, busca refúgio na literatura. Faz traduções e as vende para o jornal O Estado de S. Paulo. Em 1909 escreve o conto “Júri na roça” e começa a trabalhar em outro, “Bocatorta”. Inicia a colaboração modesta para o periódico Tribuna de Santos e avalia a proposta do amigo Godofredo Rangel de publicarem um volume de contos a quatro mãos, mas ainda não crê que chegara o momento de publicar um livro. Pensa em reescrever alguma história já publicada e surge a idéia do conto “Os faroleiros”. O conto “Bocatorta” é enviado para o jornal Tribuna de Santos e desenhos e caricaturas são mandados para o periódico Fon-Fon, do Rio de Janeiro. Nessa colaboração, usa o pseudônimo H.B.

Os anos se passam, Lobato casa-se, tem filhos, recebe a herança do avô, o Visconde de Tremembé, que falece em 1911. Torna-se proprietário de casas, terras, fazendas. O plano da publicação do livro é adiado mais uma vez, agora em função de suas atividades como fazendeiro. Do contato com a gente simples do meio rural, os caboclos, nasce a idéia de

86 “Vida e obra de Monteiro Lobato por Edgard Cavalheiro”, prefácio de Urupês, 9.ed. São Paulo: Brasiliense (1a

série das “Obras Completas de Monteiro Lobato”), p. 7.

escrever sobre o assunto para mostrar, às pessoas cultas dos grandes centros, o quanto eram escamoteadas as privações de toda ordem sob as quais viviam esses seres.

Em princípio pensa em escrever um romance sobre o caboclo, depois, uma série de contos, mas, reconsiderando, acha que a nação precisa mesmo é de um “libelo”, que assombre os poderosos. Envia, em 1914, ao jornal O Estado de S. Paulo, uma carta, que intitula “Velha praga”, onde reclama das queimadas constantes das matas nos tempos de estiagem e inicia as críticas ao homem do meio rural brasileiro. O secretário do jornal dá a esse documento um destaque inesperado, e, em vez de sair na seção de “Queixas e reclamações”, sai como artigo, granjeando a admiração de pessoas importantes da capital, que chegam mesmo a enviar cartas a Lobato, cumprimentando-o pelas palavras.

A repercussão da carta anima o escritor a publicar outros textos, como “A Hostefagia”, um estudo sobre a guerra de um ponto de vista novo, como ressalta o autor a Godofredo Rangel88. Continua usando pseudônimos e ainda não publica nenhum livro. Torna-se famoso por seus artigos e, quando viaja a São Paulo, seus admiradores o festejam. Advindas as dificuldades com a fazenda, por causa, entre outras coisas, da crise do café, Lobato considera a possibilidade de vender sua propriedade.

Dentro do propósito de recuperar passagens da vida do autor que ilustram seu gosto pelo narrar, é importante mencionar o costume de misturar aos frios registros dos livros de contas da fazenda as anotações pessoais, líricas de um diário. O gosto pela literatura já se percebe pela letra do fazendeiro-escritor, nos livros mencionados, conforme observa seu biógrafo, Edgard Cavalheiro: “O que é literatura propriamente dita está numa letrinha caprichada; os negócios da fazenda, num garrancho apressado, quase ilegível.”89

A idéia de vender a fazenda se avoluma quando os textos de Lobato tornam-se contribuição assídua dos jornais, exigindo a presença mais constante do autor nos meios literários da capital. A Revista do Brasil é lançada em 1916 e, em março desse ano, tem início a famosa colaboração de Lobato para o periódico.

A revista, assunto da dissertação de Mestrado da autora do presente trabalho90, defendida em 1992, é, num primeiro momento, o veículo onde Lobato publica contos e textos com comentários críticos e teóricos sobre artes plásticas e livros. Em março de 1919, por

88 Monteiro LOBATO, A barca de Gleyre, p. 367 (1o tomo), carta de novembro de 1914. 89 “Vida e obra de Monteiro Lobato por Edgard Cavalheiro”, p. 14.

90 As categorias da literatura brasileira na Revista do Brasil (1916-1919), 1992. 353 p. 2v. Dissertação

exemplo, o autor faz a divulgação entusiástica do livro Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto. Motivado pela divulgação do livro Vida rústica, de Carlos da Fonseca, feita em agosto de 1918, teoriza sobre o conto e a crônica, com o propósito de estabelecer uma distinção entre os gêneros. É, sem dúvida, nas narrativas curtas veiculadas que está toda sua força, contudo.

De março de 1916 a novembro de 1919, as seguintes narrativas são publicadas: “A vingança da peroba”, “Bocatorta”, “A colcha de retalhos”, “A gargalhada do coletor”, “Pollice verso”, “Cavaleria rusticana”,”O mata-pau”, “O comprador de fazendas”, “O estigma”, “Pedro Pichorra”, “O plágio”, “O imposto único – Conto de natal”, “O caso do tombo”, “O fígado indiscreto ou o rapaz que saía fora de si”, “Gramática viva – De como se formam locuções familiares”, Por que Lopes se casou”, “O espião alemão” e “O luzeiro agrícola”. A contribuição expressiva do autor na seção de prosa de ficção da revista é prova de seu prestígio naquele momento e tem uma repercussão muito grande no circuito literário nacional, tornando Lobato ainda mais popular dentro deste.

A principal tendência da prosa de ficção publicada na revista, entre os anos de 1916 e 1919, é o regionalismo, conseqüência natural do nacionalismo que impulsiona o periódico. Em prosa, o sentimento amoroso do homem provinciano, com desfechos comumente trágicos, é aproveitado nas histórias de forma incansável pelos autores. São vários os ficcionistas que se ocupam da narração de casos “voltados para a verdade humana da província”, segundo uma síntese feliz de Alfredo Bosi91. A lista abarca celebridades do porte de Lobato, Afonso Arinos e Valdomiro Silveira; escritores com um índice menor de reconhecimento, caso de Veiga Miranda, Godofredo Rangel, Mário Sette e Léo Vaz, e regionalistas hoje esquecidos, como Amando Caiubi, Sérgio Espínola, Herman Lima, Otoniel Mota e Rodolfo Teófilo.

Grosso modo, a prosa de ficção lobatiana publicada na revista naqueles anos, admite a seguinte classificação: narrativas marcadas pelo tom trágico, contribuições em que a veia cômica tem unicamente a intenção de divertir o leitor, e produções nas quais Lobato se posiciona diante de determinados fatos e atitudes do momento, valendo-se do humor e da sátira. Na narrativa “O plágio”, por exemplo, satiriza-se o academicismo; em “Gramática viva”, os gramáticos e o clero; no conto “O espião alemão”, satiriza-se o patriotismo exacerbado e ingênuo. Na produção “Por que Lopes se casou”, há a seguinte passagem, clara nas farpas ao simbolismo, ao parnasianismo, e à sua composição poética por excelência, o soneto:

Lucas amou-a [a Nonoca Fagundes, mulher por quem a personagem Lucas, amiga do Lopes do título, se apaixona] em regra e sonetou-a inteira, dos cabelos aos pés, parnasianamente, nefelibatamente, com lirismo de comover às pedras.92

O cultivo da tragédia associada ao amor e aos seus descaminhos, como a traição, expresso nas narrativas “A vingança da peroba”, “Bocatorta”, “A colcha de retalhos”, “Cavalleria rusticana”, “O mata-pau” e “O estigma”, liga-se à intuição apurada de Lobato em relação às expectativas do leitor de qualquer época. Numa carta a Godofredo Rangel de maio de 1917, fala do gosto da humanidade pelas “bebidas fortes”, numa alusão aos dramas e paixões violentas que sempre seduzem e viciam. Como a visão comercial é uma característica que o escritor não demorará a expressar, nos empreendimentos que se seguirão à colaboração na revista, pode-se, portanto, relacionar o comentário feito a Rangel com seu tino empresarial.

O humor puro e simples das narrativas “O comprador de fazendas”, e “Pedro Pichorra” corresponde ao desejo de oferecer ao público o mesmo efeito da “pantomima cômica” dos circos. O autor emprega essa expressão numa carta ao amigo, datada de julho de 1917. Já a prosa “Pollice verso” é explicitamente definida por Lobato, numa carta de junho do mesmo ano, como “uma violenta mercurial contra os médicos”.

O estilo de Monteiro Lobato na contribuição ficcional para a Revista do Brasil faz escola. É nítida, por exemplo, no âmbito das produções veiculadas na revista e no que respeita ao tom satírico e à crítica, a influência do escritor em Sérgio Espínola e Godofredo Rangel, o interlocutor de Lobato nas famosas cartas. Edgard Cavalheiro identifica, como ele diz, “se não a influência, pelo menos a presença e o estímulo do contista”93 na ficção paulista produzida entre 1918 e 1922. Para o referido biógrafo de Lobato, Veiga Miranda, Amando Caiubi, Valdomiro Silveira, Cornélio Pires e Albertino Moreira são exemplos de escritores que sentem a presença e o estímulo lobatianos. É digno de nota, por outro lado, o esforço de Godofredo Rangel na construção de um caminho original.

No interessante e bem construído romance Vida ociosa, publicado no periódico entre maio de 1917 e janeiro de 1918, a crítica excede à exposição de idéias e atinge a forma literária. A lentidão peculiar ao transcorrer do dia no campo engendra uma técnica literária

92 Revista do Brasil, 11 (44): 326, ago. 1919.

que incorpora essa morosidade à forma de narrar. Com isso, nas palavras de Flora Süssekind, em Cinematógrafo de letras, Godofredo Rangel “reage à modernização urbana, à difusão de novos artefatos industriais e à crescente profissionalização dos homens de letras”.94

Entre os anos considerados, 1916 a 1919, Lobato passa de colaborador de prestígio a diretor e proprietário da revista. O dinheiro para a compra ele o obtém com a venda de sua fazenda, o que acontece em 1917, mesmo ano da publicação do volume O Saci-Pererê. O livro traz o resultado do inquérito sobre a personagem do folclore brasileiro promovido por Monteiro Lobato nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo. A publicação e distribuição do livro são de inteira responsabilidade do autor. O sucesso obtido com o volume leva-o a pensar em ser editor para publicar, por exemplo, os contos com motivos caipiras de Valdomiro Silveira. Decide-se, porém, a publicar seus próprios contos, pois já os têm em número suficiente para a composição da obra, mas os prepara cuidadosamente para isso.

Preparados os textos, escolhe o título “Dez mortes trágicas” para seu livro. Artur Neiva, contudo, ao saber da intenção de Lobato, sugere a substituição desse título para Urupês, palavra que intitulava um artigo do ficcionista contendo, de certo modo, uma elucidação sobre a feitura dos contos. Há que se fazer uma explicação sobre o significado desse artigo. Tal como acontece com texto “Velha praga”, que, por sinal, também aparece no livro Urupês, o artigo homônimo é implacável com o homem do campo, o caipira, que continua sendo duramente criticado.

O artigo “Urupês”, portanto, integra o processo de destruição da figura do caboclo como a personagem heróica dos livros regionalistas brasileiros do momento. Bernardo Élis95 vê os artigos referidos como constituintes de um programa seguido por Lobato na escritura de seus contos. Neste “programa”, o escritor cria a figura de Jeca Tatu, simbolizando o atraso, a inércia, o parasitismo do homem pobre da zona rural brasileira.

A sugestão da mudança do título é acatada de pronto e, em julho de 1918, Urupês chega às livrarias de São Paulo, não com dez, mas doze produções. Nove textos do livro - “Os faroleiros”96, “O engraçado arrependido”97, “A colcha de retalhos”, “Chóóó! Pan!”98, “Pollice verso”, “O mata-pau”, “Bocatorta”, “O comprador de fazendas”, “O estigma” - já tinham sido divulgados, preliminarmente, na Revista do Brasil, entre os anos de 1916 a 1918, e juntam-se

94 Flora SÜSSEKIND, “A técnica literária”, p. 96.

95 Paulo DANTAS (Org.), Vozes do tempo de Lobato, p. 62.

96 Na Revista do Brasil, esse conto foi publicado com o título “Cavalleria rusticana”. 97 No mesmo periódico, esse conto foi publicado com o título “A gargalhada do coletor”. 98 No mesmo periódico, esse conto foi publicado com o título “A vingança da peroba”.

a esses, no volume, os contos “Um suplício moderno”, “O meu conto de Maupassant”, e “Bucólica”.

É importante que se frise, no entanto, o apurado trabalho de preparação desses contos para a publicação em livro. Lobato adiou sua estréia como ficcionista, porque queria surgir com algo maduro, que identificasse um autor pronto e com um estilo próprio. Pode-se constatar isso nas cartas ao fiel interlocutor Rangel. Nestas o escritor menciona repetidas vezes o desejo de verdadeiramente impressionar em livro; do contrário, conforme ele reflete, nem valeria a pena publicar: “Essa história de vir com o primeiro livrinho e submeter-se à piedade da crítica e ouvir que somos uma “bela promessa”, isso não vai comigo. Ou entro e racho, ou não entro nunca.”99

Deve-se, portanto, avaliar a coletânea de contos Urupês como uma obra diferente daquela publicada na revista, embora a base seja a mesma. O volume é meticulosamente concebido para a publicação, e incontáveis aspectos são considerados para a estréia do ficcionista Lobato: a seleção cuidadosa das narrativas; a titulação por vezes alterada como já se apontou, tanto do próprio volume como de algumas histórias; a inclusão de contos novos e de artigos-programa; a reescrita dos textos; a incorporação das ilustrações do próprio escritor. Estas foram retiradas das edições posteriores por decisão de Lobato, mas podem ser observadas na reprodução desse material constante da edição de Urupês de 1957100. Todos esses aspectos, particularmente o que se refere à reformulação das produções, distinguem consideravelmente a recepção dos contos do volume daquela feita na revista. A propósito desse tema, Milena Ribeiro Martins afirma:

Verificamos que, de fato, a leitura do conto na Revista e no livro são diferentes, são influenciadas por fatores diferentes, seja por outros textos que compõem cada um dos veículos, seja pelas características próprias da Revista e do livro. Além dessas diferenças, há outras: aquelas introduzidas pelo escritor na passagem de uma versão para outra. E não são poucas, como vimos.

99 “Vida e obra de Monteiro Lobato por Edgard Cavalheiro”, p. 11.

100 Sobre esse assunto, Yone Soares de Lima avalia, no livro A ilustração na produção literária de São Paulo –

década de vinte: “Em edições mais modestas, a ilustração praticamente acompanhou o padrão gráfico do livro, apresentando-se menos eloqüente e menos pretensiosa. Sem qualquer desmérito à obra ou ao ilustrador, devemos reconhecer que Urupês, em sua primeira edição, foi um exemplo: teve suas ilustrações entre texto de autoria dividida entre J. Wasth Rodrigues e o próprio Monteiro Lobato...” p. 124.

Desde as mais “simples” reformulações lingüísticas, que perpassam todo o texto, até acréscimos e cortes substanciais, as alterações efetuadas interferiram no processo de leitura da obra. (...) Também a explicitação de referências históricas e literárias, além de outros tipos de preenchimento de lacunas do texto (através, algumas vezes, de notas de rodapé), contribuem para uma leitura mais completa dos contos. (...) O narrador é um dos canais de veiculação das mudanças da personalidade do escritor. Ora mais participativo, ora mais neutro, essa figura central da narrativa lobatiana não tem uma forma fixa e imutável dentro das diferentes versões. (...)

Além da alteração do narrador, outro tipo estrutural de alteração é feita sobre o efeito do texto – intensificando-o – ou sobre o desfecho, inserindo ou eliminando dele, normalmente, um comentário do narrador.101

O significado da publicação de Urupês na cena literária nacional é imenso. Edgard Cavalheiro a qualifica mesmo de “acontecimento sem precedentes na literatura brasileira”. A repercussão explica-se de muitas maneiras.

Em primeiro lugar, é um livro de prosa de ficção e, naquele momento, há uma produção rarefeita e pouco significativa no gênero. No texto de divulgação do romance Redimidos, de Silviano Pinto, no número de maio de 1919 da Revista do Brasil, o autor anônimo do comentário declara que Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Lima Barreto, Xavier Marques, Veiga Miranda e Canto e Mello são os únicos romancistas em ação no período.

Em função de outros assuntos que despertavam mais a atenção dos leitores, o fato é que os autores consagrados deixavam de produzir prosa estritamente literária. Não é por acaso que a Academia Brasileira de Letras passa a instituir, em 1919, de acordo com o comentarista do livro de Silviano Pinto, prêmios para os escritores novos como estímulo à produção. Edgard Cavalheiro afirma que, na ocasião da chegada de Urupês, os leitores, na verdade, vivem de releituras dos mestres do passado, como Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia.

Especificamente no exercício da forma literária conto e tomando-se a revista como parâmetro, já que é um dos mais importantes veículos de divulgação da literatura que se

101 Milena Martins RIBEIRO, Quem conta um conto... aumenta, diminui, modifica: o processo de escrita do

produz na época, além de Lobato, os escritores são os seguintes: Medeiros e Albuquerque, Afonso Arinos, Lima Barreto, Amando Caiubi, Tristão da Cunha, Jacomine Define, Sérgio Espínola, Teodoro Magalhães, Alberto de Oliveira, Rodrigo Otávio, Godofredo Rangel, Mário Sette, Rodolfo Teófilo e Léo Vaz.

Um esclarecimento necessita ser feito, contudo. Há autores desse grupo que mantêm

Documentos relacionados