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Neste último seminário recortado por esta pesquisa, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964), Lacan optou por destacar quatro conceitos da psicanálise, a saber, o 42 inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão, colocando-os no patamar de fundamentos. De uma lado, tal movimento tem, em grande medida, um caráter de resposta a IPA (International Psychoanalytical Association) diante da disputa inaugurada havia mais de uma década, por outro, aponta para uma espécie de fechamento do movimento de construção daquilo que chamou de objeto a, objeto da pulsão. Além disso, trata de substituir o termo técnica por praxis tendo em vista que o último “é o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja,

Daqui por diante citaremos o seminário Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse pelo título em

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português brasileiro Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” (LACAN, 1998, p. 14), tratamento este que fica muito claro quando se aborda, especialmente, o objeto causa do desejo e, por assim dizer, a construção deste campo do real.

Lacan começa, então, pelo inconsciente. Ao distinguir o inconsciente tratado por ele do que fora concebido por Freud, Lacan quer enfatizar o papel do simbólico em sua dimensão do inconsciente, colocando-o nos moldes de uma estrutura linguística, por um lado, e reafirmando sua articulação com o real, por outro, por exemplo, ao dizer que “o um que é introduzido pela experiência do inconsciente é o um da fenda, do traço, da ruptura” (LACAN, 1998, p. 30). Enquanto Freud buscava o inconsciente em fenômenos como sonhos, atos falhos, chistes, etc., tal busca se apresentava, para Lacan, em um caminho distinto à medida que Freud, segundo ele, não distinguia desejo de prazer. Assim, Lacan entende que

o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito – donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo – desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado (LACAN, 1998, p. 32).

Nessa perspectiva, o inconsciente se manifesta no campo do não-realizado, do não-nascido. Assim, o conceito de inconsciente aparece em profunda relação com o conceito de Unbegriff, o corte. Este corte está ligado a função do sujeito que se constitui na sua relação entre significantes e, por isso, a “causa inconsciente (…) é uma função do impossível na qual se funda uma certeza” (LACAN, 1998, p. 124).

Em vista disso, é salutar sublinhar a diferenciação que Lacan estabelece entre a sua compreensão do inconsciente e a de Freud. Para ele, o inconsciente freudiano possui uma concepção ôntica, tendo em vista que o ôntico, na função do inconsciente, é a abertura por meio da qual esse algo vem à tona – o caráter evanescente do inconsciente. Ou seja, tomando a dimensão ôntica do inconsciente, ele seria o evasivo. No entanto, sua formulação segue por uma outra via, já

esboçada no seminário VII, a saber, o estatuto do inconsciente é ético. Em suas palavras: “se formulo que o estatuto do inconsciente é ético, e não ôntico, é precisamente porque o próprio Freud não adianta isto quando dá seu estatuto ao inconsciente” (LACAN, 1998, p. 37).

Lacan compreende, assim, o inconsciente como produto da fala do sujeito e como esse movimento se desenvolve, já que o inconsciente, desde há algum tempo na obra lacaniana, é estruturado como uma linguagem. Dessa maneira, o “inconsciente, são os efeitos da fala sobre o sujeito, é a dimensão em que o sujeito se determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, em consequência do que, o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1998, p. 142).

A partir do que temos dito até aqui, essa concepção de inconsciente, ou melhor, essa reafirmação do caráter ético do inconsciente nos permite observar a insistência de Lacan em colocar as coisas bem articulada entre os registros da realidade. No caso em questão, o inconsciente - e toda a dimensão simbólica - parece ser verdadeiramente encaminhado para essa articulação com o real. A própria referência ao traço e ao um feita por Lacan é prova de sua empreitada. No entanto, resta-nos saber qual é o principal elemento para pensarmos essa articulação? Um pouco mais à frente voltaremos a este tema.

No que tange a repetição, Lacan procura diferencia-la do retorno, articulando o último com o real, já que o “real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – e esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra” (LACAN, 1998, p. 52). Nesse sentido, a falta pode ser encarada na teoria lacaniana como ingrediente importante para se pensar a repetição, pois “a função do ratear está no centro da repetição analítica. O encontro é sempre faltoso – é isto que constitui, do ponto de vista da tiquê, a vaidade da repetição, sua ocultação constitutiva” (LACAN, 1998, p. 123). Repetição e falta nos colocam no ponto onde Lacan vai discutir sobre o sonho do filho morto (retirado do texto freudiano), a falta da realidade do sonho e do encontro faltoso entre percepção e consciência.

O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição – aí está o que precisamos demarcar agora. Aí está, de resto, o que, para nós, explica ao mesmo tempo a ambiguidade da função do despertar e a função do real nesse despertar. O real pode ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-realidade, que testemunha que não estamos sonhando. Mas, por outro lado, essa realidade não é pouca, pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar de representação – é o Trieb, nos diz Freud (LACAN, 1998, p. 61).

Assim, ele busca sustentar não apenas a condição de se tratar o real via simbólico, mas também o papel da pulsão em sua teoria, que está condicionada nestes termos, e, em última instância, a funcionalidade analítica do desejo, enquanto conceito chave de seu pensamento. Nessa medida, o naturalismo de Freud esboçado em Lacan se refere ao corpo como possibilidade de dar realidade ao psiquismo.

Antes de avançar, é importante esclarecer o movimento que Lacan faz com relação ao objeto a neste seminário. O objeto a aparece aqui como uma espécie de fechamento do movimento do pensamento lacaniano que se estabeleceu nos seminários anteriores, trabalhados por nós, nesta pesquisa. Em outras palavras, o objeto a é aquele objeto “causa do desejo” e que é impossível, já que tem sua dimensão real. E assim, Lacan o coloca, em muitos momentos, relacionado ao olho como órgão na medida em que o associa ao falo, a falta – tema tangenciado nos últimos dois seminários. Ora, o olho não é, para Lacan, o objeto da anatomia ou da medicina, ele é, antes de tudo, uma instância corpórea que torna presente o sujeito por meio do olhar. Na verdade, o que ganha destaque para Lacan é o olhar, esse espírito, esse ato irremediavelmente humano, logo, construído - ou corpo como uma construção secundária, utilizando a expressão de Soler (1995). Em alguma medida, isso pode ser estendido para os outros atos humanos, como falar, tocar, ouvir, entre outros possíveis.

Todavia, o olhar ganha um certo privilégio, já que o olhar surge aqui como objeto do qual a fantasia é dependente, isto é, o olhar como condição da entrada do sujeito na realidade, ou melhor, da construção da realidade pelo sujeito. Em suas palavras: “a importância que o sujeito dá a sua

própria esquize está ligada ao que a determina, (...) objeto a” (LACAN, 1998, p. 83). Por essa via, Lacan destaca o privilégio do olhar na função do desejo, pois a relação do olhar com o que queremos ver é uma relação de logro, engano. É desse modo que o olho pode funcionar como objeto a, como faltante . Nesse sentido, “importa menos a referência ao espaço moldado segundo 43

necessidades epistemológicas […] do que a vacuidade essencial inerente aos objetos, não na sua dimensão de dados a conhecer, mas como isca apetecível do desejo” (BAIRRÃO, 2003, p. 45).

Com a voz não seria diferente, ela também entra nesse circuito. A voz seria, nesse contexto, o significante incorporado.

A voz é corpo sutil, matéria corpórea e matéria simbólica (enunciado, significante). É corpo “significantizado” ou significante corporificado em ato enunciativo. Este momento de criação, produção, uma vez enunciado já dito, realidade “vista”, “escrito”, já é passado (e portanto matriz, circunstância, herança de futuro). Mas antes, na voz “toca-se” o ato de dizer (Ibidem).

Não se trata aqui de buscar uma anterioridade da fala em relação à escrita. Porém, como pretende Bairrão, essa anterioridade é de ordem lógica, é da ordem da enunciação “corporificada em voz”. Expande-se assim para os outros atos, que são sempre corporais, como o desenhar, o escrever, o dançar, essa enunciação, esse movimento enunciativo. Já que “mesmo que a fala não se consubstancie em substância fonética, recorrendo-se a qualquer outro suporte de emissão significante, a forma do ato enunciativo decalca-se da estrutura pulsional do vocal” (BAIRRÃO, 2003, p. 46). É dentro dessa estrutura - que não está dissociada do corpo - que se constitui a dimensão pulsional. Ou, talvez seja melhor dizer, que é nessa articulação entre simbólico e corpo que podemos pensar a estrutura pulsional.

Seria prudente, nesse momento, apontar para uma certa aproximação que Lacan tenta empreender com a filosofia de

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Merleau-Ponty, principalmente de sua obra póstuma O visível e o invisível - publicada no mesmo ano deste seminário. A temática do olhar é central. Trabalhos como o de Dorfman, Réapprendre à voir le monde: Merleau-Ponty face au

miroir lacanien, podem esclarecer essa aproximação e o quanto ela foi ou não produtiva.

Lacan não tarda em fazer com que a transferência entrasse nesse circuito aqui engendrado. E o faz a partir de sua relação com o objeto a. De acordo com ele, a noção de transferência é aquilo que enquanto é obstáculo à rememoração é também presentificação do fechamento do inconsciente. É a dimensão da falta no que ele chama de bom encontro. Assim, “a transferência é a atualização da realidade do inconsciente” (LACAN, 1998, p. 139), na medida em que é o discurso do Outro. Ora, “o discurso do Outro, que se trata de realizar, o do inconsciente, ele não está do lado de lá do fechamento, ele está do lado de fora. É ele que, pela boca do analista, apela a reabertura do postigo” (LACAN, 1998, p. 126).

No entanto, levando em consideração o desenvolvimento deste tema tanto no seminário VIII, A transferência, – onde a transferência se move a partir do material do amor geral, construindo-se como uma ficção inconsciente que busca refletir o outro – como no seminário IX, A identificação, – desde o “sujeito suposto saber” no qual Lacan pensou a transferência como uma encenação, fruto da experiência analítica, em que necessariamente o Outro está implicado. É nesse sentido que podemos dizer que o sujeito se vê e se fala no espaço do Outro. E é nesse espaço que vale pensar como Lacan pensa o objeto a, objeto que está em um movimento muito peculiar e que agora ele buscar articular não só com a noção de objeto “causa do desejo”, mas, principalmente, como objeto da pulsão. É por tal via que Lacan encaminha um contorno para esse objeto. E também objeto que pode ser o principal elemento para se pensar a articulação dos três registros: real, simbólico e imaginário.

Desde aí, podemos entender que uma das características da pulsão em Lacan é de ser constante, não sendo apenas uma energia cinética, mas como sendo algo que se situa em outro plano. Ele retorna ao tema da pulsão e de seu objeto que, na verdade, está inteiramente relacionado com o objeto que causa desejo, já que a pulsão o contorna. Todavia, ele sustenta que a pulsão pode ser satisfeita, mas só pode pelo fato de que “ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa

senão esse retorno em circuito” (LACAN, 1998, p. 170). Isso fica claro quando ele trata do seio enquanto este objeto.

A esse seio, na sua forma de objeto, de objeto a causa de desejo, tal como eu trago sua noção – devemos dar uma função tal que pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da pulsão. A melhor fórmula nos parece ser esta – a pulsão o contorna (LACAN, 1998, p. 160).

O contorno dado ao objeto pela pulsão expressa ao mesmo tempo uma falta própria do simbólico, à medida que é necessário recortar o real para se permitir uma existência psíquica, como também a própria relação com o real do corpo, já que ele é condição necessária para a existência do sujeito. Nesse caminho, Lacan afirma que a pulsão é uma montagem “pela qual a sexualidade participa da vida psíquica” (LACAN, 1998, p. 167) e que tal montagem está em conformidade com a estrutural de falta do inconsciente. E nesse sentido que Bairrão afirma que “o conceito psicanalítico de pulsão atende à necessidade de pensar o mais medular da realidade subjetiva como significante (inconsciente) e corpo. O corpo faz-se objeto (para a visão, para o tato, etc.), mas originariamente é sujeito” (BAIRRÃO, 2003, p. 44).

Ora, é porque algo se estrutura no aparelho do corpo, bem como na unidade topológica das hiâncias que a pulsão tem seu papel no funcionamento inconsciente. O retorno da pulsão se insere no corpo próprio. Nesse sentido, o corpo parece ter um papel de maior destaque neste seminário, em comparação com os outros - pois os quatro conceitos se apresentam em estreita relação com a dinâmica corporal pensada por Lacan - na medida em que o corpo é tomado por uma abertura. Isto é, podemos pensar o corpo e seu estatuto a partir de seus atos, articulando desde essa dimensão do real viabilizada pelo objeto a. Pode-se dizer, nesses termos então, que o corpo é o real lugar do Outro e que Lacan parece indicar, “onde no real do sujeito se encarnam tais linhas. E obviamente o lugar só pode ser o corpo” (BAIRRÃO, 2003, p. 46).

O que nos parece importante aqui é destacar nosso percurso. Seguimos a construção do objeto a desde sua origem no real, dada a partir da reflexão sobre das Ding e passando por todas as formulações provisórias (La Chose, Agalma, objeto do desejo, objeto “causa do desejo”) ao longo desses cinco seminários que percorremos até chegarmos a formulação de objeto a, objeto da pulsão. Ao percorrer esse longo caminho, muita coisa foi deixada para trás, bem como outras tantas foram pouco exploradas. No entanto, nossa aposta foi que na construção deste objeto Lacan aproxima uma certa compreensão de corpo que escapa a certas formulações triviais, quero dizer, aquelas formulações que se esforçam por ler Lacan a partir de um referencial do registro do simbólico exacerbado e amplamente criticado, ou que se esforçam por não incluir uma dimensão corporal própria do pensamento de Lacan. Nosso objetivo com esta jornada foi de demonstrar que Lacan “passou a tentar mostrar usando apenas uma letra, a letra a, o que era o mais real do corpo para a psicanálise” (SOLER, 1995). Ou seja, há uma peculiaridade na abordagem do corpo na psicanálise de Lacan que nos pareceu estar evidente apenas por este caminho que escolhemos percorrer.