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No texto de 1949, Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu'elle nous est révélée dans l'expérience psychanalytique, nota-se como Lacan procurou destacar a distinção entre a experiência psicanalítica, tal como ele a interpretava, e “qualquer filosofia oriunda do cogito” – isso se torna mais claro ao final do texto. Contudo, é importante observar se isso se realiza no que concerne ao corpo.

Partindo da comparação dos aspectos comportamentais entre animais e humanos

Aqui cabe uma investigação sobre a influência religiosa da doutrina cristã no pensamento de Lacan. A esse propósito, 5

(experimentos etológicos, por exemplo), Lacan buscou estabelecer um diálogo com a psicologia de seu tempo e lançar as bases para a construção de sua teoria, na medida em que incorporou seus resultados – com destaque para as pesquisas de Henri Wallon – apontando sempre para a relevância dos aspectos do grupo social, de suas formas e de suas consequências para o psiquismo. A partir daí, no que tange ao desenvolvimento humano, ele descreveu a ocorrência de um fenômeno entre os 6 meses e 18 meses de idade, que, segundo ele, manifesta:

[…] na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele duplica, seja com seu próprio corpo e com as pessoas, e mesmo os objetos que estejam em suas imediações (LACAN, 1966b, p. 93).

Trata-se de um fenômeno que nos remete, de certa forma, ao “ato psíquico” mencionado por Freud em seu texto sobre o narcisismo como condição para ultrapassagem do autoerotismo, de um tipo de síntese que proporciona à criança a virtualidade de seu corpo, com a qual ela pode, então, se identificar. Com isso, Lacan pretendeu estabelecer novos padrões para uma outra concepção de realidade psíquica em que se deveria valoriza a estrutura familiar em suas imagos e complexos.

A descoberta da imagem refletida no espelho numa criança ainda com suas limitações motoras e impotência orgânica manifesta, de acordo com Lacan, “a matriz simbólica na qual o eu se precipita numa forma primordial, antes que ele se objetive na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (LACAN, 1966b, p. 94). Ou seja, o eu emerge por meio de uma identificação com essa imagem refletida no espelho. É a partir daí que pode-se falar, então, em identificação narcísica. Essa identificação permite à criança compreender a si mesma como totalidade no momento em que seu aparelho sensório-motor não funciona ainda como unidade. Isto quer dizer que a imagem no espelho permite, então, antecipar uma experiência de unidade que até aquele momento não existia ainda em realidade (VAN HAUTE, 2002). Nesse sentido, Lacan postula um tempo anterior à formação dessa imagem, isto é, um 40

período arcaico após o qual a imagem entra em cena para compensar aquilo que é insuficiente no organismo. Aí se situa, segundo Lacan, a origem da instância do eu, antes mesmo da determinação social, servindo-lhe, em seu projeto, como argumento contra qualquer tipo de inatismo determinante na constituição psíquica. A forma total do corpo, nesse contexto, só é dada ao sujeito como Gestalt perceptiva, obtida do exterior e que, desde então, domina o psiquismo. Essa Gestalt, então, simboliza “a permanência mental do eu, ao mesmo tempo que prefigura sua destinação alienante” (LACAN, 1966b, p. 95). Ora, a equivalência com a imagem, pela qual as identificações se esforçam, contudo, está condenada a falhar, pois, ao mesmo tempo em que o eu se identifica consigo mesmo, como unidade, o próprio eu se separa de si mesmo como outro (VAN HAUTE, 2002). Assim, o corpo desempenha, na constituição do eu, um papel que se define como da função – enquanto corpo próprio em sua vitalidade original – e também pela forma – como estrutura provinda de uma experiência especular da imagem do corpo, seja diante o espelho, seja também diante do corpo do outro. Dito de outra maneira, de fora para dentro, já que os elementos mais importantes advêm do exterior.

Ora, a Gestalt humana, nesse momento do pensamento lacaniano, é supostamente capaz de produzir efeitos no organismo que permitem mudar a realidade, pois, ademais, é possível observar que os elementos culturais, para além do investimento de que são objeto, contribuem muito pouco no que concerne a construção da realidade, já que é, por excelência, o lugar da falta. Em consequência, a função do estágio do espelho apresentou-se como “um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade – ou, como se diz, do Innenwelt com o Umwelt” (LACAN, 1966b, p. 96). A imago, aqui, tem por função mediar a realidade (psíquica) construída desde os complexos e o aparato mecânico biológico. Ou seja, a imago desempenha papel fundamental na manutenção da realidade, nas relações sociais e na constituição do psiquismo.

desenrola a partir das superfícies materiais produtoras de imagens, resulta de uma aceleração propiciada por impulsos internos (proprioceptivos), antecipando, de certa maneira, as fantasias que envolvem desde as imagens do corpo despedaçado até uma totalização da forma – à qual Lacan chamou de “ortopédica” – e também para “a armadura, enfim, assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental” (LACAN, 1966b, p. 97). Tal drama, que se inicia com a construção das fantasias do corpo despedaçado, encontra uma saída para o mal-estar gerado por esta experiência – experiência traumática da qual o sujeito busca se defender – na construção de uma forma totalizante do corpo, uma Gestalt, que provenha da interação com seus semelhantes dentro do grupo humano. Com o término desse estágio, inaugura-se a dialética que liga o eu aos eventos socialmente objetiváveis, por meio da identificação da imago do próximo e da situação intersubjetiva instalada pelo ciúme primordial.

Vale ressaltar que é nessa perspectiva que Lacan divergiu das concepções de eu que o concebem, fundamentalmente, como um sistema percepção-consciência e porta-voz do princípio da realidade, que ele considera que possa ser atribuída ao existencialismo e, em certa medida, também a Freud. Esse tipo de divergência não foi sem propósito pois Lacan procurava associar o narcisismo primário com a oposição dinâmica entre libido egóica e libido sexual, evocando o instinto de morte para explicar a relação entre a libido narcísica e a função alienante do eu, e destacando a significação da agressividade dirigida ao outro.

De acordo com essa posição, a noção de agressividade ganhou relevância para o tema da corporeidade em Lacan, pois é por meio desta noção que este procurou estabelecer uma revisão do conceito de instinto de morte freudiano - em suas palavras, a “verdadeira aporia da doutrina” psicanalítica -, ao mesmo tempo em que quis conferir-lhe um estatuto científico. Tudo isso se justifica, ao seu ver, na medida em que considerava a psicanálise como uma experiência proveniente de uma técnica específica, o que a colocava num estado de perpétua abertura em seu sistema de conceitos, ou seja, suscetível a mudanças. Nesse sentido, Lacan quis se distanciar da 42

noção de instinto de morte, já que o considerava fruto de uma reflexão baseada em concepções biológicas, buscando dar um caráter concreto para sua psicologia e, assim, contribuir para o seu desenvolvimento. Dessa forma, ele teceu críticas também às pesquisas behavioristas e ao tratamento psicodramático.