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A apropriação por parte de Lacan das teorias linguísticas e da antropologia tem um novo ponto de desenvolvimento na construção de uma teoria da psicose. Seu desenvolvimento teórico, que segue os mesmos propósitos de se distanciar de qualquer perspectiva orgânica e dinâmica, percorre essa mesma lógica ao tentar lançar as bases para a construção de uma clínica da psicose - evento que lhe parecia por demais complicado na clínica freudiana. Esse empreedimento tornou-se viável dentro da configuração do registro do simbólico, como afirma Quinet: na psicose, assim como na neurose, “trata-se da estrutura da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante” (QUINET, 2006, p. 4). Trata-se de uma estrutura, de uma estrutura clínica. À primeira vista, isso parecer ser resultado das elaborações que tomaram como base essas teorias cujas estruturas são o cerne.

Porém, Quinet identifica - e não é o único - que na obra de Lacan tanto na psicose como na neurose o que ocorre é uma relação do sujeito com o significante. O que, então, diferenciaria uma estrutura da outra? Provavelmente, a forma como um e outro se relaciona com o significante.

À título de uma pequena exposição, vale dizer que Lacan procurou pensar essas duas estruturas em referência aquilo que chamou de metáfora paterna. Ao recuperar o jogo do fort-da freudiano, ele busca ilustrar o acesso ao simbólico na criança, ou seja, a mãe podia entrar no jogo metafórico da criança que revivia sua ausência e sua presença por meio do objeto - no caso, o carretel. Era assim que podia representar simbolicamente os desaparecimentos e ressurgimentos da mãe. Ao fazer isso, a criança inverte simbolicamente o abandono sofrido pela mãe. Agora quem decide ou não abandonar o objeto (mãe) é a própria criança. Isso é o que podemos chamar de controle simbólico do objeto perdido. E seu efeito é fundamental para se pensar a teoria lacaniana da linguagem. Segundo Joël Dor (1989), essa brincadeira de presença/ausência - aquilo que Lacan chamou de o falo no seminário sobre As formações do inconsciente - nos indicaria que a criança

(…) consegue doravante controlar fundamentalmente o fato de não ser mais o único e exclusivo objeto do deseja da mãe, isto é, o objeto que preenche a falta do Outro, ou seja, o falo. A criança pode então mobilizar seu desejo, como desejo de sujeito, para objetos substitutivos ao objeto perdido. Mas, antes de mais nada, é o advento da linguagem (o acesso ao simbólico) que irá tornar-se signo incontestável do controle simbólico do objeto perdido, através da realização da metáfora do Nome-do-Pai, sustentada pelo recalque originário (DOR, 1989, p. 90).

É nesse sentido que a palavra é a presença feita de uma ausência, e essa palavra representa a perda da coisa em si. Contudo, o resultado final dessa operação, se assim podemos chamá-la, é a possibilidade da criança se colocar como sujeito e não apenas (ou não somente) como objeto do desejo do Outro. Isso é o que Lacan chama de operação inaugural da linguagem humana. Em outras palavras, é a designação simbólica da renúncia daquele objeto perdido. A possibilidade disso só se dá fundado no recalque originário do significante do desejo da mãe.

Mas, qual seria o resultado disso? A substituição pelo significante paterno. Ou seja, a função do pai surge como a de “ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno (LACAN, 1958, P. 180). Torna-se, assim, inconsciente o

significante do desejo da mãe (S1) pois foi objeto do recalque originário. Lembrando que só foi recalcado graças a substituição pelo significante paterno (S2) - substituição que é da ordem da metáfora.

No entanto, isso pode falhar, ou melhor dizendo: fracassar. E Lacan pensa o fracasso desse processo a partir do termo alemão Verwerfung, apropriado por ele desde o texto freudiano do homem dos lobos. Em seu seminário sobre as psicoses, ele já nos dá a chave da leitura deste mecanismo.

De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranoia. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante (LACAN, 1955/56, p. 174).

Lacan, então, compreende que a Verwerfung é um mecanismo mais radical de defesa e que esse mecanismo é próprio da estrutura psicótica. É nesse contexto que ele elabora o conceito de foraclusão.

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois reponder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (LACAN, 1966c, P. 564).

Nesse sentido, tomando o verbete foraclusão do dicionário de psicanálise de Roudinesco e Plon (1998), nota-se que tal conceito foi tecido por Lacan com a intensão de designar “um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído” (p. 245). O significante, então, não seria incluído no inconsciente do sujeito, o que permitiria o seu retorno de forma alucinatória ou delirante, a partir do real desse

sujeito. Tanto a alucinação como o delírio invadiriam a fala ou a percepção do sujeito. Assim, o que se pode observar é que na psicose ocorre um fracasso do processo de simbolização, de maneira que tal fracasso não possibilitaria a passagem de uma relação dual, imaginária, com o outro semelhante, para uma relação em que inclua um terceiro, ou seja, mediada pelo grande Outro, o que é marcadamente observado nos casos de neuroses. Ora, é justamente disso que Quinet está falando quando afirma que na psicose “o Outro fala, aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror, pânico, exaltação. Isso faz com que o psicótico, diferente do neurótico que habita a linguagem, seja habitado, possuído pela linguagem” (QUINET, 2006, p. 17).

A forma como Lacan aborda o tema do significante nos permite ler que os “fenômenos elementares são fatos de linguagem característicos da psicose, diferentes dos fatos de linguagem da neurose - atos falhos, sonhos, sintomas (LEITE, 1987, p. 29). Ou seja, há uma ideia de que o delírio - e mesmo a alucinação - são estruturados como uma linguagem, e assim, não seguem as mesmas regras daqueles que se inscreveram a partir do significante do Nome-do-Pai, mas, possivelmente, seguem outras, já que o significante do Nome-do-Pai foi foracluído.

Mas, então, o que dizer das experiências corporais tão visíveis em pacientes que se organizam a partir da estrutura psicótica?

É no seminário sobre as psicoses, datado de 1955-1956, que podemos encontrar alguns elementos que nos ajudem a pensar o corpo. Porém, nosso objeto em questão não é tratado de maneira direta - apenas com algumas exceções.

Lacan assume a ideia de que o discurso do alienado está no registro do simbólico e que isso é um fato do qual devemos partir. Ora, mas ele se interroga: de onde é que esse discurso é extraído? De maneira geral, responde ele, do corpo próprio. Isto é, o corpo parece oferecer, num certo nível, a possibilidade de nomeação deste discurso. É assim que ele pensa o caso Schreber, por exemplo. Se lembrarmos dos sintomas do presidente Schreber, veremos que desde o desencadeamento da doença há uma perturbação - se assim podemos chamar - de sua experiência corporal. Seu vocabulário diz

muito sobre isso. As ideias hipocondríacas, tais como, a sensação da iminência da morte, do amolecimento do cérebro, do esôfago, a hiperestesia - especialmente à luz e à ruídos -, putrefação do corpo, a experiência de sentir-se horrivelmente manipulado em seu corpo. E isso se desenvolveu até ganhar um sentido místico/religioso do qual a grande experiência seria a emasculação, ou seja, tornar-se mulher para copular com Deus e povoar a Terra. Essas experiências corporais que, em termos lacanianos, dizem respeito ao registro imaginário, mas que também tangenciam, de um certo modo, o registro simbólico.

A relação ao corpo próprio caracteriza no homem o campo no fim de contas reduzido, mas verdadeiramente irredutível, do imaginário. Se alguma coisa corresponde no homem à função imaginária tal como ela opera no animal, é tudo o que o relaciona de uma maneira eletiva, mas sempre tão pouco apreensível quanto possível, à forma geral de seu corpo em que tal ponto é dito zona erógena. Essa relação, sempre no limite do simbólico, só a experiência analítica permitiu apreendê-la em suas últimas instâncias (LACAN, 1955/56, p. 20).

É nesse sentido que Lacan se ocupa em pensar o inconsciente na psicose e como aquilo que retorna no real, ou reaparece no real. É claro que o conceito de real aqui não estar tão desenvolvido, mas pode-se observar que desde já Lacan procura uma articulação entre os três registros. O real por mais inacessível que pareça, já aparece de forma embrionária. Ao que nos parece, esta articulação, cada vez mais, torna-se fundamental para se pensar a corporeidade em Lacan. No entanto, é por uma via de ênfase no simbólico que este seminário se desenvolve. É no campo da fala que se “cria toda a riqueza da fenomenologia da psicose” (LACAN, 1955/56, p. 47). Sendo assim, resta-nos perguntar: como se dá uma experiência simbólica do corpo em Lacan?

Na verdade, antes disso, devemos reforçar a ideia de uma experiência imaginária do corpo, do ponto de vista do seu desenvolvimento, como um corpo despedaçado, como um corpo sem contorno, um corpo, de certa maneira, estranho, um corpo que se constitui desde a alienação de sua imagem e a imagem do outro. E, no caso da psicose, isso ultrapassaria o momento da constituição

do eu, fazendo-se sentir seu efeitos a posteriori. Alguns autores influenciados pelo pensamento lacaniano chegam a afirmam que nos “fenômenos de automatismo corporal é identificada a decomposição do próprio corpo: estranheza (sentir o próprio corpo como estranho), desmembramento (sentir que as partes não lhe pertencem), além de distorção temporal no perceber o tempo e/ou deslocamento espacial” (MILLER, 1997 [1987]). Essa dimensão do estranhamento seria aquela mesma da experiência do estágio do espelho que tratamos no capítulo anterior. Brevemente dizendo, seria primeira relação do sujeito com a sua imagem, uma imagem especular, que toma a imagem do corpo próprio como outro. E, com o intuito de esclarecer, tomemos algumas das palavras de Quinet que, ao descrever um período da internação de Schreber, retoma uma reflexão de Lacan.

Assim, ele descreve nesse período: “Sou um cadáver leproso que carrega um cadáver leproso”. Descrição brilhante, pontua Lacan, “da regressão não genética, mas tópica do sujeito ao estágio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aqui ao seu gume mortal”. Também não faltam nesse período imagens do corpo despedaçado: seus pulmões foram reabsorvidos, seus órgãos genitais liquefeitos, o esôfago e o intestino volatilizados, o osso da calota craniana pulverizados e, mais de uma vez, ele engoliu a própria traquéia (QUINET, 2006, p. 23).

É essa estrutura imaginária que se prolonga e se perpetua, em um certo sentido, na psicose. Castellanos (2009) ratifica esta concepção, dizendo que há efeitos no corpo desta experiência imaginária, e tais efeitos seriam a fragmentação corporal, o estranhamento e a sensação de manipulação corporal (tal como vemos em Schreber), ou seja, retoma as concepções lacanianas acerca disso, no qual o caráter hipocondríaco emerge com um certo destaque. Todavia, segundo ele, no caso da psicose, o significante não teria papel de fomentar o corpo simbólico. Colette Soler procura introduzir um debate que leva isso um pouco mais além, afirmando que a “perturbação da relação com o Outro não pode deixar de ter consequências no corpo em que o corpo simbólico se

incorpora” (SOLER, 2007, p. 72). A articulação entre esses dois registros nos parece ser fundamental para pensarmos a experiência corporal na psicose.

Contudo, vale frisar, que essa experiência se passa de uma outra maneira, diferentemente do que ocorre na neurose. Afirmar que o significante não fomenta o corpo simbólico não é o equivalente a dizer que ele (significante) não exerça nenhuma função. Sim, ele exerce. O que nos parece ser mais importante é como o significante, na psicose, se inscreve no corpo? Ora, nesse momento da obra lacaniana - no desenvolvimento do seminário Les psychoses -, nota-se que há um movimento por incluir ou articular os registros imaginário e simbólico no pensar da estrutura psicótica. E há também, ainda que de modo incipiente, uma tentativa de coordenar esse pensamento ao registro do real. Isso evidencia-se quando, já nos últimos capítulos deste seminário, Lacan aponta para a ideia de que o corpo é suporte do discurso, mesmo que esse discurso seja o discurso do alienado.