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Capítulo 2 A oposição às teses dos múltiplos sujeitos

2.2. Contra a tese da multiplicidade do sujeito atribuída aos sofistas

De uma forma semelhante a Aertsen, Storck também refuta a existência 423 de múltiplos sujeitos na metafísica de Alberto. Ao comparar a posição do sujeito da metafísica entre os comentários à Física e à Metafísica , ele julga que no segundo “Alberto é, no entanto, mais meticuloso no momento de estabelecer a estrutura dessa ciência” . O intérprete inquieta-se, contudo, com a enumeração “elíptica” dos sujeitos 424 da metafísica, pois se esta foi a intenção de Alberto, haveria aqui uma mudança de posição da tese anterior, uma vez que em vez de um único sujeito, ele teria apresentado quatro. Concordo com o intérprete brasileiro, quando este afirma que esta concepção de múltiplos sujeitos presente no texto albertiano não procede, pois parece apenas intentar estruturar esta ciência. Procura-se, ademais, entender qual seria a unidade desta ciência e, ao que parece seria o fato de contemplar um sujeito que não é concebido com o contínuo e com o tempo . 425

420 Aertsen, 2012, p. 207.

421 Como corolário do argumento, Aertsen evoca a existência da chamada Escola dominicana alemã, cujos representantes mais prestigiados são Dietrich de Freiberg e Mestre Eckhart.

422 No subtítulo 2.3, abordaremos o que o dominicano de Colônia apresentou neste escrito a respeito do nosso escopo.

423 Storck, 2010, p. 147-182. 424 Storck, 2010, p. 152.

425 quoniam de omnibus his est secundum esse non conceptum cum continuo et tempore (Alb., Metaph. , p. 3, 20-26).

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Para Storck , a fim de refutar a tese dos quatro sujeitos da filosofia 426 primeira, convém deter-se de modo mais cuidadoso no uso da expressão averróica ens simpliciter . O conceito é utilizado no contexto de uma objeção contra os sofistas aos quais é atribuído a negação da existência de uma ciência do ente. Duas teses sintetizam o argumento refutado por Alberto: primeiro, nada é predicável do ente que seja distinto dele mesmo, ou seja, é inútil trata do ser uma vez que se cairia em afirmações circulares , tais como o ser é o ser, o ente é o ser, entre outras; segundo, o ente é predicável em 427

relação a tudo o que existe . Como acima referimos, esse argumento é refutado com a 428 distinção do ente e suas partes. Alberto, contudo, conforma esse argumento, dito peripatético, com uma nova acepção ao entender o ser segundo o sentido de “primeira das coisas criadas” em uma clara referência ao Livro das causas . Os demais seres são constituídos “ per informationem ”, isto é, pela delimitação do indivíduo dada pela forma. Tudo que existe é ser e supõe sua existência . É o Livro das causas , entendido como 429 uma obra autêntica de Aristóteles, que parece ser a fonte última da noção albertiniana de ser . Para Storck , “o dominicano retoma as linhas gerais do texto aviceniano, mas o 430 431 faz seguindo Boécio e definindo, por conseguinte, o ente de um modo não aviceniano”. Se Avicena havia procurado um único sujeito da metafísica, Alberto parece distanciar-se dessa posição ao inserir no texto do seu comentário uma distinção de quatro sujeitos desta ciência, embora a fórmula não utilize desta expressão ( haec scientia est de quattuor in universo ): i) o ser enquanto ser; ii) as divisões que se seguem do ente

426 Storck, 2010, p. 155.

427 Quicunque vero philosophi, qui de veritate prima loquuntur, dicere conantur , quomodo oporteat

recipere per intellectum prima demonstrationum principia, non faciunt hoc nisi propterea , quod ignorant

Posteriora Analytica . Si enim illa scirent, profecto supponerent quod circulo non potest fieri demonstratio et ideo principia per conclusiones demonstrari non possunt. Scirent etiam per eadem analytica, quod demonstratio non vadit in infinitum in ante sumendo, sed stat in principiis primis demonstrationum, quae ante se alia principia non habent ex quibus demonstrentur (Alb., Metaph. , IV, 2, 2, p. 174, 9-20).

428 Dubitabit autem fortasse aliquis, si de ente possit esse scientia, cum nihil diversum praedicabile sit de ente; omnis autem scientia est passionis, quae sic est in subiecto, quod in numero est cum subiecto; differentia autem causa est numeri; ubi igitur nulla differentia et nulla diversitas, nullus est numerus et sic nulla demonstratio et nulla scientia.

429 “Nec dicitur esse subiectum sicut species, quae subicitur generi differentia constitutiva, sed dicitur subiectum id quod praesupponitur in omnibus sequentibus et omnibus substat eis” (Alb., Metaph. , IV, 1, 2, p. 163, 18-22).

430 Sweeney, 1980, p. 599-646. 431 Storck, 2010, p. 156.

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enquanto ente, como a unidade e a pluralidade; iii) as realidades físicas e matemáticas enquanto possuem sua fonte no ente simples; iv) as coisas cujo ser é completamente separado: Deus e as inteligências.

Na minha leitura, não é possível afirmar que ele fornece uma enumeração dos sujeitos da metafísica a não ser que não se tenha conhecimento da tese categoricamente rejeitada no início de sua obra . Entendo que para Alberto a 432 metafísica é uma e possui apenas um sujeito . Além disso, seria possível estabelecer a 433 associação do sujeito da metafísica como ens inquantum ens e como esse simplex . Por fim, verificar-se-ia então a relação entre Deus e a metafísica. Deus seria a causa primeira e eficiente do ser em geral que é o sujeito da metafísica. Alguns intérpretes contemporâneos equivocadamente entendem essa associação como uma hesitação de Alberto a respeito do sujeito da metafísica . Alberto não entende que sua posição 434 extrapola ou é estranha à de Aristóteles e considera-se ainda como um peripatético . A 435 meu ver, sua distinção reserva o lugar próprio da consideração do ser e de Deus no âmbito da metafísica. Esse Deus, contudo, não seria considerado segundo os ditames da Revelação, mas somente da própria filosofia. Seria um Deus por assim dizer tratado no prisma “filosófico” que não contradiria ou negaria o prisma teológico. Evidentemente, no mundo real, esse Deus considerado sob duas perspectivas seria o mesmo.

Note-se que Alberto leva a sério a divisão aristotélica das ciências e das suas especificidades temáticas. Embora, a filosofia primeira ocupe o lugar de primazia entre as demais ciências em razão da sua relação com a divindade, convém destacar a clara separação do âmbito filosófico para o teológico, baseado na Revelação, ao afirmar que “O filósofo não pode inventar nada e não pode afirmar senão o que pode ser demonstrado pela razão”. Para Alberto, há uma delimitação intransponível entre os 436 432 Alb., Metaph. , I, 1, 2, p. 5, 34-49.

433 Storck, 2010, p. 156-157.

434 Noone, 1992, p. 51-52; Thomassen, 1985, p. 61-82. 435 Storck, 2010, p. 158.

436 Alb., Metaph. , , XI, 2, 8, p. 495, 79-81; foedum et turpe est in philosophia aliquid opinari sine ratione (Alb., Metaph ., p. 163, 22-25); Storck (2010, p. 159, nota 24) estabelece uma distinção entre a tese albertina e o artigo 145 condenado por Tempier em 1277: “145 (6): Quod nulla questio disputabilis est per rationem quam philosophus non debeat disputare et determinare, quia rationes accipiuntur a rebus. Philosophia autem omnes res habet considerare secundum diuersas sui partes” (Piché, 1999, p. 188). Para

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princípios de uma ciência e outra. Contudo, apenas a metafísica pode provar e fornecer os princípios de demais ciências. Nesse sentido, ela é a ciência ou filosofia primeira.

Cabe, porém, a cada disciplina provar seus próprios teoremas. A questão que se levanta é se por métodos diferentes uma disciplina chega a uma afirmação contrária a de outras ciências. Ao autor, esse princípio não pode contrariar a filosofia primeira, que fornece os princípios mais certos, justamente por serem impassíveis ao menos aos erros oriundos da mutação e do tempo. Entretanto, Alberto reconhece a possibilidade de que os princípios teológicos, e somente estes, sejam contraditórios em relação aos da filosofia. Exemplo disso seriam as provas físicas e metafísicas acerca da existência divina. Nesse aspecto, a tese albertiana aproxima-se da tese averróica enquanto resultado, mas diverge no argumento.

Como considerarei, se para Averróis cabe à física o tratamento das causas eficientes e materiais e à metafísica as causas formais e finais, Alberto defende que a primeira prova a existência de Deus através do movimento, isto é, entende o primeiro motor imóvel como sendo Deus e este a causa de todo o ser. Leiamos o próprio dominicano que se assemelha ao posicionamento de Avicena:

O filósofo primeiro considera, de modo principal, a forma e o fim pelos quais demonstra, de acordo com as características de sua disciplina, aquilo que ela faz saber de modo eminente. Assim, tanto o físico quanto o metafísico consideram todas as quatro causas. Mas o físico considera-as na medida em que são princípios do ente móvel, ao passo que o filósofo primeiro reduz a eficiente ao caso da forma primeira e do fim último. Desse modo, a causa da existência do universo, sua forma e seu fim são idênticos . 437

Não sem razão, o metafísico e o físico obtêm até os mesmos resultados, mas sob prismas diversos, por causa da diferença do aspecto considerado do ser. Quanto à possível contradição entre os princípios teológicos, oriundos da Revelação, e os metafísicos, considerarei abaixo. Se Alberto entende que cada ciência possui um único sujeito, ele também não deixa de estabelecer uma tríplice distinção no entendimento do

Storck, “a tese de Alberto é menos geral, pois ela afirma simplesmente que, se uma proposição é filosófica, ela é racionalmente demonstrável, ao passo que o artigo 145 sustenta que toda proposição verdadeira é filosoficamente demonstrável” (Storck , 2010, p. 159, nota 24).

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sujeito e que não me parece contradizer a tese da unidade do âmbito de investigação de uma ciência.