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O sistema do capital, como esboça Mészáros (2002, p. 97), é o primeiro da história a constituir um sistema totalizador irrecusável e irreversível, não importando quão repressiva seja essa função a qualquer momento ou sobre qualquer lugar onde encontre resistência. A formação de um mercado mundial necessário ao escoamento das mercadorias pelos diversos rincões do planeta; a exploração

desmedida de recursos naturais, sobretudo, aqueles de base energética; bem como a transformação de costumes seculares à sua imagem e semelhança são casos emblemáticos desvelados pelo percurso histórico-concreto da humanidade nesse estágio de produção.

Mediante o desenvolvimento das forças produtivas, iniciado no período de acumulação primitiva do capital28, os homens são lançados num período inédito da história, em que a realização de algumas de suas obras primas, de suas maravilhas, como expressa Marx no Manifesto Comunista, ―superam de longe as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas‖ (MARX; ENGELS, 1998, p.14).

No entanto, ao tempo em que essa característica da totalidade do sistema, sustentada, sobretudo, pelo avanço colossal das forças produtivas, o torna mais dinâmico e fascinante que os sistemas sociometabólicos precendentes, esta exigiu um preço incomensurável, qual seja, o acionamento ininterrupto da incontrolabilidade do capital ou a perda de controle dos indivíduos sobre os processos de tomada de decisão, como já sublinhado. É válido reiterar que, para Mészáros (2002), o fenômeno da incontrolabilidade constitui um dos fatores mais importantes do avanço e consolidação do capital enquanto relação social de produção.

É nessa perspectiva que tal fenômeno representou uma verdadeira arma demolidora das amarras feudais a uma produção ilimitada, a exemplo da proibição da usura, das corporações e da santificação da terra, as quais sustentavam uma produção voltada para a auto-suficiência das unidades produtivas.

[...] em razão da subordinação necessária do valor de uso [...] às exigências de auto-expansão e acumulação, o capital em todas as suas formas tinha de superar também a abominação de ser considerado, por muito tempo, a forma mais ―anti-natural‖ de controlar a produção de riquezas (MÉSZÁROS, 2002, p.100).

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Conforme Laski (1973, p.99) a libertação do conhecimento científico dos pressupostos metafísicos sancionados pela Igreja, a exemplo, da teoria do heliocentrismo, constitui uma das armas imprescindíveis a efetivação dos projetos do ―homem de negócios‖. Essa libertação cela a idéia de controle do homem sobre a natureza. Os novos conhecimentos são de tal modo e vitais que os homens adquirem uma convicção de superioridade. As eras antigas deixam de ser idades de ouro e tornam-se idades das trevas. Os homens sentem-se senhores da natureza. Deduzem deste domínio os direitos da razão, o poder de moldar e transformar o meio ambiente, a ausência de qualquer necessidade de continuar acreditando na doutrina do pecado original.

Sem a superação da auto-suficiência, como explica o autor, o sistema do capital não poderia ser voltado para expansão e movido pela acumulação. O deslocamento do auto-consumo para uma produção ilimitada de mercadorias, congrega a separação entre produção e consumo. O trabalhador passa a produzir para um consumidor desconhecido e não para sua subsistência direta.

Se, pela primeira vez na história, os homens passam a produzir o suficiente para exterminar carências alimentícias e determinadas pestes que num passado remoto extinguiu grande parte da humanidade, no sistema do capital, qualquer invento científico que venha atender as necessidades humanas tem que, necessariamente, demonstrar a sua dimensão lucrativa para os olhos ―cifronados‖ do capitalista. É assim que tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo torna-se artefato de um arsenal de mercadorias; ou seja, tudo precisa demonstrar seu valor de troca. Até as relações mais íntimas são contaminadas por tal condicionalidade.

Como explica Marx (1983), o trabalho exigido para a produção de bens necessários à reprodução da humanidade é um traço constitutivo de qualquer forma social de produção29. No entanto, no sistema do capital, essa produção de bens, é perfilada pelo valor de troca. As mercadorias, portanto, têm uma dúplice dimensão: o valor de uso e o valor de troca. Para os capitalistas, não importa se as mercadorias sejam para atender as necessidades do estômago ou da fantasia, o importante é produzir

[...] Uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para os quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só um valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia (MARX, 1983, p.305)

Em vista disso, tal modo de produção é marcado por uma contradição imanente, pois, se por um lado o desenvolvimento do conjunto das forças produtivas possibilitou uma crescente produção de valores de uso, por outro lado, essa produção encontra-se limitada às necessidades da valorização do valor. Essa

29Uma coisa pode ser o valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social (MARX, 1983, p.170).

ineliminável contradição do sistema do capital, posto que se encontra na sua base estrutural, aprisiona esse desenvolvimento das forças produtivas à serviço do apetite frenético do capital por mais-valia, por potenciais consumidores e não à serviço da humanidade. É nesse sentido, como sustenta Mészáros (2002, p.101), que esse modo específico de controle sociometabólico não pode reconhecer fronteiras,

[...] apesar das conseqüências devastadoras quando forem atingidos os limites mais externos das potencialidades produtivas do sistema. Isso acontece porque as unidades econômicas do sistema não necessitam, nem são capazes de auto-suficiência. É por isso que, pela primeira vez na história, os seres humanos têm de enfrentar, na forma do capital, um modo de controle sociometabólico que pode e deve se constituir num sistema global, demolindo todos os obstáculos que estiverem no caminho.

A fratura entre a produção e consumo e, por conseguinte, o deslocamento do valor de uso para uma produção ilimitada de mercadorias, encontra-se de tal forma estruturada que a ―necessária unidade de ambos torna-se insuperavelmente problemática, trazendo com o passar do tempo, também as necessidades de alguma espécie de crise‖ (MÉSZÁROS, 2002, p.102).

A vulnerabilidade dessa produção de mercadorias às vicissitudes da circulação, como esclarece o referido autor, é uma determinação decisiva, à qual nenhuma economia doméstica da Antiguidade ou Idade Média estava submetida, uma vez que encontravam-se, primordialmente, voltadas para a produção e consumo direto dos valores de uso.

O impulso irrefreável do capital por uma produção desmedida de mercadorias requer, portanto, um mercado em constante expansão. Essa compulsão imposta pelo próprio processo de acumulação, como diriam Marx e Engels (1998, p.17), persegue os capitalistas por toda superfície do globo. Se, por um lado, a consolidação do modo de produção capitalista implicou numa aglomeração de províncias independentes em ―um bloco, em uma nação com um governo, um código de leis, um interesse nacional de classe, uma fronteira e uma tarifa alfandegária‖, por outro lado, tornou-se inconcebível seu confinamento a tais limites sócioterritoriais. É nesse rastro de análise que Mészáros (2002) expõe a contradição emergida com a separação entre a produção e circulação.

Para o empreendimento do intercâmbio de mercadorias a nível global, isto é, uma circulação para além das fronteiras regionais e nacionais, a referida separação desencadeia um sistema internacional de dominação e subordinação, no qual se estabelece ―uma hierarquia de Estados Nacionais mais ou menos poderosos que gozem – ou padeçam – da posição a ele atribuída pelas relações de força em vigor na ordem de poder do capital global‖ (MÉSZÁROS, 2002, p.111).

Embora o capital seja apátrida, os trabalhadores, contraditoriamente, são ―carimbados‖ por sua nacionalidade e, a depender do posicionamento do seu espaço socioterritorial nas relações de poder, o índice de exploração de força de trabalho torna-se mais gritante ou temporariamente docilizado. Como explica nosso autor:

É assim que a força de trabalho total da humanidade se sujeita – com as maiores iniqüidades inimagináveis, em conformidade com as relações de poder historicamente dominantes em qualquer momento particular – aos imperativos alienantes do sistema do capital global (MÉSZÁROS, 2002 p. 104).

O substrato a depreender da separação entre produção e circulação, conforme análise do referido autor, é que o sistema do capital não rima com ―harmonização‖, tampouco com um eterno equilíbrio de forças entre os capitais nacionais, uma vez que estes encontram-se hierarquicamente estabelecidos na arena global. Ao tempo que se estabelece o princípio da imposição/aceitação entre os Estados Nacionais, seja pela via pacífico-jurídica, seja pela via bélica, há uma busca incessante pela derrubada desse princípio. Nesse sentido, pode-se afirmar que o axioma hobbsiano ―bellum omnium contra omnes‖ conforma uma das ferramentas inelimináveis do modus operandi do sóciometabolismo do sistema do capital, que encontra-se estruturado de forma antagônica. Além disso, não há de se esquecer, ainda segundo Mészáros (2002), que esse sistema é regido pela orquestra dissonante da lei do desenvolvimento desigual30, que vigora, em última instância, de forma destrutiva.

30 No sentido mais geral da expressão, desenvolvimento desigual significa que sociedades, países,

nações desenvolvem segundo ritmos diferentes, de tal modo que, em certos casos, os que começam com uma vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por forças dessas mesmas diferenças de ritmos de desenvolvimento, os que haviam ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial. Para ter sentido,

O desenvolvimento desigual no sistema do capital está inextricavelmente atado tanto à cegueira quanto à destrutividade. Ele deve impor seu poder de maneira cega, devido à necessária exclusão dos produtores do controle. Ao mesmo tempo, há uma dimensão de destrutividade no processo do desenvolvimento normal do sistema do capital, mesmo quando historicamente o capital ainda está em ascensão. As unidades socioeconômicas mais fracas serão devoradas na operação do ―jogo da soma zero‖ buscado durante a concentração e a centralização do capital, embora até as grandes figuras da economia política burguesa só consigam enxergar o lado positivo de tudo isso descrevendo o processo subjacente como um ―avanço pela competição‖ recomendável e nada problemático. Como parte da destrutividade da normalidade do sistema do capital, a destrutividade também se torna claramente evidente nos momentos de crises cíclicas, manifesta na forma de falência do capital acumulado (MÉSZÁROS, 2002, p.114).

Com isso, pode-se afirmar que o posicionamento hierárquico entre os diversos espaços socioterritoriais a nível global é uma condicionalidade inscrita na própria estrutura contraditória do sistema do capital. A igualdade entre os Estados Nacionais, assim como a igualdade entre capitalista e o trabalhador, só pode ser construída no plano formal. Ou seja, se, por um lado, há determinados países que necessitam disponibilizar de um depósito de mão-de-obra barata para movimentar as turbinas capitalistas estrangeiras, recursos naturais em abundância, além de manter elevadas taxas de juros e remeter exorbitantes remessas de lucro para além de suas fronteiras e, por conseguinte, comprometer seus fundos ―públicos‖ para reprodução de um capital apátrido, em detrimento das necessidades básicas de seus trabalhadores, por outro lado, há determinados países que se empenham, constantemente, em succionar esses recursos, sobretudo, pela via da dívida pública. Essa sucção, porém, não se destina à elevação do padrão de vida de seus trabalhadores, mas à sustentabilidade do processo de acumulação de meia dúzia de unidades produtivas internamente fragmentadas. Portanto, para Mészáros (2002, p.114), pensar numa Nova Ordem Mundial, em que os diversos Estados Nacionais possuam condições de igualdade para empenharem uma competição saudável no

portanto, a idéia de ―desenvolvimento desigual‖ deve incluir, em cada caso específico, a principal força propulsora (ou forças propulsoras) que determina essas diferenças de ritmo de desenvolvimento. No capitalismo, é principalmente a possibilidade de alcançar os competidores no uso de modernas técnicas de produção e/ou organização do trabalho, isto é, de obter maior produtividade do trabalho, que determina o ritmo de desenvolvimento das empresas e das nações (BOTTOMORE, 2001 p.98).

mercado global, só pode ser uma ―fantasia absurda ou uma camuflagem planejada para projetar os interesses hegemônicos dos poderes capitalistas preponderantes como aspiração universalmente benéfica e moralmente recomendável da espécie humana‖.

No entanto, se o capital é uma relação social antagonicamente estruturada, como tentamos evidenciar nessa sessão, isto é, ao tempo que o capital é resultado da ação humana - trabalho acumulado e objetivado - tenta, a todo o momento, camuflar este princípio; ao tempo que produz desemprego em escala ampliada, necessita de potenciais consumidores; ao tempo que necessita de desenhos nacionais, não pode restringir-se a tais limites. Logo, poder-se-ia questionar: como um modelo de produção tão auto-destrutivo como o capital pôde se reproduzir historicamente?

A compreensão desse breve esboço do conjunto das contradições estruturais do sistema do capital, portanto, estaria incompleto se não tentássemos adentrar no terreno arenoso e nebuloso da estrutura de comando político que tenta cimentar as fissuras desse sistema para evitar sua implosão. É nesse sentido, que cabe tecer a função social do Estado Moderno nesse modo de controle sociometabólico.