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3. Identidade e corpo simbólico

4.2. Contranarrativas sobre raça e estética

O projeto de embranquecimento da sociedade brasileira é resultado da concepção do negro enquanto problema social. Alberto Guerreiro Ramos, sociólogo e militante do Teatro Experimental do Negro, em Introdução critica à

sociologia brasileira (1957), problematiza essa concepção a partir de um olhar

crítico sobre os pressupostos eurocêntricos das Ciências Sociais do Brasil,

Uma determinada condição humana é rigida à categoria de problema quando, entre outras coisas, não se coaduna com um ideal, um valor, ou uma norma. Quem rotula como problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil é objeto de estudo como problema na medida em que discrepa de que norma ou valor? (RAMOS, 1957, p. 21).

Torna-se importante, então, refletir sobre como a ideia de branquitude é constituída por sujeitos brancos, em um processo de relação e percepção da alteridade. Lia Vainer Schucman, enquanto mulher branca que discute as conexões entre gênero e raça, vai discutir e se identificar com a noção de branquitude, que envolve os imaginários racializados que se manifestam nas práticas cotidianas, aponta que estes causam impactos subjetivos tanto em negros como brancos. E ao citar Fanon (1980, apud SCHUCMAN, 2014), afirma que:

A opressão colonial e o racismo da própria estrutura da colonização passaram também a dominar subjetivamente os colonizados e os colonizadores. No caso dos negros, a consequência seria uma não aceitação da sua auto imagem, da sua cor, o que resultaria em um “pacto” com a ideologia do branqueamento, [...]. Fanon afirma que o mesmo racismo subjetivado pelos negros também é apropriado pelos brancos, embora em uma relação assimétrica, na constituição das identidades raciais brancas. (SCHUCMAN, 2014, p. 51)

A articulação do acima exposto às ideias seminais apresentadas por Guerreiros Ramos, ainda na década de 1950, sobre a patologia do branco brasileiro, permite perceber o quanto este imaginário da branquitude contribui para a consolidação de padrões estéticos hegemônicos:

[...] devido ao racismo e a um ideal de beleza e estética branca, a população brasileira produziu significados positivos à branquitude, em contrapartida a significados negativos estéticos e culturais relacionados aos negros. [...] A patologia então seria o fato de que o branco brasileiro considera vergonhosas sua ancestralidade e cultura negras, enaltecendo a cultura europeia/branca, da qual não faz inteiramente parte (SHUCMAN, 2014, p. 53).

O negro foi por muito tempo problema por sua aparência ligada a cultura e fenótipo africano, e persistiu sendo problematizado pelas Ciências Sociais brasileira pela sua fusão na cultura “[...]com as camadas mais claras da população brasileira” (RAMOS, 1957, p.). Sendo assim, o que faz o negro permanecer enquanto assunto a ser problematizado é o seu fenótipo que o faz ser lido enquanto exótico, anormal e diferente.

O processo de rejeição/aceitação (GOMES, 2008) do negro sobre si próprio se mantem devido à categoria de ideal de beleza humana representada pelo homem branco. Segundo Guerreiro Ramos, “Tais categorias são assimiladas pelo indivíduo na vida comunitária. Aprende-se a definir o belo e o feio através da convivência quotidiana, do processo social” (1957, p. 24). A europeização do mundo tem promovido o que Guerreiro Ramos chama de manifestações patológicas, que estão calcadas principalmente na estética social.

Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de uma determinada sociedade de um padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, esse fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus. (RAMOS, 1957, p. 24)

Não podemos deixar de entender que as reflexões de Guerreiro Ramos sobre a “patologia social do branco” foram construídas na década de 1950, o que justifica o termo utilizado.

As reflexões de Guerreiro Ramos, assim como sua terminologia conceitual, evocaram algumas vivências de Mara Lívia com relação ao seu cabelo crespo, um dos traços pertencentes ao fenótipo negro. A mesma, ao pensar nos dias de hoje sobre o que fazia quando alisava os cabelos, chama o processo de doentio e percebe o quanto acabava englobando a família no seu processo de rejeição ao cabelo.

Mara cecilia: Quando tava em Pedro Osório eu relaxava toda hora,

crescia a raiz... pra ti ver, Taís, eu não gostava que a minha raiz natural aparecesse, é muito doentio. Tu olhar e ter raiva do teu cabelo.

[...] eu me olhava e não me aceitava, quando crescia um milímetro da raiz eu ia lá e colocava, então era uma coisa de 1 mês, 1 mês e meio que colocava relaxante, e eu chegava a colocar, pegava o creme relaxante e fazia isso aqui ó [Mara demonstra o quanto ela apertava o creme em contato com a raiz e puxava em direção as pontas com força], pra não aparecer a raiz, minha mãe dizia “Não coloca na raiz, minha filha, vai quebrar o teu cabelo, pode te dar até uma reação contrária, queimar o couro cabeludo” e eu ia “Não, porque eu não gosto desse cabelo assim... Por que ele é assim? Que cabelo bem feio”.

(Diário de Campo Mara Lívia e Maria Cecília, 2017).

As consequências do uso exagerado do produto químico resultaram no que sua mãe havia lhe alertado, o cabelo enfraqueceu e começaram as quedas dos fios. Esse relato foi dado na entrevista que fiz com a Mara Lívia e sua mãe, Maria Cecília. Enquanto Mara contava por tudo que havia passado, em meados dos seus 18 anos, a sua mãe comentava com ar de indignação entre cada relato, lembrando de tudo que havia acontecido e também dos momentos em que ela se viu acompanhando a filha nas idas ao salão de beleza.

Mara Lívia: E ai eu disse assim “Eu não posso usar o meu cabelo, eu

não posso ficar com ele natural”, imagina uma pessoa chegar ao nível de dizer isso? “Eu não vou usar isso aqui!”.

Maria Cecília: O jeito que ela falava...

Mara Lívia: “Não vou usar isso! Isso é cabelo? Isso não é cabelo!”.

Essa coisa do negro, da aceitação do negro... a sociedade te adoece, naquela época eu tava doente.

(Diário de Campo Mara Lívia e Maria Cecília, 2017).

Devido a queda dos cabelos, Mara começou a aderir ao entrelaçamento, processo em que os próprios cabelos são trançados rente ao couro cabeludo e em seguida, a eles são costurados cabelos comprados, sintéticos ou naturais.

A cabeleireira questionava à Mara a necessidade de colocar os cabelos dizendo “Tem certeza? Mas tu tem cabelo”, se referindo aos cabelos naturais de sua cliente, que necessitavam apenas de cuidados. Questionei se ela ia ao salão sozinha, me respondendo:

Mara Lívia: Não, fui com a mãe e ela dizia pra mim “Não vou mais

contigo”, a mãe só vinha aqui comigo pra não me largar sozinha, porque ela tava achando que tava alimentando uma pessoa doente. [...] Gastei um dinheirão naquilo, usei por menos de 2 anos, e achava legal aquele cabelo entrelaçado que não era meu, nada contra quem coloca, mas aí ao ponto de tu odiar o teu e gostar de um outro que tu compra, querer que o teu caia pra ti colocar um padrão como as gurias brancas, a coisa é doentia, né?

(Diário de Campo Mara Lívia e Maria Cecília, 2017).

Como Maria Cecília acompanhava a sua filha, e exprimia sons e palavras de indignação sobre o que a filha relatava, perguntei como ela se sentia participando do processo que ocorria no salão: “Eu me sentia como esse sol horroroso, assim”. O dia estava bastante quente e o sol forte, estávamos sentadas em um canto de um dos pátios do Mercado Público, mas se ficássemos mais alguns minutos o sol iria nos atingir e começar a arder em nossa pele.

Maria Cecília: Menina de Deus, eu me sentia meia tonta, porque

sempre tô tomando remédio, e eu dizia “Ai, minha filha, vamos embora”, e até quase 20 horas, né?

Mara Lívia: É, eu ficava horas sentada. Ficava me alimentando mal,

a mãe ali se alimentando mal, comendo lanche, coisa que ela não pode... então além de eu me sacrificar eu sacrificava ela que não tinha nada a ver com aquela coisa doentia.

(Diário de Campo Mara Lívia e Maria Cecília, 2017).

O Brasil, sendo um dos países europeizados pelo processo de colonização, apresenta a patologia, coletiva da estética social, conforme apontado por Guerreiro Ramos. Esta não atinge apenas negros e negras, mas a população como um todo, pois até mesmo o branco brasileiro não apresenta naturalmente a estética europeia. Segundo Guerreiro Ramos a patologia atinge principalmente o brasileiro letrado, aderindo “[...] psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de

vista desse” (1957, p. 25). Conforme o sociólogo negro, a adesão a tal padrão é alienante, pois rejeita critérios locais do que pode ser considerado belo e feio, apresentando assim, uma subserviência inconsciente a um prestígio exterior, que é estranho e artificial à nós.

Com a contestação da diferença racial justificada pela ciência raciológica, o racismo passa a ser mantido na sociedade de várias formas: atribuição à desigualdades sociais, culturais, psíquicas e políticas à noção biológica de raça; basear-se na noção cultural de inferioridade e superioridade de povos, etnias e grupos enquanto substituição a noção de raça; existência de sistema social onde que, grupos humanos identificados por traços raciais ou racializados são colocados em situações desiguais nas diversas esferas sociais.

Neste caso, as desigualdades sociais são tidas como raciais na medida em que se encontrem e se comprovem mecanismo causais, que operem no plano individual e social [...]. Neste sentido, racismo não é mais uma ideologia que justifica desigualdades, mas um sistema que as reproduz. (GUIMARÃES, 2009, p. 217)

Um dos mecanismos que mantém a desigualdade entre indivíduos de raça ou cor diferentes são os mecanismos psicológicos, atuando diretamente na constituição de uma baixa estima, inferiorizando características fenotípicas e/ou culturais tanto pela escolarização quanto por meios informais de informação.