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2.2 O Campo da Marcha do Orgulho Crespo e Suas Interlocutoras

2.2.2. Iara Barreto

Iara foi a primeira interlocutora que encontrei na Marcha do Orgulho Crespo, 63 anos, negra9 e de cabelos crespos grisalhos penteados com

tranças até a metade da cabeça, deixando o resto do cabelo solto. A encontrei vendendo chinelos bordados artesanalmente em uma das mesas que faziam parte da Feira Afroempreendedora, ela me olhou e abriu um sorriso, o convite era para olhar sua mercadoria, fingi que estava interessada olhando os detalhes do chinelo e perguntei se ela havia feito o trajeto da Marcha, me respondendo com um “não”, pois estava ali vendendo.

A pergunta tinha uma resposta óbvia, a fiz para “quebrar o gelo”. Logo me apresentei como estudante de mestrado da Universidade Federal de Pelotas e expus de forma breve o tema da minha dissertação, então perguntei

9 É de conhecimento que o racismo se apresenta de forma mais ou menos explícita dependendo do local

social que percorremos, e que isto também está relacionado com o fenótipo negro, incluindo o tom de pele. Porém, esta análise está aprofundada neste trabalho, por esta razão (e também por não me sentir confortável) não tentarei apresentar a cor de pele de cada interlocutora.

se eu poderia estar conversando com ela de forma a me ajudar na pesquisa, rapidamente ela abriu outro sorriso e soltou com muito prazer: “Claro, claro”.

Quando perguntei sobre a sua idade eu fiquei impressionada por haver 63 anos, soltei um “sério?” e ela muito sorridente respondeu “sim” e explicou que era por ser negra, tocou em sua pele e disse: “não é como as brancas”.

Durante nossa conversa a sua simpatia era facilmente sentida e sempre acompanhada por um sorriso. Foi funcionária pública do Estado entregando cafezinhos, exercendo funções de diarista e pagamento em bancos. Passou sua juventude esticando os cabelos, primeiro dos 12 aos 15 anos utilizou o processo de ferro quente e a chapinha baiana, e dos 16 aos 20 anos aderiu ao henê.

Iara é a que menos aparecerá neste trabalho, não por ela não ter compartilhado informações importantes, mas sim porque o ambiente não proporcionava um momento para uma longa conversa por dois motivos: primeiro, o som que saia do palco estava alto demais, como também tinha uma multidão de pessoas à nossa volta conversando e vendo todos os produtos que estavam sendo expostos; segundo, ela estava trabalhando, apesar de que a hora que a avistei era a única sem cliente, eu sabia que se tomasse horas de conversa eu poderia atrapalhar as suas vendas.

2.2.3. Bárbara

Enquanto ocorria a Marcha, me chamou bastante a atenção quatro negras vestindo camisetas amarelas e com escritos sobre a Marcha do Orgulho Crespo, mas a que mais me aguçou curiosidade foi uma senhora, magra, alta, e de cabelos grisalhos e curtos. Ela caminhava perto de quem puxava o andar da Marcha, as vezes se afastava para as laterais até chegar o momento em que a perdi de vista.

Como meu desejo era de conversar com negras de distintas gerações, o tom da cor de seu cabelo me sinalizou uma idade entre os 50 anos. Reencontrei Bárbara quando a Marcha havia se dissipado entre o palco e a

Feira Afroempreendedora10, ela estava em pé, parada, um pouco distante das

outras pessoas e concentrada olhando para o palco, me aproximei e me apresentei em seguida, perguntando se ela não se importava de conversar comigo, logo se mostrou disposta e disse: “vamos lá para trás sentar um pouco”. Meu levou para uma outra tenda que estava posta em direção ao palco, mas bem distante. Chegando na lateral da tenda, haviam algumas mulheres sentadas e duas cadeiras de praia vazia, ela as pegou e me levou um pouco mais para trás da tenda, me mandou sentar na cadeira que estava em melhor estado de conservação e se colocou disponível para responder o que fosse necessário.

Bárbara tinha seus 57 anos, havia participado nos anos 90 do Movimento Negro do Morro da Conceição, é a mãe de uma das organizadoras da Marcha, foi a partir dela que cheguei em Débora que será apresentada em seguida.

Consciente da importância do significado em enaltecer o cabelo crespo, sua fala tinha como base a aceitação de negras e negros com os seus traços físicos. Apesar do envolvimento com o Movimento Negro, sua adolescência também foi marcada pelo uso de alisantes nos cabelos, especificamente dos 14 aos 18 anos. Sofria constante pressão da mãe para que os cabelos fossem alisados, e lutava para fazer com que suas primas começasse a participar da Marca do Orgulho Crespo, a fim de fazê-las desenvolver outra consciência sobre elas próprias e abandonassem os alisamentos.

2.2.4. Débora

Encontrei Débora em um momento enérgico, pois era uma das organizadoras da II Marcha do Orgulho Crespo, então sua atenção era exigida em vários lugares, inclusive por e para mim. Ela era uma das negras de camiseta amarela do evento que puxava a Marcha e a conheci através de sua mãe, Bárbara, que quando informei que tinha interesse em conversar com uma das organizadoras, fez questão de chamá-la na mesma hora.

10 A Feira Afroempreendedora Gaucha é projetada para o respeitar a cultura afro brasileira, reunindo conhecimento e negócios

em um só lugar. tem como objetivo potencializar o afroempreendedorismo e promover o desenvolvimento de uma rede de afroempreendedores no conceito de encadeamento produtivo.

Débora tinha 31 anos, uma filha de 3 anos, formação em Técnico em Enfermagem e nos cabelos 4C11 (formato informado por ela) usava tranças

enroladas em dois coques, um em cada lado da cabeça, também deixando algumas mechas soltas à frente dos coques. Seu envolvimento com a Marcha iniciou quando acompanhou as notícias da primeira Marcha do Orgulho Crespo no país, realizada em São Paulo, então ela entrou em contato com a organização e em 2015, realizou a I Marcha do Orgulho Crespo em Porto Alegre.

Participante de grupos online sobre transição capilar, teve seu primeiro contato com alisantes aos 9 anos e seguiu usando até os 27 anos, o motivo para o abandono do produto foi a gestação da filha. Nossa conversa foi relativamente curta, fomos interrompidas várias vezes por conhecidos de Débora e também por familiares, mas seus relatos (feitos a partir de questionamentos feitos por mim) foram a respeito da discriminação que tanto negras quanto negros sofriam devido ao uso de alguns penteados, e também sobre como se “tornou” negra nos últimos anos.