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1. CRISE DO CAPITAL, OFENSIVA NEOLIBERAL E SUAS

1.2. A contrarreforma do Estado brasileiro

A chamada crise do Estado não é um fenômeno que pode ser tratado em si mesmo senão vinculado à crise geral do capital eclodida em nível mundial nos marcos da década de 1970. Seus reflexos nos países de capitalismo periférico serão mais explicitados entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990, período em que os governos, sob o bordão da governabilidade e coerentes com as orientações do Consenso de Washington, assumem e se comprometem com os organismos financeiros internacionais a colocar em prática um amplo programa de “reformas”.

É neste cenário que se desencadeia a "reforma" do Estado brasileiro, sustentada pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado no Governo de FHC. Para justificá-la, fortaleceu-se a ideia de uma crise fiscal, caracterizada pela crescente perda do crédito por parte do Estado e pela poupança pública negativa; pelo esgotamento da estratégia estatizante de intervenção do Estado (então revestida pelo Estado de Bem-Estar nos países desenvolvidos; pelas estratégias de substituição de importações no Terceiro Mundo e pelo estatismo nos países comunistas); e pela superação da forma de administrar o Estado, caracterizada pelo peso e excesso burocráticos. Tais fatores são associados à crise econômica e social vivida no Brasil desde o início dos anos 1980. Nesse período, a adesão brasileira às orientações conservadoras dos organismos internacionais e do Consenso de Washington esteve intimamente condicionada ao processo de transição democrática (controlado pelas elites) e “à resistência ao desmonte de uma estrutura produtiva de ossatura sólida, construída no período substitutivo de importações, mantendo-se, evidentemente, a heteronomia como marca estrutural” (BEHRING, 2008, p. 130). Ocorreu o recrudescimento do endividamento externo e deu-se aí um aprofundamento das dificuldades de formulação de políticas econômicas de impacto nos investimentos e na redistribuição de renda – situação esta que se estendeu aos demais países da América Latina.

Vale citar que uma grande parte da dívida externa foi contraída pelo setor privado, todavia, neste cenário, assumida pelo setor público, a exemplo do Brasil, que teve 70% da dívida externa transformada em

dívida estatal. De acordo com Kucinski e Branford apud Behring (2008, p. 133), criou-se, desta forma, uma contradição entre a intensa geração de receitas de exportação pelo setor privado e o intenso endividamento do setor público em que “ao governo só restaram três caminhos: cortar gastos públicos, imprimir dinheiro ou vender títulos do Tesouro a juros atraentes”. A opção, ao longo da década de 1980, foi pela emissão de títulos, elevando os juros e alimentando o processo inflacionário8. Nisto, a crise inerente ao endividamento resultou em: empobrecimento generalizado dos países da América Latina, principalmente do Brasil (seu país mais rico); crise dos serviços sociais públicos; desemprego; informalização da economia; favorecimento da produção para exportação em detrimento das necessidades internas.

Na sequência à crise da dívida, diante da possibilidade de colapso financeiro internacional, aprofundou-se e disseminou-se o discurso da necessidade dos ajustes e dos planos de estabilização. Tratou-se de parte de um ajuste global, reordenando as relações entre o centro e a periferia do mundo do capital. E, nisto, ao longo dos anos de 1980, as dificuldades do Estado brasileiro adquiriram transparência em alguns aspectos: intensa centralização administrativa; hipertrofia e distorção organizacional por meio do empreguismo, sobreposição de funções e competências e feudalização; ineficiência na prestação de serviços e na gestão; privatização expressa na vulnerabilidade aos interesses dos grandes grupos econômicos e na estrutura de benefícios e subsídios fiscais; déficit de controle democrático, diante do poder dos tecnocratas e, dentro disso, reforço do Executivo em detrimento dos demais poderes.

O Brasil entrou, assim, nos anos de 1990, sendo desmantelado pela inflação – fermento para a possibilidade histórica da hegemonia neoliberal, e “paralisado pelo baixo nível de investimento privado e público; sem solução consistente para o problema do endividamento; e com uma situação social gravíssima” (BEHRING, 2008, p. 137). Neste sentido, é pertinente abordar alguns elementos político-econômicos principais da crise que foram sintetizados por Velasco e Cruz (1997, p. 118-119):

1) transferências pesadas de recursos reais ao exterior para o serviço da dívida∕reações defensivas generalizadas de grupos sociais empenhados em preservar suas participações respectivas na renda nacional; 2) relaxamento dos

8 Conforme Kucinski & Brandford apud Berhing (2008, p.134), o Brasil saltou de uma inflação anual de 91,2%, em 1981, para 217,9% em 1985.

mecanismos autoritários de controle político∕ampliação da capacidade organizativa e do poder de barganha de setores populares∕dificuldades crescentes de imposição autocrática de respostas prontas ao problema de como distribuir as perdas que pesam sobre o conjunto da sociedade; 3) intensificação de pressões cruzadas sobre o orçamento do governo, tanto pelo lado da receita quanto pelo gasto público∕crise fiscal∕recurso sistemático a emissões inflacionárias como meio para financiar despesas correntes e administrar conflitos; 4) impacto desigual da inflação sobre a renda dos diferentes grupos∕exacerbação do conflito distributivo∕pressões redobradas sobre o Estado, etc.

Como resposta aos altos níveis de inflação, o Plano Real adentrou aos anos de 1990 como política econômica sustentada em moedas sobrevalorizadas, déficits comerciais e absorção de “poupança externa”. Todavia, logo se deparou com seus limites estruturais, caracterizados, inclusive, pelo agravamento do déficit das contas públicas – atrelado aos juros altos. Situação esta que, de acordo com Behring (2008, p. 160), agravou o endividamento público e privado, obrigando à busca de constantes superávits primários por parte do governo federal, em obediência às imposições dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Nesta perspectiva, ocorreu a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, isenta de preocupação com a responsabilidade social, o agravamento das dificuldades de investimentos estruturantes e a restrição das políticas nacionais de seguridade pública. Conforme Teixeira (2000, p. 19), a consequência da conjugação de um movimento de reestruturação perversa e defensiva com políticas macroeconômicas que freiam o dinamismo da economia certamente seria o desemprego estrutural, por meio de redução dos empregos no setor formal, em especial na indústria, em que ocorreu enorme supressão dos postos de trabalho.

As consequências do ajuste neoliberal incidiram no âmbito da política social não somente devido ao aumento do desemprego que conduziu ao empobrecimento e ao aumento da demanda por serviços sociais públicos, mas, principalmente, devido ao corte de gastos e à flexibilização de direitos (TELLES, 1998), agregados às políticas de privatização. Como analisa Fagnani (2005, p. 416), “a estratégia

macroeconômica, central e hegemônica na agenda governamental”, limitou enfaticamente as possibilidades efetivas de desenvolvimento e inclusão social, visto que acarretou “aumento da crise social, percebida, sobretudo, pela notável desorganização do mundo do trabalho e seus efeitos sobre o emprego e a renda”.

Mediante o exposto, é inegável que a macroeconomia assumida para colocar em prática o Plano Real trouxe decisivamente implicações sobre o Estado e as classes subalternas. Para a burguesia, ocorreu um deslocamento patrimonial com ênfase na inserção do capital estrangeiro. Para a classe trabalhadora, deu-se o recrudescimento das condições de vida e de trabalho e o simultâneo ataque aos direitos sociais, tendo as lutas políticas um caráter defensivo e, portanto, diverso às características das lutas empreendidas ao longo da década de 1980.

A ampliação dos deveres sociais do Estado no contexto da elaboração e aprovação da Constituição de 1988 foi considerada, por parte dos setores conservadores, defensores de um modelo de Estado neoliberal para o Brasil, como motivo de sua ingovernabilidade. Na visão de tais setores, haveria excesso de demandas sociais colocadas à esfera estatal e rigidez nos gastos federais com a vinculação de receitas. Consideravam ainda que o Estado, impossibilitado de atender às demandas sociais, levaria à formação de embates corporativos dentro da esfera política, em que os grupos mais organizados conseguiriam barganhar suas reivindicações. Neste contexto, a consideração do mercado como única via para o crescimento econômico induziu às ideias monetaristas, propondo a limitação dos gastos sociais públicos, via “reformas” constitucionais – fazendo adesão às medidas pleiteadas no âmbito da conjuntura internacional.

No que se refere aos organismos internacionais, é importante ainda salientar o papel do Banco Mundial (BM), especialmente no campo das políticas sociais, que, desde 1975, já vinha elaborando as primeiras diretrizes de reforma nas políticas de saúde para os países devedores, com questionamentos ao padrão universalista e enfatizando a necessidade de priorização na atenção básica, na seletividade e focalização da atenção aos mais pobres (RIZZOTTO, 2000). Em 1987, no documento Financiando os serviços de saúde nos países em desenvolvimento: uma agenda para a reforma, concretiza os parâmetros de “reformas” na área da saúde direcionadas aos países por ele subsidiados, articulando sua proposta à política neoliberal assumida pelas instituições financeiras desde os anos de 1980. Neste documento, o BM questiona a intervenção do Estado na operacionalização dos

serviços de saúde, acentuando a necessidade de maior racionalidade na utilização de recursos (COSTA, 2000).

Em outro documento, na década de 1990, o BM afirmava que “muitos países em desenvolvimento que desejam reduzir a magnitude de seu desmesurado setor estatal devem conceder prioridade máxima à privatização”, orientando os governos a priorizar os “setores sociais fundamentais”, com políticas públicas focalistas, maior eficácia e equidade nos gastos sociais. Tal orientação "traz como conseqüência a quebra do caráter universal de tais políticas, tão caro às lutas sociais" (CORREIA, 2007). Nessa perspectiva, as políticas sociais tiveram como centralidade: a focalização em setores vulneráveis ou de extrema pobreza; a descentralização da gestão da esfera federal para estados, municípios e com a participação na esfera local de organizações não- governamentais, filantrópicas e comunitárias; a privatização, com o deslocamento de prestação de bens e serviços públicos para o setor privado, ou seja, para o mercado.

No documento do BM Do confronto à colaboração (GARRISON, 2000, p. 46), elaborado para o Brasil, a sociedade civil, vinculada ao vasto setor não-governamental, tem como princípios tornar o Estado “mais responsável, enxuto e eficaz na prestação de serviços públicos”. A parceria com a sociedade civil é afirmada como necessária às melhorias no processo de formulação de políticas públicas, na qualidade dos serviços prestados e na extensão das taxas de retorno.

De acordo com Laura Tavares Ribeiro Soares (2001, p. 19), as reformas estruturais de cunho neoliberal – centradas na desregulamentação dos mercados, na abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na redução do Estado – assumiram (especialmente a partir de 1985) “uma convergência forçada nas medidas recomendadas pelo BM, que foram ganhando força de doutrina constituída, sendo aceitas por praticamente todos os países”. Tais recomendações estiveram na base dos ajustes e da "reforma" do Estado brasileiro, conforme veremos mais adiante, neste trabalho.

A perspectiva reducionista de sociedade civil presente no projeto de “reforma” do Estado brasileiro recoloca em cena a discussão entre público e privado. Pode-se afirmar que, além das repercussões sobre o Estado, tal perspectiva enfeixada pela ideologia neoliberal e seu campo teórico, provocou mudanças nos eixos estatal-privado ou entre Estado e sociedade civil. A polarização entre esfera pública e esfera mercantil, na opinião de Sader (2009), recoloca estes dois campos como terreno de disputa e de embates entre as classes sociais.

A concepção de sociedade civil no âmbito do projeto de “reforma” do Estado brasileiro será debatida com mais ênfase no item a seguir, sem deslocá-la da concepção e projetos apregoados ao Estado e às políticas sociais – espaços fortemente tensionados e influenciados pelos desdobramentos da contrarreforma.

1.3. Estado, sociedade civil e políticas sociais na contrarreforma do