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Contrastes entre Peter Pan e Capitão Gancho

3 MASCULINIDADE: CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES

5.1 PETER PAN E CAPITÃO GANCHO

5.1.1 Contrastes entre Peter Pan e Capitão Gancho

Para analisar Peter Pan, foram reunidas todas as personagens da animação nas duas tabelas: tanto a que contém características de um masculino hegemônico (MH) quanto de um masculino contra-hegemônico (MCH), estabelecendo, desse modo, a polaridade proposta por Legros (2014), mas contemplando os demais personagens para enriquecer essa parte da análise. Essas tabelas servem para compreender outras possíveis manifestações do gênero masculino no contexto em que “vivem” e interagem, os personagens dessas histórias.

Gráfico 1 – Características MCH e MH 1

Fonte: Criação do autor.

É possível perceber nos índices (Gráfico 1) que Peter Pan lidera absoluto no maior percentual de masculino hegemônico em relação ao contra-hegemônico, marcando a maior pontuação. No entanto, seu algoz, o Capitão Gancho, é o penúltimo em ordem de menor pontuação das características, ficando atrás apenas de seu lacaio, Mr, Smee. George, o pai de família, mandão e controlador, aproxima-se de Peter Pan, mas ainda assim não o alcança, mesmo sendo um homem adulto e, teoricamente, mais viril. Miguel aproxima-se de Gancho e Smee, mas suas dinâmicas e ações durante o filme estão bastante ligadas ao universo feminino, pois é praticamente um bebê. O cruzamento dos dados denota que Peter Pan representa um possível ideal de construção de gênero masculino no universo de sua animação.

Mr. Sm e e Cap itã o Gan ch o Mig u e l Da rlin g Croc o d ilo Jo ão D arl in g Pira ta s Me n in o s P erd id o s C h e fe Ín d io G eo rge Da rlin g Ín d ios Pe te r Pa n

Quanto à imagem, a forma como as personagens são apresentados pode ser lida através dos estilos, que como conceitos de Maffesoli (1999), indicando uma forma formadora, que carrega ou cristaliza aspectos do imaginário. Se comparadas as personagens (Figura 19), são perceptíveis suas diferenças. Peter Pan é mediano, usa roupa esfarrapada, um pouco surrada, possui cabelo vermelho curto, sapatos baixos, sobrancelhas grossas e ostenta um pequeno gorro com pena. Suas roupas são em tom verde e musgo, aludindo às plantas, à natureza. O olhar de Peter Pan é sempre decidido, forte.

Figura 17 – Gancho e Peter Pan

Fonte: criação do autor

Em contrapartida, Capitão Gancho é alto, moreno, aparece sempre muito bem vestido, ostentando um enorme chapéu com plumas, roupas alinhadas e de cores vermelhas e rosas. Além disso, tem cabelo comprido, usa salto alto, possui rosto anguloso, nariz grande, roupas com babados na camisa, usa lenços, exibe barba bem- feita com bigode suntuoso. Peter Pan porta apenas uma adaga, enquanto Gancho possui uma espada e uma pistola – símbolos fálicos, que potencializam ou artificializam uma masculinidade.

Outra curiosidade do contraste entre Pan e Gancho, que reforça a ideia do dandismo do personagem, se dá pelo fato de a versão em inglês o personagem de Peter Pan falar com sotaque norte-americano, enquanto o Capitão Gancho possui sotaque britânico, tal qual um lorde inglês. Característica marcante de outros vilões

da Disney em contraste com os protagonistas (Figura 19), como João Honesto em relação à Pinóquio (Luske, 1942), o tigre Shere Khan em contraponto a Mogli, o

menino lobo (Kipling, 1963) e Scar a Simba, em O Rei Leão (Allers, 1994)22.

Figura 18 – Vilões com sotaque britânico

Fonte: acervo pessoal do autor.

Na primeira sequência onde há um encontro direto entre as duas personagens (Figura 20), é possível conferir na prática, as características díspares existentes. Peter Pan caçoa de Gancho e o humilha a todo momento durante a luta. Ele se mostra mais hábil e melhor combatente que o Capitão, tendo o voo como vantagem. O Capitão leva à sério o confronto, mas para Peter tudo não passa de uma grande brincadeira. Essa demonstração de competitividade e masculinidade pública é típica de um ideal de masculino hegemônico, e faz parte da dominação simbólica, segundo preceitos de Badinter (1993) e Bourdieu (2000).

Figura 19 – Luta entre Peter Pan e Gancho

Fonte: acervo pessoal do autor

O homem precisa se provar diante dos demais e de outras pessoas como parte do processo de iniciação no mundo masculino e acompanha a maturação do menino. Também se relaciona diretamente com as concepções de Stoller, reforçadas por Badinter da ideia de um homem que nunca é “homem de verdade”, vive em eterna

22 No documentário Do I Sound Gay? de David Thorpe, ao investigar que se há indícios no tom de voz

ou no modo de falar que possam indicar a sexualidade, fala da afetação na voz que faz os vilões da Disney, como Scar e Shere-Khan, remeterem a homens gays: <http://www.doisoundgay.com/>. Acesso em: 28/12/2017.

construção e validação de si mesmo. Peter Pan parece estar nesse limiar – não quer crescer, mas o mundo que habita o leva a exercer a violência física, ser bruto, ser heterossexual e desempenhar habilidades através da força e do confronto. Segundo Connell e Messerschimidt os comportamentos de Pan parecem ir a favor da construção de uma identidade masculina:

Na juventude, as habilidades corporais se tornam um indicador primeiro de masculinidade, conforme vemos no esporte. Essa é uma forma-chave de ligação entre a masculinidade e a heterossexualidade na cultura ocidental, com prestígio dado aos meninos com parcerias heterossexuais e o aprendizado sexual imaginado como exploração e conquista. Práticas corporais, tais como comer carne e assumir riscos na estrada, também se tornam ligadas às identidades masculinas [..], mas as dificuldades dos processos degenerativos também são parcialmente baseadas na encorporação, como, por exemplo, no compromisso com práticas de risco como significantes para o estabelecimento da reputação masculina em um contexto grupal de pares (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013, p. 269).

Diferente de Peter Pan, Gancho, quando se sente acuado, chora e implora para o rival desistir da briga. Ele sempre se mostra frágil em algum momento dos confrontos. Peter Pan nunca cede aos caprichos do vilão, o que faz o segundo parecer mais sensível e frágil que o herói. Em alguns momentos, Gancho é traiçoeiro com o garoto, tentando apunhala-lo por trás, evidenciando, deste modo, sua vilania.

Fato é que ambas personagens possuem características empáticas com o espectador. Morin (2005) fala da duplicidade e da projeção-identificação que caracterizam o efeito que o cinema tem de conseguir atingir a psique humana através da criação de duplos – cópias, projeções do espectador nas personagens. Na história, os planos de Capitão Gancho são condutores da narrativa, bem como sua comicidade, o que o faz sua aparição na tela ser tão frequente (quase tantas vezes quanto Peter Pan) durante a história.

O espectador incorpora as personagens da tela e, no caso de Peter Pan, possivelmente, cria um laço de empatia duplo – com o bravo herói e com o cômico vilão – estabelecendo uma espécie de campo de participação afetiva, que o faz pender a todo momento para ambos os dois lados. Os heróis e vilões representam as polaridades da história e da mente humana, que são as bases da construção do imaginário (LEGROS, 2014). No entanto, espera-se que ao fim da narrativa audiovisual, o vilão tenha o castigo que merece e o herói vença o monstro, remontando as narrativas arcaicas que acompanham a humanidade, pois o vilão é uma espécie de duplo do herói, sua parte sombria. O happy end se confirma (MORIN,

1977), e como esperado, Peter vence Gancho, humilhando-o publicamente em uma luta, levando o vilão, às lágrimas, gritar que é “um bacalhau”. Ele deixa Gancho cair no mar, com o crocodilo em seu encalço. Peter Pan toma o navio de Gancho e sua roupa, levando os meninos perdidos e Wendy de volta à Londres.

Figura 20 – Peter veste a roupa de Gancho

Fonte: acervo do autor.

A imagem de Peter Pan vestindo o manto de Gancho e performando trejeitos ao dar ordens aos meninos perdidos – poderia ser interpretado sob duas perspectivas: o herói mostra que o vilão é uma espécie de máscara que pode ser performada, vestida no âmbito social (talvez não fosse possível imitar Peter Pan da maneira que ele é construído, por exemplo); indica que, ao fim da história, o menino vira um amálgama entre o que era e o que Gancho representava, indicando, talvez, a aceitação da vida adulta vindoura, como a substituição do velho pelo novo, o princípio da neurose masculina e semente de sua competitividade, segundo Boechat (1995).

O contexto em que o filme foi criado, anos 1950, diz muito sobre a representação das personagens – a feminização do mundo era uma ameaça, de acordo com os estudos de Elizabeth Badinter, presente no capítulo terceiro desta dissertação. Peter Pan acompanha o imaginário de um homem guerreiro, quase selvagem, uma esperança pós-guerra, que reavivou esse ideal masculino no ocidente, especialmente, nos EUA (BADINTER, 1993). Capitão Gancho, assim como Mr. Smee em muitos momentos, representa esse homem delicado, vaidoso, de uma Inglaterra arcaica, um velho Mundo, substituído por ideais americanos novos, joviais e viris.