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3 MASCULINIDADE: CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES

3.2 O TEMOR À FEMINIZAÇÃO DO HOMEM E DA CULTURA

3.2.1 Homens nem tão viris: Don Juan e o dandismo

Apesar da masculinidade viril e as grandes figuras de dominação masculina serem os modelos da modernidade do Ocidente, surge nesse contexto Don Juan, um dos grandes mitos modernos de sedução. Segundo Legros (2014), por nascer da imaginação literária, o personagem romanesco não pode ser isolado do contexto social do seu surgimento, refletindo assim os sentimentos e pensamentos de uma época e local. O autor afirma que Don Juan é fruto de uma sociedade holista, na qual importa mais o coletivo que o indivíduo, por isso é mais simbólico que individualizado, de representações anônimas e coletivas, o que o faz mais próximo do mito. Mas o personagem está ligado a arquétipos do fundo das eras, sobretudo, ligados à sexualidade.

Foucault (1977) também remete à figura de Don Juan, pois o mesmo contestava e escapava das normas sociais do matrimônio por ser libertino, roubar mulheres, intrigar e desafiar homens, gozar dos prazeres do sexo. Ele fere a lei e afasta-a para longe. O autor levanta a possibilidade, dita por psicólogos, de que ao quebrar a lei da aliança, o personagem levanta em estudos psicanalíticos a possibilidade de ser homossexual, narcisista ou impotente. Fato é que o personagem surge como uma resposta à Modernidade:

O imaginário que se constitui no século XVIII esconde um fundo comum e se organiza em torno de quatro esquemas: efeminação (física ou tática) do sedutor, a tentação homossexual ou a realidade sáfica que ela implica, a fuga sobre a qual ela dissemina, ou, ainda, a abstração, positiva ou negativa, da mulher que ela suscita. No século XIX, sua permanência e sua interiorização são analisadas através dessas figuras da sedução que são o dândi, o esteta do fim do século ou o homem das mulheres dos romances naturalistas. Depois, no século XX, a pesquisa que se amplia no cinema e na moda observa sua pregnância na construção dos personagens modernos do gigolô, do playboy e do sex symbol (LEGROS, 2014, p. 193).

O teórico junguiano, Walter Boechat (1995), ao tratar de arquétipos do masculino, define Don Juan como a representação de um conquistador, relacionado à imaturidade masculina. Seu falicismo obcecado esconderia sua homossexualidade

mal resolvida e em mulheres fugidias com quem se envolve, disfarça-se a mãe. O personagem foi eternizado no poema satírico de Lorde Byron, em meados de 1819. Outro arquétipo masculino semelhante, em termos de sexualidade e efeminação, seria o puer aeternus, a eterna criança sem poder de penetração e ligado a figuras femininas que representam a Grande Mãe. As dificuldades na identificação sexual são frequentes em homens presos no complexo de puer aeternus. Uma das personagens que representam essa figura, de acordo com o autor, seria Dorian Grey, o homem vaidoso cuja imagem jovem foi imortalizada em um quadro mediante um pacto, no livro de Oscar Wilde.

Tanto Oscar Wilde quanto Lorde Byron, bem como seus personagens, são considerados dândis – homens semelhantes aos Preciosos, caracterizados por uma certa efeminação e dubiedade sexual, sobretudo, por não exaltarem as características de um imaginário viril, que a sociedade da época alimentava. Os autores também eram associados à homossexualidade (Wilde)16 e à bissexualidade (Byron).17

Barbosa (2015), ao tratar da “estética dândi” no cinema, afirma que boa parte dos estudos acerca do dândi apontam para a figura de George Brummel (1778-1840), como pioneiro do fenômeno: o dândi por excelência. “Beau” Brummel, como era chamado, foi considerado um homem elegante, repleto de admiradores e que exercia um fascínio na sociedade que circulava. Ele possuía um modo impecável e sofisticado de se vestir, com fins vaidosos e egocêntricos, – uma moda que era arte pela arte. Diferente dos burgueses, homens de negócio da época, que se vestiam sem muita rigidez ou afinco. Ainda, segundo o autor, Brummel possuía um humor irônico permanente, que se caracterizava por mesclar uma frivolidade inédita ao seu modo elegante de ser: “É como se aquele homem extremamente bem vestido, cortês e gentil tivesse, paradoxalmente, a fragilidade superficial, inócua e cadavérica de uma máscara ou de um artifício em constante e infinita mutação” (BARBOSA, 2015, p. 2).

Brummell vivia uma vida hedonista, cheia de vaidade, a fim de impressionar os salões, clubes, eventos de que participava com sua aparência e apreço estético pela arte, mesmo não sendo um intelectual ou artista, mas causando fascínio ao ponto de

16 Oscar Wilde foi condenado a dois anos de prisão, junto de seu amante, após sua conduta

homossexual ser considerada imprópria. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1415- 47142010000300009> Acesso em 25/1/2018.

17 AMBROSE e NAZARIAN (2011), na obra Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos, aprofundam um pouco sobre o envolvimento amoroso e sexual de Lorde Byron com homens e mulheres.

ser objeto de estudo e inspiração destes. Muito mais que dinheiro e poder, o dândi mostrava à sociedade moderna da época uma forma diferente de se viver: “O dândi põe em cheque o que é sério e o que é irrelevante, embaralha o que é considerado produtivo e inútil pela ordem econômica e social” (BARBOSA, 2015, p. 4). O “dandismo” seria composto de personagens, auras e superficialidades que punha em questão a ordem da cultura burguesa na modernidade, confrontando, até certo ponto, o utilitarismo capitalista, por meio da fomentação de uma arte do inútil.

Mas se a rebeldia do dândi – ou do dandismo – consistia numa espécie de radicalismo da frivolidade e do inútil, ele fatalmente deveria ser marginalizado dos recortes sensíveis que o modernismo construiu para a arte ao longo do século XX. A elegância lânguida do dândi, por mais que incomodasse a ordem estabelecida, era demasiado diferente das convocações para o “despertar” e para a “ação” caras à sensibilidade revolucionária do modernismo. O gosto dândi pelo decorativo e pela moda não estava incluso no horizonte utópico modernista (BARBOSA, 2015, p. 5).

Já Don Juan de Byron, apesar de não ser tão impecável quanto Brummell, pode também ser considerado dândico, pois é extravagante, rebelde, romântico e despojado, transitando por diversos ambientes, em um divertimento mundano, inspirado pelas experiências vividas por seu autor. Don Juan transita por uma complexidade, fruto da insensibilidade do mundo combinada com prazeres indulgentes, saboreadas em seus casos românticos.

dandismo: um modo de se relacionar com o mundo que, por um lado, privilegia o esteticismo, a beleza, a elegância, a delicadeza, o pitoresco ou pictórico, isto é, uma ordem e, por outro lado, paradoxalmente, põe em cheque essa “ordem” ao privilegiar a superficialidade, a frivolidade, a fragilidade, o artifício, o lúdico, a ironia ou wit, a indiferença ou a frieza. É como se o encanto e o esplendor só pudessem ser acessados por uma artificialidade infinitamente mutante (BARBOSA, 2015, p. 7).

Há, segundo o autor, uma eterna construção cênica do dândi, uma performance, artificialidade que gera um tipo de ar blasé e frio, ele é teatral, como uma máscara, um deboche, uma caricatura – ele promove um eterno jogo entre subverter as regras e obedecê-las. Januário (2016), ao tratar do dandismo durante o período da Regência Inglesa (1800-1830), afirma que além de tornar-se um símbolo de atitude ideológica pró-aristocrática e rejeitar, paradoxalmente, os códigos de conduta e valores burgueses, o dândi apresentava um jeito narcisista e esnoba que expunha um novo erotismo masculino na época. O movimento era uma forma de busca de

perfeição, transcendência, do qual participaram Baudelaire, Lorde Byron e Alfred D’Orsay.

Figura 5 – Brummell Figura 6 – Dândis em conjunto

Fonte 5: Disponível em: <https://ulupconceptstore.files.wordpress.com/2015/10/dandy2.jpg> Fonte 6: Disponível em <http://www.jornalfato.com.br/artigos/roney-moraes/857/a-bienal-o- festival-e-o-homem-nu> Acesso em: 10/10/2017.

O dândi e o dandismo perderam força a partir do fim do século XVIII, com a reconstrução da imagem do indivíduo na aristocracia. Ostentar adornos, roupas e joias como forma de exibir poderes foi, aos poucos, sendo abolida e a ganhar uma conotação negativa. A nova ordem social implicou em novas formas de representação de poder social e financeiro – as roupas mais simples passaram a ser valorizadas e tanto a etiqueta moral quanto social eram alinhadas com rigor. Nesse contexto modificado, a mulher tornou-se a grande responsável pela imagem da família no âmbito público, acompanhada pelo crescimento de uma imprensa, bem como uma alta produção de bens voltados ao público feminino. A indumentária masculina, por sua vez, foi tornando-se cada vez mais sóbria e simples. Segundo a autora, esse fator influenciou significativamente, a partir de então, “as regras para a vida pública e privada de homens e mulheres” (JANUÁRIO, 2016, p. 130).

O desenvolvimento tecnológico, a industrialização massificada, e a instituição das esferas pública e privada, impulsionados pelo capitalismo industrial do século XIX, influenciaram os indivíduos. O imaginário do homem modelo passa a ser o

empreendedor austero, ao passo que há uma massificação de padrões entre o proletariado. Assim, resta aos mais abastados recorrerem a uma diferenciação baseada na moda.

Ao longo dos anos, delimitada pela rigidez dos códigos sociais, a extravagância das indumentárias tornou-se prerrogativa feminina. O exagero visto no traje masculino do século XVIII era uma forma aristocrática de representação de poder. Com as novas convenções sociais, a banalização da aristocracia, a industrialização do trabalho e uma nova perspectiva condenatória da homossexualidade a partir do século XVIII, tudo isto tornou o homem mais sóbrio (Nery, 2004; Abdala, 2008 in: JANUÁRIO, 2016, p. 130).

Aos poucos, o masculino transferiu a ostentação nas roupas de luxo, que evidenciava seu poder de compra, para sua esposa e filhas. A autora acredita que esse fato possa justificar o fato de a vaidade ser uma prerrogativa feminina, sobretudo, em se tratando de moda e estética. Baseada em Lipovetsky, Januário fala de um neo- narcismo, na contemporaneidade, marcado pelo interesse dos homens em cuidar do corpo, da forma física, cosmética e vestuário. Essa característica se relaciona com o próximo tópico, que diz respeito à feminização do mundo proposta por Michel Maffesoli.