• Nenhum resultado encontrado

Lazer: Raízes etimológicas

A origem etimológica da palavra lazer é proveniente do latim licere/licet, cuja existência está documentada, segundo Faria (1967), em várias obras da antiguidade, tais como Verrinas, Pro Roscio Amerino e Pro Balbo, de autoria de Cícero. Estes termos foram criados pela antiga civilização romana e significavam ser lícito, ser permitido, poder, ter o direito (TORRINHA, 1937; FERREIRA, [s.d.]).

A explanação acima abrange o sentido literal do vocábulo licere, instigando-me a caminhar em direção à compreensão dos significados assumidos pelo lazer em um contexto determinado social e historicamente. Neste percurso, é importante considerar as reflexões já sistematizadas, sobre a questão, por estudiosos brasileiros do lazer.

Marinho (1979) afirma que o latim licere está relacionado com o tempo. Conforme suas constatações, os romanos racionalizaram o trabalho dos escravos e, para preservá-los, permitiam um tempo livre das obrigações cotidianas para cuidarem de si, zelarem por suas coisas e cultivarem suas artes. Para o autor, a estas “horas de lazer” foi dado o nome licere, isto é,

[...] as horas disponíveis para atividades voluntárias, que nada tinham a ver com a jornada de trabalho a que o escravo estava obrigado ou a atividade que lhe era própria. Este direito ao lazer tornou-se consuetudinário, principalmente entre os gladiadores. Assim, entre os romanos, o lazer (licere) passou a ser, sobretudo, o tempo de que o escravo dispunha livremente, para as suas atividades voluntárias. (MARINHO, 1979, p.18). Se o lazer é tomado como sinônimo das horas disponíveis para o “não trabalho” dos escravos, implícita está a idéia do exercício permitido de atividades desvinculadas do tempo dedicado aos deveres e obrigações. Observa-se, assim, que ao caracterizar o lazer na antiguidade o autor destaca a dimensão temporal do objeto. Esta observação sobre a raiz

etimológica do lazer coincide com os sentidos por ele incorporados na modernidade, freqüentemente associados com “horas disponíveis”, com um tempo de “não trabalho” a ser “livremente” empregado.

Como Elias (1998) assinala, antes da ocorrência da era moderna a sociedade não apresentava a necessidade de medir o tempo, de separar o curso da vida em frações estanques. Foi entre os séculos XVII e XVIII que se desenvolveu esta noção padronizada, modificando profundamente a compreensão do tempo como algo natural, regido pelo movimento da lua ou do sol, do ciclo das estações, da alternância do dia e da noite.

A noção de tempo já existia desde épocas mais antigas. Mas, na era moderna, especialmente a partir da chamada revolução industrial, esta noção foi ressignificada. Dessa maneira, o tempo passa a ser relacionado, principalmente, à divisão social do trabalho engendrada pelo modo de produção industrial capitalista, cuja lógica possibilitou também a histórica produção do chamado tempo livre, como indicam as reflexões de Thompson (1991).

Consultando as obras citadas por Marinho (1979) na parte de seu texto dedicada à análise das raízes etimológicas do lazer12, verifiquei que nenhuma delas indicava que o sentido original do vocábulo licere dizia respeito à questão do tempo, tampouco que o entendimento de lazer como o direito dos escravos a um tempo disponível após a jornada de trabalho era próprio dos costumes da antiguidade. Mesmo que os escravos dispusessem de momentos de descanso, e mesmo que os gladiadores pudessem vivenciar algumas atividades livremente escolhidas, a interpretação de Marinho (1979) precisa ser cuidadosamente repensada.

A questão do direito dos escravos romanos ao lazer é outro aspecto destacado por Marinho (1979) que necessita ser discutido. Conforme indicam estudiosos da história antiga, tais como Rouland (1997); Salles (1987) e Theml (1998), os escravos não detinham quaisquer

12

direitos, pois eles próprios eram objetos de direito de seus senhores. Um escravo não era obrigado apenas a cumprir uma determinada jornada de trabalho, mas, a dedicar toda a sua existência ao senhor, pelo menos enquanto estivesse nessa condição de total subordinação.13

Do mesmo modo, se na sociedade romana nem mesmo os comerciantes, pastores e outros integrantes da plebe eram considerados dignos de se valerem da proteção das leis, que dizer dos escravos romanos? Os direitos eram garantidos somente aos membros da aristocracia patrícia, o que implicava, necessariamente, o cumprimento de uma série de deveres. Como sublinha Rouland (1997), no rigor das hierarquias sociais e políticas romanas, os governados eram submetidos aos dirigentes, ou seja, os pobres viviam sob o jugo dos ricos e, os escravos, dos seus senhores. De acordo com a minha interpretação, o que fica claro é que as palavras latinas licere/licet estavam relacionadas com o permitido como concessão, e não como direito.

É importante lembrar que nem sempre há congruência entre a significação de vocábulos originados a partir de uma mesma raiz etimológica, pois os sentidos de um determinado termo variam de acordo com o contexto. Embora as palavras latinas licere/licet pudessem ser empregadas tomando-se como referência, por exemplo, as atividades consideradas lícitas, ou mesmo os momentos de descanso nos quais os deveres, as obrigações e outras atividades ligadas à subsistência cessavam, elas não diziam respeito a um tempo determinado, regular, como se designassem um “tempo livre” ou “horas de lazer” dos escravos na antiguidade.14

13

Na obra Política, de Aristóteles, é possível compreender que os escravos eram considerados como indivíduos inferiores, mercadorias, como “ferramentas de trabalho que se moviam e sabiam falar”. A utilidade dos escravos era semelhante à dos animais domésticos, empregando sua força física nas necessidades cotidianas. Um escravo “não só é servo do senhor, como ainda lhe pertence de modo absoluto” (ARISTÓTELES, [s.d.], p.15). A edição em português da obra Política apresenta a palavra “lazer” em diversas passagens. Mas, no meu entendimento, o fato de a palavra lazer aparecer nas considerações aristotélicas é fruto de uma tradução equivocada dos originais gregos.

14

As expressões “tempo livre” e “horas de lazer” encontram-se destacadas por aspas pelo fato de serem empregadas por Marinho (1979) na antiguidade, um contexto que, segundo meu entendimento, desconsidera a produção histórica e social desses objetos. Essa questão será tratada, com mais profundidade, nos próximos tópicos.

Essas observações preliminares fornecem argumentos para questionar a interpretação de Marinho (1979) sobre o direito dos escravos romanos a um tempo de lazer. A universalização dos direitos constitui um conceito moderno que se corporifica no século XVIII com a Declaração dos Direitos do Homem, cuja expressão marca o advento do capitalismo.

Além disso, Marinho (1979) também afirma que o que mais o impressionou em suas buscas sobre a etimologia da palavra lazer foi o fato de os modernos dicionários de latim não incluírem o verbo licere. Essa constatação reforça o questionamento relativo à sua explanação, que relaciona o lazer com um direito vinculado ao “tempo livre” dos escravos na antiga sociedade romana.

É necessário destacar que mesmo que licere tenha dado origem à palavra lazer na língua portuguesa, loisir na francesa e leisure na inglesa em muitos países são utilizados outros termos que, embora sejam utilizados com significação semelhante, possuem raiz etimológica diferenciada.15 É o caso, por exemplo, da Espanha, em cuja língua não encontramos a palavra lazer, mas o termo “ocio”, originado do latim otium. O “ocio” espanhol, no entanto, não se confunde com o vocábulo “ócio” tal como figura na língua portuguesa. Dessa maneira, o espanhol “ocio” incorpora um sentido mais aproximado da nossa palavra lazer.16

Dicionários etimológicos da língua portuguesa, como o elaborado por Machado (1969), atestam que a forma arcaica do vocábulo lazer era lezer (século XIII), que significava preguiça, pouca vontade de trabalhar. No meu entendimento, o arcaico lezer preserva o sentido de “não trabalho”, de descanso, mas não contém a idéia de tempo, tampouco de

15

Dias Neto (1999) faz interessante estudo sobre origem e pronúncia do vocábulo latino licere.

16

Para o pesquisador espanhol Frederic Munné (1980), a “história do ocio” pode ser conhecida a partir de cinco fases distintas: (a) a skholé como ideal grego; (b) o otium romano; (c) “ocio como ideal caballeresco”, denotador de status na baixa idade média e no renascimento; (d) ócio como vício no puritanismo e (e) o ócio burguês, entendido como um tempo subtraído do trabalho especialmente a partir da revolução industrial. Para aprofundamentos sobre o assunto, consultar a obra de Munné (1980).

divertimento. Tal concepção pode ter sofrido influência de princípios religiosos e morais em evidência na época, segundo os quais a diversão frívola era vista como uma prática nociva a ser banida da vida do “bom cristão”. A renúncia aos prazeres mundanos deveria ser realizada em nome dos benefícios divinos, decorrentes do árduo trabalho e do cumprimento dos deveres religiosos.

Como pontua Lafargue (1999), no antigo regime as leis da Igreja garantiam, aos trabalhadores, 52 domingos e 38 feriados. Igreja e Estado feudal se encarregaram de controlar as festas e divertimentos nesses dias de descanso, procurando conferir às práticas culturais o caráter de culto e de cerimônias oficiais sérias. As festas oficiais consagravam a desigualdade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, normas e tabus religiosos, políticos e morais.

Mesmo com a vigência desses preceitos, a cultura popular na idade média e no renascimento proporcionou outras visões de mundo, de homem e de relações humanas deliberadamente não-oficiais, que subvertiam a ordem social estabelecida. Contrastando com as festividades oficiais, os ritos e espetáculos cômicos populares e públicos ocupavam lugar de destaque na vida medieval. Os carnavais, por exemplo, levavam multidões às praças e ruas durante vários dias, questionando a verdade dominante e o regime vigente, como indicam interessantes constatações de Bakhtin (1979).

Todavia, o conjunto dessas manifestações culturais não era designado, na época, pela palavra lezer, nem mesmo pelo termo lazer, cuja existência lingüística não era sequer reconhecida. Divertimentos como os descritos e analisados por Bakhtin (1979) eram concebidos como manifestações da cultura popular na idade média e no renascimento. Nessa época, a dinâmica da vida em sociedade assumia um ritmo natural. Os momentos de trabalho, por exemplo, poderiam ser interrompidos por pausas, cantos, jogos e cerimônias, como acontece ainda hoje em algumas comunidades. Como discute Thompson (1991), nas

sociedades predominantemente rurais pode-se vivenciar e entender a diversão, o trabalho, o descanso, o convívio social e familiar como esferas que se misturam e se confundem mutuamente. A jornada diária se alargava ou se contraía conforme os labores necessários, sem a ocorrência de conflitos entre o trabalho e o passar do tempo.

Foi no século XVI que o termo lazer começou a ser empregado no Ocidente (MACHADO, 1969), sendo usado correntemente em vários países no decorrer do século XX. A palavra lazer é, portanto, relativamente recente no vocabulário de diversas línguas.

Como será analisada adiante, a questão da emergência do lazer em nosso contexto se coloca em terreno pantanoso de dúvidas e controvérsias entre os estudiosos do assunto. No meu entendimento, os significados a ele associados foram construídos através dos tempos, referências a partir das quais o lazer contemporâneo pode ser compreendido. Em virtude desse aspecto, para se compreender o lazer, hoje, não se pode negligenciar sua relação com os momentos de “não trabalho”, tampouco com a vivência de manifestações culturais construídas socialmente pela humanidade. Esses “antecedentes históricos” foram fundamentais para a emergência do lazer como um campo dotado de características próprias, apresentando-se da forma como o designamos hoje.

Diante do exposto, saliento a necessidade de se entender o lazer em sua complexidade política, histórica, social e cultural, explicitando suas condições de realização em nosso contexto. Assim, é preciso trazer as implicações que o constituíram, em nossa realidade, para a linha de frente de análise, pois elas representam a trama que permitiu a construção de sentidos do lazer em nosso contexto.

Emergência do lazer na sociedade ocidental

Apesar de alguns estudiosos considerarem que o lazer existe desde os tempos mais antigos (RUSSEL, 2002; DE GRAZIA, 1966; MUNNÉ, 1980), para outros pesquisadores a sua gênese situa-se nas modernas sociedades urbano-industriais, contexto que marcaria o surgimento desse fenômeno. Dumazedier (1979), por exemplo, afirma que o lazer possui traços específicos, característicos da civilização nascida da revolução industrial. Essas duas posições são, em princípio, polêmicas e divergentes, por isso demandam sistematizar algumas reflexões sobre a emergência do lazer em nosso contexto.

Analisando o verbete loisir, como expresso na Grande Larousse Enciclopédique (1962, p.823-824), verifiquei que o lazer é enunciado como tempo disponível após o trabalho e as ocupações habituais; ou como as distrações e livres ocupações realizadas depois do trabalho habitual. Tal interpretação evoca, de imediato, a relação do lazer com o trabalho, salientando dois aspectos: o tempo, e as ocupações/atividades com caráter de distração.

De uma maneira geral, embora tenhamos o costume de empregar no vocabulário corrente, hoje, a palavra lazer apenas no singular, Rodrigues (2002, p.150) explica que os franceses utilizam este termo também no plural, e os dois vocábulos assumem sentidos diferenciados. Dessa forma, le loisir “[...] refere-se a um tempo, ao tempo de ócio”, e les loisirs dizem respeito “[...] às atividades praticadas no tempo liberado do trabalho.”

A interpretação da autora acima coincide com as informações contidas na Grande Larousse Enciclopédique (1962). Mesmo que a obra francesa não pontue as diferenças entre o lazer no singular e no plural, explicita os sentidos do verbete como tempo disponível após o trabalho e as ocupações, e também como distrações e livres ocupações desenvolvidas depois de cumpridos os afazeres profissionais, entre outras tarefas cotidianas.

Porém, em nossa sociedade, a associação do lazer com o tempo de “não trabalho”, e com determinadas atividades, constitui-se a partir de que contexto histórico, e em que circunstâncias?

Retomando a Grande Larousse Enciclopédique (1962), o texto frisa que, embora para a sociologia o lazer seja uma ocorrência das modernas sociedades industriais, para a etnologia “o problema do lazer” sempre existiu.17 A obra salienta que, para os etnólogos, nas chamadas sociedades primitivas a vida é dividida em três partes: satisfação das necessidades elementares, como alimentação e repouso; ocupações ligadas à subsistência, sobretudo a agricultura; e atividades lúdicas, como por exemplo, os jogos, as festividades e as danças.

Tomando como referência o período que antecede a revolução industrial, o texto sublinha que, como em Roma havia muitos feriados por ano (de 100 a 120), diversos jogos eram proporcionados para a “plebe desocupada”, que se dedicava às festas religiosas e às distrações profanas. As corporações limitavam as obrigações de natureza profissional, reservando uma parte do tempo para as festividades e divertimentos. A revolução industrial suprimiu corporações, festas religiosas e costumes, gerando, conseqüentemente, o desaparecimento quase total do lazer das classes populares. A máquina, o desejo forçado de produzir e a concorrência impuseram, em grande parte do século XIX, ritmos de trabalho que extinguiram o lazer e nem mesmo possibilitavam uma reposição psicológica suficiente (GRANDE LAROUSSE ENCICLOPÉDIQUE, 1962).

Do meu ponto de vista a interpretação enunciada na Enciclopédia francesa necessita ser revista. Considerando o período que antecede a modernidade, será que ao invés de empregarmos a palavra lazer, os termos divertimento, ou mesmo atividades lúdicas, não seriam expressões mais apropriadas para o contexto em questão?

17

A etnologia é um ramo da antropologia que estuda a cultura das sociedades tradicionais. Relaciona-se, portanto, com a antropologia cultural, que se dedica à discussão sobre as características culturais do homem, como costumes, crenças, comportamentos e organização social.

As manifestações culturais correntemente consideradas “lúdicas” – tais como festas, jogos, brincadeiras, danças, dramatizações – são construídas socialmente pela humanidade, constituem patrimônio cultural e refletem os valores, regras, tradições e costumes de um determinado grupo. Por essa razão, constituem um determinado tipo de manifestação cultural sempre presente em nossa sociedade.

Obviamente, poderíamos visualizar as “atividades lúdicas” das chamadas sociedades tradicionais como o “lazer” desses grupos. Todavia, esta interpretação precisa ser repensada, pois, apesar de estarem inter-relacionados, lazer e lúdico não são sinônimos.

O lazer é uma dimensão da cultura constituída conforme as peculiaridades do contexto (WERNECK, 2003). Da forma como o conhecemos hoje, o lazer é desenvolvido por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço específico, estabelecendo relações dialéticas com o trabalho produtivo, as obrigações e as necessidades. O lúdico, por sua vez, é uma forma de linguagem que tem o brincar como referência e pode ser traduzido como expressão humana de significados da/na cultura. Além disso, pode se manifestar de várias maneiras e ocorrer em todos os momentos da vida. Esta possibilidade torna o lúdico mais abrangente do que o lazer.18

É necessário enfatizar que o lazer não se reduz ao “não trabalho”, tampouco pode ser confundido com o divertimento, que, como visto, é imemorável. Tratar as manifestações culturais das chamadas sociedades “primitivas” ou “tradicionais” como se fossem o lazer desses grupos encerra pontos obscuros, pois a dinâmica social destas segue, geralmente, uma lógica distinta daquela verificada nos centros urbanos e industrializados.

Por um lado, considero necessário repensar a tese de que o lazer sempre existiu, pois, os possíveis “antecedentes” que constituem as suas raízes não podem ser comparados ao

18

Para aprofundar a discussão sobre o lúdico, Huizinga (1983) representa uma referência básica e importante, é passível de críticas devido à visão idealizada e descontextualizada proposta pelo autor. Assim, a leitura da obra

Homo ludens, de Johan Huizinga, pode ser complementada com as análises efetuadas por Umberto Eco (1989)

entendimento que prevalece nos dias de hoje. Mas, por outro lado, é inegável que a vivência das manifestações e tradições culturais da humanidade que vêm sendo perpetuadas ao longo dos tempos, assim como o ócio grego e até mesmo o famoso “pão e circo” romano da antiguidade, só para citar alguns exemplos, são essenciais para a compreensão dos significados atribuídos ao lazer em nosso meio, bem como para o seu processo de constituição histórica.

Colocar objeções à idéia de que o lazer sempre existiu não significa admitir o argumento de que ele surge na modernidade, que se trata de um fenômeno exclusivo das sociedades urbano-industriais, cuja ocorrência histórica pode ser situada na Europa do século XIX – como afirmam alguns autores. Penso ser arriscado definir, com exatidão, o momento histórico em que o lazer se constitui na sociedade ocidental. A busca pela compreensão do passado é sempre uma tarefa restrita, mutilada e hermética. Ao invés de aderir a uma ou outra corrente, seria fundamental apreender o processo pelo qual o lazer vem se constituindo social e historicamente.

Da mesma maneira que os “antecedentes” do lazer não podem ser ignorados no seu processo de constituição, é também notório que a era moderna foi fundamental para que ele se estabelecesse como um fenômeno autônomo, normativo e organizado, como um campo dotado de peculiaridades e características claramente definidas, conforme requerido pela organização industrial da produção.

Embora o termo lezer pudesse ser associado com a preguiça, com a falta de vontade de trabalhar, o vocábulo lazer foi assimilado na modernidade como um tempo/espaço propício para o desenvolvimento de determinadas atividades – “lúdicas, lícitas, saudáveis e produtivas” – praticadas no tempo livre e direcionadas para o descanso ou para a diversão. Afinal, as transformações ocorridas na modernidade foram decisivas para que o lazer, entre

outras dimensões da vida, fosse revestido de características próprias, configurando-se da forma como o conhecemos hoje (Werneck, 2000).

Apesar da categoria trabalho constituir um aspecto muito importante para o entendimento do lazer, este último não pode ser reduzido às relações estabelecidas com o primeiro. Esta é a postura de Dumazedier (1979), para quem o lazer não existe nas sociedades pré-industriais, pois, naquela época, o trabalho produtivo se inscrevia nos ciclos naturais dos dias e das estações do ano. O trabalho produtivo não era desempenhado por todos e assumia um ritmo natural, marcado por pausas, cantos, jogos e cerimônias. De acordo com a visão deste sociólogo, em geral não havia um corte nítido entre trabalho e repouso.

Evidentemente este repouso não apresenta as características do lazer moderno, mas isso não é suficiente para justificar os argumentos elaborados por Dumazedier (1979) sobre a ocorrência histórica desse fenômeno. Este autor define o lazer em relação ao tempo liberado do trabalho nas modernas sociedades industriais, um conceito que não se aplica ao modo de vida de outros períodos históricos. O que pode ser dito é que o lazer assume outras dimensões culturais, sociais, políticas e econômicas na sociedade industrial e, sobretudo, hoje na chamada sociedade pós-industrial.

Ora, ao voltar nossas reflexões para diferentes épocas, é fundamental tomar o