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Contribuições da perspectiva de gênero no contexto da violência

3.3 Violência familiar contra a mulher

3.3.1 Contribuições da perspectiva de gênero no contexto da violência

Na década de 80, o termo gênero passou a ser utilizado por estudiosas feministas que tinham por objetivo trazer à luz questões relativas à mulher enquanto ser social e histórico, tendo-a como sujeito presente na sociedade. De acordo com Scott (1995), o conceito de gênero é compreendido como constituinte das relações sociais com base nas diferenças entre os sexos, identificadas pelas relações de poder socialmente aceitas como naturais e inquestionáveis. O gênero está ligado à construção social do masculino e do feminino, e, por isso, é utilizado para compreender a construção histórica das relações entre homem e mulher. Nesse sentido, o conceito de gênero é diferente do conceito de sexo, pois este último representa uma identidade biológica, enquanto o gênero está ligado à construção social do masculino e do feminino, e, por isso, é utilizado para compreender a construção histórica das relações entre homem e mulher (Minayo, 2006; Moura, Netto, & Souza, 2012; Prates & Alvarenga, 2008).

A violência de gênero vem ao âmbito público/social graças aos movimentos feministas, que visavam desconstruir as concepções acerca da inferioridade feminina e do sistema patriarcal, ao denunciar as formas de violência contra a mulher, na tentativa de modificar as leis e criar novas práticas de relação interpessoal. Historicamente, no sistema patriarcal, cujos valores ainda perduram nos dias atuais, prevalece o domínio do homem nas relações sociais, comunitárias e familiares sobre o modo de construção da realidade social, ao apresentar modelos de papéis distintos entre homens e mulheres (Cantera & Gamero, 2007; Ferraz, et. al., 2009).

As relações de gênero englobam um processo social e interacional, pelo qual são construídos esses papéis conforme necessidade e interesse de uma sociedade, sendo que cada gênero é definido pelo envolvimento de valores, crenças, sentimentos e comportamentos (Cantera & Gamero, 2007; Ferraz, et. al., 2009). Nesse sentido, de acordo com Saffioti (2001), a violência de gênero mantém a desigualdade hierárquica entre o masculino e o feminino para garantir a obediência de um sexo a outro.

Os estereótipos de gênero, sustentados pelo sistema patriarcal, são compreendidos como generalizações com base nas impressões a respeito dos comportamentos e características de homens e mulheres, limitando suas potencialidades de acordo com o que se compreende por adequado para cada gênero (Caro, 2008). Conforme trazido no Jornal do Senado em uma publicação especial sobre a Lei Maria da Penha, o machismo ainda está muito presente em nossa sociedade. Pode-se citar o fato de o homem ser criado para não ter medo, não demonstrar seus sentimentos e não “levar desaforo para casa”. Em termos de diferença de papéis de gênero, alguns exemplos cotidianos podem ser observados: ao findar a refeição os homens estão “liberados” para assistir TV, enquanto que é das mulheres a responsabilidade de lavar a louça. Os jovens meninos podem ficar até mais tarde na rua, enquanto as meninas têm horário estabelecido para voltar para casa; ou ainda o maltrato da mulher diante dos filhos, os quais poderão – ou não – reproduzir tais comportamentos no futuro (Brasil, 2013).

Para esclarecer e sustentar melhor a perspectiva relacionada aos estereótipos de gênero, Bravo e Moreno (2007) se ancoram nos quatro conteúdos de identidade que formam parte do imaginário coletivo em torno dos papéis dos gêneros, propostos por Ortega (1998). O primeiro se refere ao corpo que configura as diferenças entre homens e mulheres, sendo que o masculino se refere à força e ao vigor e o feminino, refere- se à delicadeza e fragilidade. O segundo refere-se às capacidades intelectuais, em geral associadas ao homem as habilidades técnicas, mecânicas e manuais, enquanto à mulher as habilidades de organização e cooperação. Em terceiro lugar é apontada a dimensão afetiva e emocional, sendo relacionada à mulher maior efetividade e emoção, enquanto o homem, por sua vez, sustenta um maior controle de suas emoções. Por fim, o quarto aspecto mencionado diz respeito às relações e interações sociais com destaque para o gênero feminino no desenvolvimento das habilidades comunicativas e competência verbal, enquanto ao masculino se associa maior introspecção e racionalidade.

Quanto às características do autor da violência, o estudo de Lorente Acosta (2005) revela que ao perguntar a opinião das pessoas sobre o “agressor”, ele é definido como simpático, trabalhador, bom pai, bom vizinho, apenas de maneira ocasional há comentários sobre gritos e brigas, mas que ainda assim são consideradas “normais dentro do casamento”. Dentro dessa perspectiva, a violência perpetrada pelo homem é vista como forma de provar ou manter sua masculinidade e quando sua soberania se sente ameaçada, a violência é exercida para mostrar que ele tem poder e que é capaz de manter a ordem. Assim, atribui-se ao homem a força, a dominação, o poder, a autoridade hierárquica, e à mulher, a fragilidade, a dependência, a obediência e a submissão. Assim, o homem detém o poder sobre a mulher, por meio da dominação e opressão, muitas vezes fazendo uso da força física (Cantera & Gamero, 2007; Gomes et. al., 2012; Lisboa & Pinheiro, 2005).

De certa maneira, uma parcela da sociedade espera que o homem seja o principal provedor da família, sendo obrigado a manter uma postura de forte e corajoso. Quanto à mulher, o pleno cuidado dos filhos e da casa são as principais características esperadas. Assim, tanto na vida social quanto na vida conjugal, o homem é visto como o indivíduo provedor e violento, enquanto a mulher, cuidadora e pacífica. Nesse contexto, a violência contra a mulher vista sob a perspectiva de gênero é compreendida como um conjunto de regras aceitas e legitimadas socialmente em que há um sujeito com “direito” de exercer a violência e outro que “merece” recebê-la (Cantera, 2004a; Falcke, Oliveira, Rosa & Betancur, 2009).

Nessa construção social, foi atribuído o poder a homens e mulheres em diferentes níveis, sendo que o homem ocupou uma posição de destaque, enquanto à mulher, atribuiu-se uma posição desvalorizada e inferior, constituindo a desigualdade de gênero. Porém, com as lutas sociais, principalmente dos movimentos feministas, a violência contra a mulher e os estereótipos de gênero tem sido “desnaturalizados” e de igual modo publicizados e politizados pela sociedade (Cantera, 2004a; Carneiro & Fraga, 2012; Moura, et. al., 2012). Assim, na presente pesquisa, as produções na perspectiva de gênero contribuem para ampliar o conhecimento e/ou reflexão da desigualdade dos papéis dos gêneros presentes nas relações afetivas e suas consequências na dinâmica relacional das redes pessoais significativas das mulheres em situação de violência familiar e que estiveram em casa-abrigo, objeto de nossa investigação.

3.4 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM PROBLEMA DE