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Contribuições dos projetos de leitura em contexto extraescolar para as atividades de letramento literário no âmbito da escola

3. Leituras libertadoras e experiências produtivas de mediação de leitura literária

3.3 Contribuições dos projetos de leitura em contexto extraescolar para as atividades de letramento literário no âmbito da escola

No conhecido artigo “A leitura no Brasil: sua história e suas instituições”, Zilberman (2013) apresenta dois exemplos de leitor, retirados de obras da literatura brasileira, a fim de discutir o processo de apropriação da leitura e sua relevância para o sujeito inserido em uma sociedade marcadamente capitalista, na qual o acesso a bens culturais está inevitavelmente associado ao acesso a bens econômicos. No primeiro exemplo, retirado do conto “Rincão”, de Roque Callage, escritor gaúcho que publicou seus textos no início do século XX, somente após aprendizagem da leitura, no quartel, o protagonista consegue se reconhecer como cidadão. O segundo exemplo, extraído da obra “Agonias da noite”, de Jorge Amado, traz a leitura como meio de mobilizar o sujeito em relação aos problemas nacionais e torná-lo apto a formar “companheiros para a luta social” (ZILBERMAN, 2013).

Em tais exemplificações, é possível verificar que

a leitura não constitui tão-somente uma ideia, com a força de um ideal. Ela contém também uma configuração mais concreta, assumindo contornos de imagem, formada por modos de representação característicos, expressões próprias e atitudes peculiares. A ela pertencem gestos, como o de segurar o livro, sentar e escrever, inclinar-se, colocar os olhos. Faz parte igualmente dessa representação a alusão a resultados práticos, mensuráveis em comportamentos progressistas (ZILBERMAN, 2013, s/p).

que resulta da concepção que a sociedade formula para as classes e as pessoas que a compõem” (ZILBERMAN, 2013), é reveladora das práticas sociais que giram em torno dela, evidenciando as políticas governamentais que são propostas para o fomento da leitura em âmbito escolar, em especial pelo caráter de negócio – com lucros previstos – que acabam por tomar. Essa perspectiva, que nega o papel fruitivo da leitura literária, não é a defendida pelas práticas extraescolares de letramento literário, que focalizam a fruição da arte literária, em especial por seu potencial de lazer.

Quando penso em fruição e lazer decorrentes da leitura literária, não tomo a Literatura como um mero entretenimento, ainda que não entenda a literatura de entretenimento como um “problema” a ser resolvido. Se tantas pessoas não têm acesso a nenhuma leitura literária, o acesso a obras de entretenimento, por si só, já seria um grande avanço na democratização da leitura. Contudo, entendo a discussão aventada por Britto (2008), que reflete sobre a lógica do entretimento na modernidade, sempre atrelada ao consumo e à destruição do prazer imediato, o que finda por promover uma nova necessidade de consumo. Acredito que a Literatura subverte essa lógica, pois a formação do leitor pode torná-lo mais exigente em relação às obras que “consome”, permitindo-lhe revisitar obras lidas com um olhar novo ou mudar seu interesse de leitura do mais comercial para o mais artístico. Ocorre que não defendo isso como uma obrigatoriedade a ser cumprida pelo leitor, mas como o percurso previsto de sua formação.

O contato com a leitura literária, se bem mediado, promove liberdade de escolha e isso implica aceitar todas as leituras como legítimas e dignas de apreciação: seja na leitura de um best seller de autoajuda ou na de uma obra canônica da literatura, o leitor – esse sujeito sempre em formação – acessará importantes instrumentos para a composição de sua biblioteca afetiva. Nesse sentido, a mediação de literatura em âmbito escolar precisa aprender a democratizar as escolhas de obras literárias. Já há nessas escolhas um recorte de caráter comercial, pois o acervo nas bibliotecas e outros espaços de acesso a obras literárias é determinado pela circulação dos livros, seja pelo valor de compra, pela publicação, tradução ou divulgação das editoras. Além, desse, outro recorte, de “gosto pessoal”, é feito a partir de indicações de leitura dos pais e professores. Que espaço contemplará a autonomia de escolha dos sujeitos leitores, se a cada vez que

um aluno escolher uma obra para leitura, o mediador interferir, determinando o que é lícito e o que não é? É preciso que o sujeito leitor tenha espaço para escolher seus prazeres, para discuti-los com outros leitores; é preciso dar ao sujeito leitor o direito de opinar sobre suas escolhas e, principalmente, é preciso saber ouvir e respeitar os critérios de sua escolha, que devem ser considerados de acordo com seu amadurecimento.

Infelizmente, a escola brasileira ainda não atende essas exigências, mas os espaços de mediação extraescolares já têm avançado bastante nessa direção. O cânone aparece ao lado do best seller ou do livro paradidático. Acessível, como os outros dois tipos de obras, a literatura de referência passa pelo crivo do leitor sem a imagem de “literatura para eleitos”, o que promove uma grande transformação no poder simbólico que os bens culturais exercem sobre as classes trabalhadoras. Isso é, sem dúvida, uma mudança muito benéfica para a literatura. Saber escolher pressupõe a existência de opções: ao apresentarmos uma multiplicidade de leituras disponível para os sujeitos leitores, permitimos o questionamento dos estereótipos das obras mais comerciais, mas também criamos um espaço de discussão do próprio cânone, o que me parece um ato muito mais libertador do que a garantia de leitura apenas das obras autorizadas pela crítica literária.

Castrillón (2013), em artigo intitulado “Cultura escrita e pensamento crítico”, apresenta algumas considerações esclarecedoras sobre a realidade da leitura no contexto escolar, evidenciando a situação adversa enfrentada pelos professores. De acordo com essa autora,

as escolas não possuem espaços para uma reflexão que lhes permitam tomar distância frente a suas práticas pedagógicas, observá-las “de fora”, de tal maneira que seja possível analisá-las, posicioná-las no contexto histórico e local que as determina, e pensar nelas como processos que têm, ou deveriam ter, consequências em longo prazo (CASTRILLÓN, 2013, s/p).

Para transformar essa realidade, Castrillón solicita “um olhar externo que propicie o distanciamento ou estranhamento” aos mediadores da leitura em contexto escolar. Segundo a autora, ao se apropriar das teorias sobre a leitura de forma mais profunda, os professores podem refletir sobre suas práticas de letramento, o que os levará a “entender melhor os objetivos de seu trabalho e, para o caso da formação de leitores, verificar se suas práticas produzem transformações de sentido que a cultura escrita pode ter para os alunos” (CASTRILLÓN, 2013, s/p).

Essa “desautomatização” das práticas de letramento literário realizadas na escola pode ser propiciada com muita facilidade pela observação dos projetos descritos nesse capítulo. Observe-se que são práticas simples, muitas vezes intuitivas, como as rodas de leitura e contação de história, quase sempre fortalecidas pelo vínculo afetivo que os mediadores desenvolvem com o público alvo, mas que evidenciam o comprometimento dos participantes com um projeto de transformação do indivíduo pelo diálogo estabelecido entre o leitor e a obra literária. Não se trata de ensinar a ler, mas de partilhar o prazer da leitura de um livro, ou as angústias dela decorrentes. Como esclarece Castrillón, isso não significa que o professor deva se tornar um exemplo a ser seguido, como o detentor do saber, afinal,

um leitor não segue modelos, não copia. A leitura parte da dúvida, da pergunta, da ignorância. A atitude do leitor não é de “quem tudo sabe”, e, portanto, se encontra satisfeito e complacente com o que já sabe e só lê para retificar o que já conhece. A atitude do leitor é contrária a essa segurança. É por isso que nos parece que o professor ao invés de se apresentar como exemplo, que, de alguma maneira é impositiva, deve oferecer testemunho de sua prática leitora (CASTRILLÓN, 2013, s/p).

A ideia de modelo, portanto, não cabe no letramento literário, mas a as práticas de leitura do professor influenciam positivamente tal processo, afinal, só se pode dividir aquilo que se tem como constructo. A literatura, como afirma Barthes (2008, p. 16-18), é o lugar da diversidade de linguagens e dos dizeres de si mesmo e do mundo em que se vive; diferentemente de outros tipos de texto, o literário busca a multiplicidade de sentido que há na vida, ainda que para isso precise se devorar. Exatamente por esse comportamento autofágico, o texto literário se ressignifica – e ressignifica a existência do sujeito leitor –, inventando mundos impossíveis para torná-los possíveis assim, pela linguagem e pela imaginação. E pelas diversas relações textuais, intertextuais, interdiscursivas etc., encontradas nas obras literárias, o leitor de literatura se abre para as diversas vozes que habitam o texto e o mundo, ampliando – pela consciência dessa polifonia19 – a competência de compreensão e interpretação da sua mundivivência e conquistando a meta de todo trabalho de letramento literário, a autonomia do sujeito leitor.

19 Faço uso do termo

“polifonia” na concepção de Bakhtin, divulgada na obra Problemas da Poética

de Dostoievsky (2008). Nela, o autor afirma que o discurso romanesco não é apenas formado por

várias vozes (plurivocidade), mas por uma “polifonia”, pois as vozes dos personagens apresentam uma excepcional independência na estrutura da obra.

Há, nas ações de letramento literário em contexto extraescolar, quatro elementos que efetivamente as distanciam dos procedimentos escolares: o primeiro é a espontaneidade da leitura literária, que não tem compromisso funcional, utilitário e imediatamente prático; o segundo é a apreciação, visto que, dada a espontaneidade original, fundadora da arte literária, não se espera de imediato uma análise, uma interpretação, uma explicação do leitor sobre a obra lida, espera-se uma apreciação; o terceiro é a não-compulsoriedade, o sujeito decide se quer ler, quando e quanto quer ler; a quarta é a priorização da qualidade em vez da quantidade, pois se entende que a leitura literária necessita de apreciação, interpretação como diálogo de imaginação, participação como proposta de criação, compreensão e recifração dos textos lidos para uma interação mais imediata, o que demandaria mais tempo com uma obra do que o que o programa escolar, geralmente, permite. Assim, e como se pode observar nos projetos e planos descritos nesse capítulo, a autonomia do leitor é um princípio que rege as iniciativas de letramento literário em contexto extraescolar, e esse é um aprendizado que a escola precisa efetivar com urgência, pois o respeito ao percurso de leitura é essencial para a formação do leitor.

É necessário respeitar a singularidade de cada sujeito para poder propor as “transgressões” permitidas e potencializadas pela leitura literária. As políticas públicas para o desenvolvimento da leitura apontam para um caminho menos conservador, como se evidencia no PROLER e no PNLL, mas ainda há muito o que transformar nas práticas de letramento literário desenvolvidas na escola, em especial para os adolescentes no Ensino Médio, quando a Literatura não se apresenta como arte, mas sim como um “conteúdo programático” e, pior, como um critério de seleção para o vestibular. Nesse sentido, as Oficinas de Literatura aplicadas no Instituto Federal de Goiás, na cidade de Goiânia, fazem parte de uma proposta de letramento literário que, em diálogo com as práticas extraescolares de leitura, mobilize os saberes construídos para fomentar experiências positivas de aproximação do leitor e da literatura, de modo a garantir, mais do que o acesso ao livro, a formação de um leitor autônomo que se reconheça como sujeito do seu próprio letramento nos últimos anos do Ensino Médio. A intenção das práticas desenvolvidas nessas oficinas de literatura é que a leitura literária permaneça na vida dos sujeitos, como desejo e como prática, após os anos escolares, de forma

que esses sujeitos se tornem multiplicadores do desejo e das práticas de leitura em seu grupo familiar, de amigos etc.

4. Estratégias extraescolares de leitura literária aplicadas em contexto