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1. CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A

1.2. Contribuições vigotskianas para pensar uma teoria educacional

Vigotski (1995) afirma que as leis que regulam o desenvolvimento do pensamento e da concepção de mundo do homem são históricas e culturais, têm caráter móvel e dinâmico. Por isso, parte-se do princípio que a criança deve ser estudada em seu meio social e cultural. Em consonância a esse princípio, a pesquisa foi realizada na escola, com a tentativa de compreender o processo de aprendizagem dentro das condições reais em que ela se apresenta. Uma das grandes contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a Educação diz respeito à valorização do trabalho intencional realizado na escola, como potencial para o desenvolvimento das crianças. Nesta perspectiva, uma escolha esclarecida, que permita ao professor refletir sobre a natureza do trabalho a ser realizado na escola, demanda o distanciamento e a ruptura com a concepção de um processo de desenvolvimento puramente natural e dependente exclusivamente da criança.

Como visto no tópico anterior, o ser humano se diferencia dos outros animais. Possui órgãos e funções específicas, funções psicológicas superiores, essencialmente humanas e seu desenvolvimento faz parte de um processo complexo que não é uma simples somatória de outras funções isoladas, ou seja, não se trata de mudança quantitativa entre eles, mas sim qualitativa, e sua compreensão exige um enfoque integral ou estrutural a partir do todo (VIGOTSKI, 1995). Esse enfoque integral e não fragmentado será vislumbrado durante toda a pesquisa e se constitui como o principal desafio.

Importante ressaltar que as funções psicológicas superiores, relacionadas à memória, à atenção, à vontade, à linguagem, ou seja, sua conduta de comportamento na relação com o mundo, surgem a partir de uma mediação do homem feita com a introdução de estímulos e meios artificiais e auxiliares para que ele possa ter controle sob sua própria conduta. Logo, a estrutura específica de comportamento do ser humano resulta, então, no processo de mediação entre o estímulo e a resposta por meio de signos, ao desenvolver novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura (VIGOTSKI, 2007).

[...] as funções psicológicas superiores não constituem exceção à regra geral aplicada aos processos elementares; elas também estão sujeitas à lei fundamental do desenvolvimento, que não conhece exceções, e surgem ao longo do curso geral do desenvolvimento psicológico da criança como resultado do mesmo processo dialético e não como algo que é introduzido de fora ou de dentro (VIGOTSKI, 2007, p. 41).

Tratar do desenvolvimento na Psicologia, a partir dessa concepção teórica, significa compreender que houve um estudo anterior aprofundado e um reconhecimento da relevância teórica produzida até então, que foi considerada por Vigotski para que ele pudesse propor sua superação ao afirmar que

Acreditamos que o desenvolvimento da criança é um processo dialético complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funções, metamorfose ou transformação qualitativa de uma forma em outra, embricamento de fatores internos e externos e processos adaptativos que superam os impedimentos que a criança encontra (VIGOTSKI, 2007, p. 80).

O conceito de desenvolvimento se configura como fundamental para esta pesquisa. Primordialmente porque Vigotski passa a defender que esse processo pode ser impulsionado e direcionado pela aprendizagem. Afirma que, “A aprendizagem só é boa quando está à frente do desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2009, p. 334). Dessa maneira, nega que a criança precisa primeiro se desenvolver para posteriormente poder aprender e acrescenta que, ao respeitar a periodicidade, há possibilidade de intervenção e transformação do processo de

desenvolvimento (VIGOSTKI, 2007). Nesse momento, o papel da escola assume outra posição e as disciplinas formais são apontadas, pois a aprendizagem

[...] motiva e desencadeia para a vida toda uma série de funções que se encontravam em fase de amadurecimento e na zona de desenvolvimento imediato. É nisto que consiste o papel principal da aprendizagem no desenvolvimento. É isto que distingue a educação da criança do adestramento dos animais. É isto que distingue a educação da criança, cujo objetivo é o desenvolvimento multilateral da educação especializada, das habilidades técnicas como escrever à máquina, andar de bicicleta, etc., que não revelam nenhuma influência substancial sobre o desenvolvimento. A disciplina formal de cada matéria escolar é o campo em que se realiza essa influência da aprendizagem sobre o desenvolvimento. O ensino seria totalmente desnecessário se pudesse utilizar apenas o que já está maduro no desenvolvimento, se ele mesmo não fosse fonte de desenvolvimento e surgimento do novo (VIGOTSKI, 2009, p. 334).

Oliveira e Teixeira (2009) nos ajudam a compreender o que Vigotski entende como periodicidade. Apesar de não ter tido tempo de elaborar um sistema completo, lançou suas bases. Vigotski considera a dinâmica do desenvolvimento infantil, bem como da passagem de uma idade a outra. Afirma que o surgimento de formações qualitativamente novas na personalidade do sujeito corresponde ao principal critério de demarcação das etapas. Enquanto as mudanças lentas e imperceptíveis ocorrem nos períodos considerados estáveis, as mudanças bruscas, marcantes e com rupturas ocorrem em períodos críticos que podem ou não se transformar em crises (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 2009).

Entender o processo de desenvolvimento cultural na Psicologia Histórico-Cultural e as funções psicológicas superiores (FPS) significa compreender o processo de internalização ou interiorização.

A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto quantitativo da psicologia animal para a psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo (VIGOTSKI, 2007, p. 58).

Esse conceito de internalização possibilitou interpretações equivocadas para os que fizeram uma leitura superficial e não cuidadosa, a ponto de concluir um determinismo cultural em obras de Vigotski. Para contrapor essa interpretação, Oliveira e Teixeira (1992) asseguram que o sócio-histórico para Vigotski é pensado como processo, em que o mundo cultural apresenta-se como o outro enquanto referência externa, que permite ao ser humano constituir- se como tal. Além disso, a dimensão histórica se multiplica em outros planos que se entrecruzam e interagem gerando uma configuração que é única e se transforma para cada indivíduo, pois depende de cada trajetória particular (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 1992).

Tendo como princípio este caráter dialético, Vigotski (1995) elabora sua primeira tese de que a invenção e o emprego de signos, os sinais artificiais, constituem um processo de significação, com qualidade de meios auxiliares para solução de alguma tarefa psicológica planejada do homem, como memorizar, comparar, informar, eleger e outras. Supõe, desde sua faceta psicológica, um momento de analogia do signo na atividade humana com as ferramentas no trabalho.

Durante a presente pesquisa, com o foco no processo de objetivação e subjetivação, será possível compreender a interação de funções psicológicas superiores, como a memória, o pensamento, a linguagem e a formação de conceitos científicos, bem como da percepção durante a aprendizagem. Nesse sentido, vale destacar que estamos fundamentados na concepção de que o processo de desenvolvimento cognitivo não é linear, há inversões de direção e transformações que variam dependendo da FPS, como destaca Vigotski (2007). Por exemplo, enquanto na infância, a memória é característica dos primeiros estágios de desenvolvimento cognitivo, ou seja, pensar significa lembrar, na adolescência as relações interfuncionais são invertidas e lembrar significa pensar (VIGOTSKI, 2007).

A filosofia nos auxilia a compreender melhor a importância do pensamento para compreender o homem, dado que essa atividade intelectual (pensar) é específica do homem, como aponta Kopnin (1978). Compreender a gênese e o modo de operar de um tipo de pensamento, o pensamento teórico, foram objetivos de pesquisa de Davydov. Esse autor afirma que no pensamento teórico operamos com o ideal, mediante conceitos científicos, por meio de abstrações, ao criar imagens subjetivas a partir da reflexão sobre o mundo objetivo e contraditório. Especificamente esse pensamento, um dos caminhos do movimento do pensamento, reflete o objeto no âmbito das relações internas e permite aplicação prática ilimitada, diferente do pensamento empírico. Um dos objetivos da escola é então desenvolver esse nível de pensamento.

Grande parte da teoria de Vigotski (2010) trata de explicar o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e científicos na infância e a importância do conceito científico na idade escolar, como revela o trecho abaixo.

[...] o desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar é, antes de tudo, uma questão prática de imensa importância – talvez até primordial – do ponto de vista das tarefas que a escola tem diante de si quando inicia a criança no sistema de conceitos científicos (VIGOTSKI, 2010, p. 241).

Um pouco adiante dessa mesma obra, Vigotski faz um alerta de que a criança não opera com conceitos científicos naturalmente e depende de generalizações, nos levando a supor que deve ser aprendido a partir de um processo intencional mediado.

[...] a aprendizagem é, na idade escolar, o momento decisivo e determinante de todo o destino do desenvolvimento intelectual da criança, inclusive do desenvolvimento dos seus conceitos; baseia-se igualmente na suposição de que os conceitos científicos de tipo superior não podem surgir na cabeça da criança senão a partir de tipo de generalização elementares e inferiores preexistentes, nunca podem inserir- se de fora na consciência da criança (VIGOTSKI, 2010, p. 262).

Apoiado em Vygotsky (1986), Radford (2007) destaca que a origem de todos os conceitos deve ser encontrada nas generalizações. Generalizar se constitui um ato cognitivo, que implica a formação de um conceito e a seleção de algumas características em detrimentos a outras. Baseado na generalização, se desenvolve o conceito de iconicidade, ou seja, um processo específico de objetivação, o qual, o estudante projeta uma identificação progressiva do semelhante e do diferente ao tornar possível, por meio de um movimento de ida e volta, o surgimento de uma forma conceitual, um procedimento generalizante (RADFORD, 2007).

A valorização da ação do estudante denota que sua posição enquanto mero receptor de um conhecimento pronto e transmitido pelo professor, aquele que exerce papel passivo no processo de ensino e aprendizagem, é questionada. Goes e Cruz (2006) consideram mais uma noção inovadora de Vigotski sobre o desenvolvimento de conceitos na infância que nos permite um olhar diferenciado para esse processo, não mais de maneira linear.

No tratamento da formação de conceitos, Vigotski compromete-se com uma abordagem processual, pois busca demonstrar que o conceito tem uma história, na vida do indivíduo e do grupo social; está interessado nas transformações das formas de conhecer; caracterizando a instabilidade em cada etapa de funcionamento conceitual; e até relativiza a sucessão de etapas, como ao dizer que no adolescente e no adulto ocorre o pensamento por complexos e que o alcance do pensamento elevado tem a ver com a lógica dialética, e não com a formal (GOES e CRUZ, 2006, p. 41).

Mais uma vez, com relação ao pensamento, Vigotski (1995) afirma que a linguagem é uma ferramenta do pensamento e um meio auxiliar da memória. Além disso, a fala tem um papel essencial na organização das funções psicológicas superiores (VIGOTSKI, 2007).

A memória e a capacidade de criar coisas novas são dois atributos fundamentais do nosso funcionamento cerebral e garantem a potencialidade do desenvolvimento e da transformação do sujeito (VIGOTSKI, 2009). Em ambos os atributos, a imaginação adquire um importante papel.

[...] Ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. A pessoa não

se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas pode aventurar-se para além deles, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica ou social alheia. Assim configurada, a imaginação é uma condição totalmente necessária para quase toda a atividade mental humana (VIGOTSKI, 2009, p. 25).

A imaginação e a criação são processos que se interpenetram. Enquanto a primeira é fundamental para o alcance de um nível elevado do pensamento, pois torna possível operar com imagens que não estão na realidade, a segunda não acontece sem um certo elemento de imaginação (GOES; CRUZ, 2006). Logo, a imaginação e a criação precisam ocupar lugar de destaque no processo de estudo dos estudantes na escola.

Os conceitos de pensamento, linguagem, desenvolvimento, funções psicológicas superiores, internalização, generalização, abstração, zona de desenvolvimento proximal e formação de conceitos de Vigotski formaram premissas básicas para o desenvolvimento de teorias educacionais contemporâneas. Especialmente com sua terceira tese, em que afirma que a aplicação dos meios auxiliares na atividade mediadora reconstrói toda a operação psíquica e amplia o sistema de atividade das funções psíquicas (VIGOTSKI, 1995).

Especificamente, os conceitos de internalização e de zona de desenvolvimento próximo são considerados interessantes e com grande potencial de contribuição para formular um conceito de aprendizagem de uma teoria histórico-cultural educativa na concepção de Radford (2018b). Entretanto, para esse pesquisador, devemos compreender melhor as implicações educativas do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, com o cuidado de não coincidir uma teoria do funcionamento psicológico da mente humana com uma teoria educativa (RADFORD, 2018b).5

Em síntese, Oliveira e Teixeira (2009) apontam quatro aspectos essenciais da teoria vigotskiana:

1) a análise da essência do processo de desenvolvimento e não seus traços externos; 2) a análise das mudanças nas atividades da criança porque sua personalidade muda como um todo integral em sua estrutura interna no percurso de desenvolvimento; 3) o realce da ligação entre cada um dos períodos com um tipo de atividade que o caracteriza e 4) a ideia de que as atividades integrais da criança, determinam também sua consciência e suas relações com o meio, sua vida interna e externa (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 2009, p. 343-344).

Esse último aspecto nos permite destacar o conceito de “atividade”, introduzido por Vigotski. Alexis N. Leontiev (1903-1979), psicólogo russo que fez parte de seu grupo de

5 Para compreender melhor as considerações feitas sobre esses conceitos vigotskianos, ver Radford (2018a),

trabalho, ao defender a natureza sócio-histórica do psiquismo humano e se preocupar com as relações entre desenvolvimento desse psiquismo e da cultura, desenvolveu a “teoria da atividade” e vinculou o desenvolvimento psíquico da criança a um tipo de atividade principal. Trata-se de uma teoria importante que influenciou o desenvolvimento de teorias contemporâneas no âmbito educacional.

1.3. Implicações do conceito de Atividade para a Educação: Aproximações entre a