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O CONTROLE DA PROSTITUIÇÃO: UMA QUESTÃO DE POLÍTICA PÚBLICA?

A construção do significado da prostituição como um “mal necessário” implicou simultaneamente a segregação da atividade a espaços delimitados, nos quais seu exercício era tolerado e incentivado, e na definição de mecanismos de controle que garantissem a manutenção desse formato de organização e funcionamento. Este capítulo trata de historicizar a constituição da prostituição como assunto de polícia e de controle sanitário; vertente que prevalece em ampla medida até os dias atuais - em se tratando da intervenção pública nesse campo.

3.1–A PROSTITUIÇÃO COMO UMA QUESTÃO DE POLÍTICA PÚBLICA

A prostituição, como a sexualidade e a honra sexual das mulheres, foi inserida no centro dos debates e tornou-se objeto de intervenção pública e da ação estatal, ou seja, da política pública, no contexto das transformações urbano- industriais e da crescente presença feminina nos diferentes espaços públicos.27 A necessidade e o caráter da intervenção do Estado nessa questão em momento algum logrou alcançar um consenso entre os distintos setores da sociedade brasileira. Enquanto os partidários do “regulamentarismo” defendiam a participação ativa do Estado para controlar aquilo que consideravam ser um “mal

necessário”, os defensores do “abolicionismo” criticavam contundentemente as

propostas “regulamentaristas”, por entender que uma intervenção estatal nessa esfera se caracterizaria como uma interferência na liberdade individual, algo inconcebível na perspectiva deles.

Além dessas duas perspectivas, uma terceira vertente, denominada “proibicionista” por alguns autores, se colocou como alternativa para o enfrentamento da prostituição e chegou a pautar a intervenção pública de vários

27 O fato da política pública brasileira relacionada à prostituição ter se caracterizado ao longo do

tempo, por iniciativas fragmentárias e até mesmo contraditórias, suscita dúvidas acerca da propriedade de se utilizar o termo política pública para nomear as ações implementadas. Afora o fato de a fragmentação ser uma característica comum a outras áreas em que o Estado brasileiro intervém, neste trabalho optou-se pela utilização da expressão também por se entender, como

países, quando esta passou a ocorrer de maneira mais orgânica. Esta perspectiva propugnava a criminalização da prostituição e sua tipificação como delito penal. Suplantada em grande medida nas discussões pela alternativa “regulamentarista”, sobreviveu ao longo do tempo, particularmente em países do oriente dirigidos por governos religiosos. No caso do Brasil, embora não tenha se tornado oficialmente a política estatal para o enfrentamento da prostituição, a abordagem “regulamentarista” foi a que mais influenciou no delineamento das medidas de controle da atividade. Indicativo desse fato é a proeminência alcançada pelas autoridades sanitárias e policiais no trato da questão. (Juliano, 2002.; Rago, 1991; Roberts, 1998; Trapasso, s.d.).

No Brasil, é a prevalência de uma legislação influenciada pelo “abolicionismo”, e a adoção pelo Estado de práticas influenciadas pelo “regulamentarismo”, que explicam o fato de, desde o início, a polícia e as autoridades sanitárias emergirem como os primeiros e principais atores institucionais a atuarem na regulação e manutenção do controle sob a prostituição. No que se refere ao campo da saúde, sob a justificativa de proteger a população da disseminação de doenças, particularmente aquelas transmitidas por via sexual, os órgãos governamentais brasileiros desenvolveram, particularmente a partir do século XIX, uma série de campanhas e ações de controle, dirigidos às mulheres que atuavam na prostituição. Até meados do século XX, o discurso higienista se ancorou no temor que as mulheres prostitutas, vistas como fonte de contágio, disseminassem a sífilis e a gonorréia entre a população dita “de bem”, para justificar suas propostas. (Engel, 1986; Freire Costa, 1999; Rago, 1987; 1991; Soares, 1986).

A polícia foi, contudo, o principal órgão executor das ações públicas de intervenção no âmbito da prostituição. Seu discurso caracterizou-se principalmente pela ênfase na repressão. Se ao longo de sua intervenção o que se viu foi a intervenção policial aumentar em rigidez, na mesma medida pode-se constatar sua ineficiência. Ao contrário do que as reações policiais poderiam indicar, a prostituição, ao longo do tempo, cresceu e se diversificou Augusto (1989), que o que define uma política como pública é o fato dela ocorrer a partir da

continuamente, assim como os espaços dedicados às práticas sexuais consideradas ilícitas.

Em meados do século XIX, os debates acerca da questão envolveram basicamente alguns médicos, juristas e chefes de polícia. À medida que a atividade ganhou maior visibilidade nos espaços urbanos freqüentados pela nascente burguesia urbano-industrial, as discussões passaram a envolver outros segmentos da sociedade. O dissenso acerca da gênese do problema e das medidas a serem tomadas foi uma das características mais marcantes nesse processo, como se verá a seguir, contribuindo enormemente para que medidas coercitivas à prostituição, bem como a própria atividade, fossem mantidas, durante longo tempo, fora do conjunto de leis nacionais. No caso da atividade propriamente dita, da prostituição, vale destacar que, não obstante as ações repressivas capitaneadas pelo aparato policial e pelas autoridades sanitárias, em momento algum foi incorporada na legislação brasileira, penal ou civil. (Caulfield, 2000; Freire Costa, 1999; Rago, 1987; 1991; Soares, 1986).

As representações hegemônicas sobre a prostituição, assim como a intervenção pública, não sofrem alterações significativas, nos primeiros cinqüenta anos do século XX, prevalecendo em grande medida, a perspectiva predominante nas últimas décadas do século anterior. As medidas adotadas no período continuaram a oscilar entre iniciativas influenciadas ora pela “regulamentarismo” ora pelo “abolicionismo”.

As oscilações que ocorreram na abordagem da questão nesse período se relacionaram a uma série de fatores que marcaram a conjuntura mundial após a Primeira Guerra. Dentre esses fatores se incluíam, de acordo com Roberts (1998), um certo arrefecimento das mobilizações patrocinadas pelos mentores das “cruzadas moralistas”, a corrosão sofrida pela ideologia moral da burguesia em função da Guerra, o relaxamento moral e a popularização das “experimentações sexuais” entre os jovens abastados dos países ocidentais mais desenvolvidos na década de 1920. Esse ambiente mais liberal não afetou porém os estereótipos construídos em relação à prostituição e à prostituta, já amplamente difundidos e introjetados pela população, assim como o “estigma da

anteriormente. Em verdade, segundo a autora, a partir do “freudianismo [que]

legitimou a existência da sexualidade (embora perturbada) para a metade feminina da população”, toda uma argumentação científica que “racionalizava o “desvio da prostituta” foi disponibilizado à sociedade.·(Roberts, 1998, p. 322).

A situação de liberalização não resistia, em verdade, a um olhar mais atento, mesmo nos países cujos governos podiam ser caracterizados como “mais democráticos”, com a divisão das mulheres em boas e más tendo permanecido intacta, assim como as péssimas condições a que eram submetidas aquelas que trabalhavam na prostituição. França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, implementaram uma série de medidas de caráter “regulamentarista”, ao longo desse período. (Roberts, 1998).

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, as medidas repressivas direcionadas ao comércio do sexo não arrefeceram, diferentemente do ocorrido em alguns países da Europa, onde o relaxamento moral ocorrido após a Primeira Guerra reduzira as cruzadas morais em torno da prostituição. O pano de fundo para essa situação era a grande preocupação e mobilização dos setores mais tradicionais da sociedade diante das inovações trazidas pela “modernidade”, particularmente no que se referia à honra sexual e ao reposicionamento das mulheres na sociedade. Defensores de uma intervenção mais dura na prostituição, esses setores não só apoiaram aquelas iniciativas como se mantiveram ativos na defesa do controle da prostituição e de propostas que recolocassem as mulheres em sua posição anterior, ou seja, restritas ao ambiente doméstico e longe da competição no mercado de trabalho.

Setores mais conservadores da sociedade brasileira tiveram porém a resistência organizada de alguns segmentos da classe média, denominados por Caulfield (2000) de “reformistas”, que se colocavam ativamente contra suas propostas, propugnando uma intervenção em outros moldes, na vida urbana e na prostituição. Não mais sob a coordenação da polícia mas sim do serviço social, que atuaria nas áreas de habitação, saúde e educação. O fato de os grupos mais progressistas estarem fora da base política do governo do então Presidente, Getúlio Vargas, reduziu significativamente a possibilidade de interferirem nas ações implementadas pelo governo. (Cunha, 2000).

Há que se destacar ainda que mesmo o posicionamento assumido por esses setores dito “reformistas” em relação à modernidade era ambíguo, posto que os questionamentos trazidos pelo pós-guerra às hierarquias sociais colocavam em cheque também os privilégios que possuíam. Essa ambigüidade era expressa claramente, de acordo com Caulfield (2000), nos discursos formulados pelos juristas acerca de questões de algum modo vinculada às relações entre mulheres e homens e à participação das mulheres na vida pública. Ao mesmo tempo em que associavam o desenvolvimento econômico e o progresso social à modernidade, relacionavam a ela a “degeneração moral”, a “dissolução dos “bons

costumes” e a “degradação dos valores tradicionais da família”. Simultânea e

paradoxalmente à modernidade, “atribuída aos homens” era “sinal de

racionalidade progressiva”, enquanto para as mulheres significava “moral licenciosa e estilo de vida desregrado”.·(Caulfield, 2000, p.186).

Todavia, apesar da premissa segundo a qual a modernidade constituía uma ameaça à honra das mulheres continuar vigorando, o aumento substantivo do número de mulheres inseridas no mercado de trabalho e em circulação nos diferentes espaços públicos produziu um relaxamento nos controles estruturados para coibir a autonomia feminina. Exemplar nesse sentido foi o declínio acentuado na utilização da dicotomia prostituta-mãe e a aceitação do desejo sexual feminino como “um impulso instintivo de “pessoa normal”, por juristas envolvidos em processos relacionados à delitos sexuais e/ou de honra. (Caulfield, 2000, p.248).

Como mencionado acima, a repressão à prostituição continuou a vigorar, apesar do ambiente mais liberal para as mulheres. Contribuiu para esse posicionamento também o fato do denominado tráfico de escravas brancas ter retornado ao centro das atenções, em decorrência das denúncias apresentadas por diferentes organizações internacionais. A divulgação de notícias, dando conta que organizações criminosas internacionais especializadas nesse tipo de negócio estariam atuando no Brasil e em outros países da América do Sul, movimentou intensamente as autoridades nacionais e também organizações da sociedade civil que agregavam os estrangeiros migrantes “de bem”. Essa questão ganhou dimensão significativa principalmente na cidade de São Paulo, onde se apontava a ativa presença da “poderosa máfia dos cáftens judeus” conhecida como Zwi

Migdal, que além de atuar na Capital paulista, mantinha-se em atividade, simultaneamente, nas cidades de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras cidades do Sul. (Rago, 1989, p. 161-162). Com um número significativo de cáftens a ela associados a Zwi Migdal se distinguia dos demais esquemas de cafetinagem em funcionamento, pela concentração do recrutamento nas mãos de judeus que buscavam mulheres em pequenas cidades da Áustria, Rússia, Romênia e Polônia. O fato de muitas dessas mulheres serem originárias da Polônia, fez com que todas aquelas provenientes da Europa Oriental passassem a ser identificadas, genericamente, como “polacas. (Menezes, 1992; Rago, 1989)

A ascensão de Vargas, em 1930, significou a consagração da polícia, como o principal sustentáculo e alicerce do regime, cabendo-lhe implementar as medidas que permitiriam o florescimento de uma nova era, cuja principal característica seria a moralização dos costumes sociais e políticos. A repressão à prostituição incluiu-se entre as ações a serem implementadas com este fim. Assim, afora a questão do “tráfico de escravas brancas”, a polícia implementou medidas de caráter “regulamentarista” em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, com vistas a retirar as prostitutas dos locais públicos por onde circulavam as pessoas ditas de bem e transferir as zonas de meretrício para áreas mais afastadas da cidade. A repressão policial não poupou nem mesmo as zonas de meretrício já estabelecidas, como por exemplo, a Zona do Mangue, no Rio de Janeiro. Entre meados da década de 1930 e 1945, sob o Estado Novo, as forças policiais da então Capital Federal mobilizaram seus recursos com o objetivo de acabar com o local, que contava então com centenas de mulheres espalhadas pelos bordéis ali instalados. As mulheres que tentaram continuar trabalhando na clandestinidade sofreram todo tipo de violência. (Cancelli, 1991; Caulfield, 2000; Guimarães, 1981; Rago, 1991).

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ida dos homens para os campos de batalha, a participação das mulheres no mercado de trabalho aumentou substancialmente, fazendo renascer o fantasma da libertação feminina. Essa circunstância levou as prostitutas a serem alçadas à condição de bodes expiatórios da temível realidade que a nova situação parecia apontar. O “pânico

voltadas à repressão sexual, particularmente com relação às prostitutas, que novamente se viram sob a mira da polícia e dos funcionários da saúde. (Roberts, 1998, p.330).

“Em meados do século XX, a vida de uma prostituta era tão difícil e perigosa quanto sempre foi, quer ela vivesse na Alemnha de Hitler, na Rússia de Stalin – ou na “Terra dos Livres”. Mas o mundo ocidental estava à beira de outra revolução: a “revolução sexual” da década de 1960”. (Roberts, 1998, p. 331).

Na França, entre as décadas de 1940 e 1950, se instalou uma espécie de “guerra fria” contra as prostitutas. Em 1946, o país adotou uma legislação de caráter claramente “abolicionista” que, embora não considerasse a prostituição em si um crime, estabelecia o fechamento dos bordéis que funcionavam com a tolerância oficiosa da polícia, a proibição da prostituição nas ruas e dos anúncios de serviços sexuais. O cerne da nova lei, segundo Roberts (1998, p. 335) era a “criminalização da visibilidade das prostitutas” posto que, o fato de serem vistas ou ouvidas havia se tornado “novamente obsceno”, no contexto do pós-guerra. O registro policial das prostitutas que havia sido implementado anteriormente não foi objeto da referida legislação, permanecendo assim sem qualquer alteração. Assim como a obrigatoriedade do cartão de saúde, o registro policial permanece em vigor até os dias atuais na França.

As diferentes medidas adotadas, no bojo das legislações implementadas pelos países europeus, via de regra, destinaram às mulheres o ônus mais pesado da repressão. Afora a utilização da legislação para expulsar as prostitutas de locais públicos, perseguir seus namorados, companheiros e maridos e até mesmo os locatários de suas residências, freqüentemente a polícia interpretou livremente as leis para acusar de exploração as mulheres que dividem apartamentos, acusando-as de favorecerem a prostituição uma da outra. E como destaca Roberts (1998, p. 337): “não é preciso dizer que em nenhum país as leis de

“intermediação” ou “favorecimento” são aplicadas aos maiores beneficiários da prostituição”. No Brasil as características da ação policial assim como as

conseqüências que elas provocaram não se distinguiram daquelas apontadas por Roberts (1998) em relação aos países europeus. Mais que isso, não se

distinguem ainda hoje - como se verá adiante – daquelas apontadas pela autora em relação aos países europeus.

Apesar das pequenas variações existentes entre as perspectivas que prevaleceram nos diferentes países da Europa o resultado foi igualmente a adoção de medidas que aumentaram sobremaneira a violência e a discriminação das ações implementadas pelas instituições públicas encarregadas de lidar com a prostituição. Assim, enquanto a adoção do registro policial além de reforçar o “estigma de puta” dificultava a saída das mulheres da prostituição, na medida em que rápida e facilmente os potenciais empregadores de outros ramos tomavam conhecimento de sua condição de “prostituta conhecida”, a criminalização da prostituição nas ruas e da oferta de serviços sexuais – a denominada “solicitação” – nos moldes adotados pela Grã Bretanha, por exemplo, aumentou enormemente o poder da polícia e a possibilidade de seu poder discricionário ser usado abusivamente. Mais que isso, a adoção da referida legislação assim como a definição de “solicitação” que servia de fundamentação à ação policial “coroou a

longa luta do Estado (datando no mínimo do século XVIII), para controlar a liberdade de expressão das mulheres”.(Roberts, 1998, p. 338).

De acordo com a Organização Inglesa de Prostitutas, citada pela mesma autora:

“As leis da prostituição não dizem respeito apenas às prostitutas. Elas mantêm todas as mulheres sob controle. A qualquer momento, qualquer mulher pode ser chamada de prostituta e tratada como tal. Toda mulher tem de observar em sua própria vida se o que ela está fazendo é “bom” ou “ruim”, para censurar seus movimentos, comportamentos e aparência”. (Roberts, 1998, p.338).

As convulsões e crise que arrebataram especialmente os países ocidentais, no período compreendido entre as duas guerras mundiais, serviram de caldo de cultura para a gestação das transformações que sacudiriam as sociedades ocidentais, a partir da década de 1960. Embora essas transformações tenham variado de intensidade entre os diferentes países, somente os países do Leste Europeu que adotaram o totalitarismo mantiveram-se, de certo modo, alheio aos influxos da nova sociedade de massa que surgia então. A expansão da

chamada economia de consumo que viabilizou o acesso das massas a uma série de bens e inovações tecnológicas exigiu, simultaneamente, uma maior quantidade de trabalho para possibilitar a aquisição dos referido bens. A necessidade de obter maiores ganhos para satisfazer o consumismo crescente, acabou por fazer com que as mulheres casadas, que ainda permaneciam restritas ao universo doméstico, se juntassem às solteiras no mercado de trabalho.

Esse contexto fez com que o contingente feminino se tornasse, com o passsar do tempo, cada vez mais significativo no total dos indivíduos que compunham a força de trabalho. A maior participação das mulheres no mercado de trabalho e o questionamento da dominação masculina não fez porém que a desigualdade fosse superada, nem tampouco mudou o fato da prostituição constituir a única ocupação onde as mulheres tinham a possibilidade de auferir ganhos superiores aos dos homens. (Roberts, 1998).

“Poderia parecer lógico que a nossa sociedade, atravessando depois de séculos o seu período mais radical de relaxamento moral, viesse a se tornar mais tolerante em relação à prostituta – mas de muitas maneiras aconteceu o oposto. As prostitutas sempre estiveram sob a jurisdição dos setores mais repressivos e reacionários da sociedade (polícia, políticos e o sistema legal), (...) justamente as pessoas que mais entraram em pânico com a desintegração do universo tradicional da moral da classe média”.

(Roberts, 1998, p. 333).

As perspectivas “regulamentarista” e “abolicionista” acerca da prostituição prevaleceram sem qualquer concorrência significativa durante o século XIX e a primeira metade do século XX. No Brasil, compunham, de acordo com Briones (apud Trapasso, s.d.), o “discurso jurídico”, e somente na segunda metade do século XX, foram confrontadas por outras abordagens que paulatinamente colocaram em questão os paradigmas que tradicionalmente serviam de fundamento às sociedades Capitalistas. No bojo desse processo de mudanças se destacaram e se constituíram como elementos importantes a relativa decadência dos discursos moralistas, hegemônicos no período anterior, o ressurgimento do feminismo e sua contestação à hierarquia sexual masculina e às desigualdades

que pautavam as relações entre homens e mulheres, numa sociedade de tradição patriarcal. Embora essa nova conjuntura, em momento algum tenha significado a extinção do estigma da prostituta ou a aceitação da prostituição, como se verá a seguir, propiciou uma outra visibilidade e inserção da questão da prostituição na sociedade. (Giddens, 1992; Lipovetsky, 1994; Scambler & Scambler, 1997).

3.2–AS PRIMEIRAS INICIATIVAS NA ESFERA LEGAL SOBRE A PROSTITUIÇÃO

Os primeiros debates acerca da prostituição entre os juristas brasileiros tiveram como pano de fundo o papel da lei na proteção das mulheres desonestas e mesmo em relação à distinção possível entre mulheres honestas e a prostituta que era considerada desonesta porque exercia abertamente seu ofício. As discussões foram guiadas permanentemente pela preocupação em torno da necessária proteção das mulheres honestas. A idéia de contaminação e a necessidade de proteger as “mulheres de bem” do perigo, do mal que representavam as prostitutas, se apresentava uma vez mais como o substrato dos debates. (Caulfield, 2000; Cunha, 2000; Menezes, 1992; Soihet, 1989).

Há que se ter em conta, uma vez mais recorrendo a Douglas (1976, p. 117- 118), que se a prostituição enquanto uma “desordem estraga o padrão, ela

também fornece os materiais do padrão”. Neste sentido, “simboliza tanto perigo quanto poder”, como pode “ser observado nos “rituais da sociedade”” e em suas

“crenças sobre pessoas em situação marginal, que se encontram excluídas de

algum modo do padrão social, deslocadas”.

Autoridades legislativas acreditavam que, embora a prostituição demandasse algum tipo de controle, não era necessário, entretanto, adotar uma regulamentação específica para a questão. Foi essa perspectiva que prevaleceu na formulação do Código Penal de 1830, que deixou de fora a criminalização do

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