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O modo como a sociedade concebe e lida com a prostituição é determinado historicamente. A configuração atual da intervenção pública no âmbito da prostituição e a centralidade da polícia dentro desta, nas sociedades ocidentais, só podem ser compreendidas em toda sua dimensão, se pensadas no contexto sociohistórico, que abrange o período compreendido entre finais do século XIX e meados do século XX. É essa perspectiva que fez com que se dedicasse o presente capítulo à discussão do processo no qual se forjou o significado da prostituição, que serviu de fundamento à conformação da intervenção estatal nesses moldes.

2.1–SEXUALIDADE E MORAL SEXUAL NA MODERNIDADE OCIDENTAL

A partir do século XVIII, os novos mecanismos de poder instituídos focalizaram o homem enquanto corpo vivo e calcaram-se na técnica, na normalização e no controle, não mais no direito, na lei e no castigo exercidos, anteriormente, pelos aparelhos estatais. Nesse contexto a vida passou ao centro das reivindicações, ainda que nas lutas políticas se apresentasse sob o envoltório do direito – direito à satisfação das necessidades, à vida, à saúde, ao corpo. Ao reconstituir o processo levado a cabo pelas sociedades ocidentais modernas de desenvolver uma série de dispositivos de poder, Foucault (1997) coloca em destaque o que denomina como a “história dos corpos”.

Essa “era do bio-poder”, segundo o autor, se desenvolveu ancorada na disciplina por um lado e nas regulações populacionais, por outro. Estas duas técnicas de poder se articularam por meio de uma série de “agenciamentos

concretos”, dentre os quais a sexualidade ocupou lugar de destaque. (Foucault,

1997, p. 132). Isto de deve ao fato do sexo estar ligado simultaneamente à longevidade do corpo e da espécie.

21 É interessante notar que, ainda hoje, não obstante o crescimento da prostituição envolvendo

homens, a representação da prostituta refere-se via de regra à mulher. Circunstância que indica o quanto a discussão sobre o tema vincula-se umbilicalmente às representações sociais sobre os gêneros.

Deve-se ressaltar, a centralidade da questão do corpo nesse contexto, haja vista o grande simbolismo que reveste o mesmo, especialmente quando se tem em conta sua utilização como símbolo e metáfora da sociedade, e vice-versa. Como destaca Paiva (1993, p. 59), “... o corpo não é um receptáculo poroso sem

importância”. Fornece na verdade um esquema básico para todo o simbolismo.

“Onde a pureza sexual é envolvida, nega-se o sexo e a fertilidade. Mas o que é

negado não é removido”.

Dentro da estratégia de construção de um poder e um saber sobre o sexo, na constituição do “dispositivo de sexualidade”, o “prazer perverso”, via de regra, aquele prazer advindo de relações e práticas sexuais não vinculadas à função reprodutiva e externas ao contrato matrimonial, tornou-se um alvo constante. Considerado uma anormalidade, elemento de uma patologia social, o adulto perverso e suas práticas requeriam uma tecnologia corretiva. Como destaca Soares (1986, p. 167):

“... é dentro deste contexto que surge a necessidade de controle e

regularização da prostituição, como um “mal”, embora necessário para saciar o instinto sexual masculino, ou a condenação das práticas homossexuais masculinas e femininas como uma “anormalidade”, um vício”, uma “doença””.

A explosão discursiva acerca do sexo nos séculos XIX e XX se caracterizou pela redução do foco sobre a monogamia heterossexual e pela centralização das atenções em torno das chamadas “sexualidades periféricas”. Tornara-se imprescindível trazer à luz e fazer falar os devaneios, as obsessões, as grandes raivas e as pequenas manias. As perguntas referiam-se então à sexualidade dos loucos, das crianças, daqueles que amam outros do mesmo sexo e dos criminosos. A expansão do poder às “sexualidades periféricas” promoveu a “incorporação das perversões” e uma “nova especificação dos indivíduos” que as praticam. (Foucault, Michel, op. cit., 1997, p. 38-43).

A intenção de colaborar na consolidação da ordem Capitalista gerou todo um esforço no sentido de criar “novas formas de disciplina social”. Num contexto de relações de poder mais abrangentes, profissionais liberais de diferentes formações além dos juristas lançaram mão de “categorias e normas sexuais (...)

[para] disciplinar as famílias”. (Caulfield, Sueann, op.cit., p.35). As mudanças nas

leis, de modo a contemplar outras noções de honra familiar e sexual, empreendidas entre o final do século XIX e meados do século XX, inseriram-se nesses esforços, como se verá adiante.

Foi nesse contexto que os higienistas entraram em cena. Por meio de uma reforma higiênica dos costumes a família nuclear foi transformada em um espaço saturado de cuidados físicos, sentimentais e morais. Promoveu-se sua adequação de modo que pudesse participar dos valores de classe, raça e corpo, característicos do Estado burguês. Nesse processo os indivíduos foram simultaneamente intimizados e estatizados e mulheres e homens subsumidos à condição de mães e pais, como assinalam Freire Costa (1999), Machado et al. (1978) e Rago (1987; 1991).

No Brasil, até as primeiras décadas do século XIX, a prostituição coexistia com a sociedade dita estabelecida sem acarretar maiores problemas. Mais que isso, assim como a sexualidade, as questões relacionadas à prostituição não se incluíam na pauta dos debates que mobilizavam a sociedade no período. O fato de as prostitutas, nesse período, exercerem a atividade basicamente entre quatro paredes, o confinamento doméstico a que as mulheres ditas de família eram submetidas e a incipiente sociabilidade urbana eram fatores determinantes dessa situação. (Engel, 1986; Freire Costa, 1999).

As transformações urbano-industriais e a conquista de determinados espaços e direitos civis pelas mulheres e os processo de desterritorialização da subjetividade, associadas a elas, alteraram profundamente essas circunstâncias. Ao apontar para a (hipotética) igualização da condição dos sexos, esse processo ensejou uma série de conflitos e fez com que a criação de barreiras espaciais e simbólicas, que hierarquizassem os sexos, se colocasse como questão chave. Nesse contexto, o disciplinamento da sexualidade feminina e como parte disso, a cristalização da divisão entre mulheres boas e más, e a satanização das prostitutas, se tornaram cruciais. (Caulfield, 2000; Menezes, 1992; Moura, 1989; Paiva, 1993; Rago, 1987; 1991, Sevcenko, 1999).

A intervenção médico-estatal na família foi a principal estratégia adotada no Brasil, no século XIX, com vistas a implantar um novo modelo de organização

familiar. A medicina familiar e da higiene estimularam vigorosamente o contato entre indivíduos e famílias e a privacidade familiar, assim como entre a cidade e o Estado. Um novo modelo se impôs assim à família brasileira, modificando radicalmente a casa e a intimidade. Por meio de alterações arquitetônicas fomentou-se um maior intercâmbio entre as residências familiares e o meio social. O “intimismo familiar”, fomentado pelo modelo médico-higiênico, ganhou corpo com a repulsa à presença de escravos no ambiente doméstico e o reposicionamento das mulheres, que além de se verem instadas a uma maior exposição nos espaços públicos foram, simultaneamente, chamadas a se responsabilizarem pela amamentação e cuidado dos filhos. (Freire Costa, 1999; Sevcenko, 1999).

A maior interação e convivência entre os indivíduos e famílias, promovida pela intervenção médico-estatal, necessitava ser regulada para que a intimidade almejada não fosse colocada em risco nem tampouco um “um mundanismo sem

freios” prevalecesse. O crescente intercâmbio entre a casa e a rua não poderia

culminar num afrouxamento da moral. Um meio termo entre os interesses da cidade e do Estado e a estabilidade dos novos vínculos emocionais das famílias deveria assim ser encontrado. Com esta perspectiva o “modelo de regulação

disciplinar” delineou uma nova geografia da cidade em que o eixo condutor, a

higiene, definia os locais adequados ou não ao trânsito das famílias. (Freire Costa, p. 133-138).

O conflito entre a casa e a rua tomou proporções cada vez maiores à medida que a presença das mulheres se ampliou e se consolidou. Neste contexto, a polícia ganhou paulatinamente mais importância, controlando e reprimindo as “mulheres públicas” ou “da rua” - as prostitutas - e mantendo a assepsia dos espaços urbanos de circulação das famílias burguesas. Vale notar que essa prática de delimitar os espaços próprios à circulação de prostitutas e famílias, persiste em grande medida até os dias atuais. Exemplifica a persistência dessa situação em nossos dias, o fato do desrespeito a este zoneamento tacitamente definido, ser, freqüentemente, a origem de conflitos e do acionamento das autoridades públicas, e em particular da polícia, por parte dos grupos

“estabelecidos” – nos termos de Elias (2000). (Biancarelli, 2002; Folha..., 2002; Menezes, 1992; Sevcenko, 1999).

O crescimento da presença feminina nos espaços públicos e sua maior participação na vida social não poderiam, ademais, ensejar alterações nas relações de poder entre mulheres e homens ou abrir espaço para o surgimento de qualquer competição com estes últimos. Era mister assim, frear o ímpeto de emancipação feminina. Uma vez mais a intervenção médico-higiênica mostrou-se fundamental para regular e disciplinar as mulheres – seus hábitos, sua inserção social, sua sexualidade. A estratégia principal utilizada nesse contexto foi a de subsumir as mulheres à maternidade. Vale lembrar que a preocupação com o enquadramento das mulheres e a louvação à mãe santificada, em verdade já estava no centro do discurso e das ações empreendidas no Brasil desde o período colonial, pela igreja católica e pelo Estado português. (Del Priore, 1993; Menezes, 1992; Vainfas, 1986).

A “mulher-mãe” devia responsabilizar-se pelo cuidado e amamentação de seus filhos. A intervenção higiênica confrontou uma variedade de costumes brasileiros anteriores, inclusive o que delegava às escravas a tarefa da amamentação. Com o argumento que tal prática era a demonstração da ausência de amor para com os filhos além de ir de encontro à natureza, os higienistas pressionaram fortemente as mulheres para que assumissem o cuidado dos filhos e se incumbissem de amamentá-los. Para eles “parecia não haver escapatória ao

comportamento feminino” fora do “modelo da “mãe amorosa amamentando o bebê””. (Freire Costa, 1999, p.288). O objetivo principal dessa iniciativa, porém, foi

ocupar o tempo livre das mulheres de modo higiênico. Aprofundou-se nesse movimento a separação entre mulheres - mães/boas e mulheres-prostitutas/más. (Freire Costa, 1999; Leite, 1984; Paiva, 1993; Rago, 1987; Soihet, 1986).

Na ótica higienista, a adoção do “modelo da mulher-mãe” significou também uma estratégia para circunscrever a sexualidade feminina, uma vez que fora a pressão para que as mulheres assumissem a amamentação de seus filhos se juntou uma série de restrições à prática do sexo durante a gravidez e o período do aleitamento materno. Considerando a inexistência de métodos anticoncepcionais na época e o longo período consumido pela amamentação -

dezoito meses em média – as “mulheres-mães” tornavam-se reféns das sucessivas gravidezes e intermináveis aleitamentos e assim permaneciam a maior parte do tempo impedidas de manterem uma vida sexual regular e continuada. Com isso, paradoxalmente, acabava-se por abrir o flanco para que os homens se voltassem para as prostitutas, uma vez que a prática sexual com suas esposas, era inviabilizada, no período de amamentação. (Del Priore, 1993; Vainfas, 1986).

Com vistas a coibir as resistências das mulheres frente a tantas restrições e limitações à prática sexual, os higienistas preocuparam-se não só em propagandear os benefícios da amamentação para os bebês, mas principalmente dedicaram-se ainda a fazer apologia da prática do aleitamento enquanto fonte de prazer. (Freire Costa, 1999; Soihet, 1986).

Em busca da normalização da sexualidade o discurso higienista avançou sobre o contrato conjugal promovendo também aí uma verdadeira revolução no universo de valores do matrimônio. Os paradigmas que sustentavam o contrato conjugal no período colonial e que tinham na herança e no status social seus pilares foram substituídos pela hereditariedade e o cuidado com a prole. Era fundamental, dentro da concepção higienista, garantir que os contratos matrimoniais resultassem uma prole saudável e robusta. Foi nesse contexto de acordo com Freire Costa (1999, p.222) que “o corpo, o sexo e a moral” ganharam precedência sobre as linhagens e as estirpes. (Freire Costa, 1999; Leite, 1984; Sevcenko, 1999).

“No que se refere à “problemática sexual” no casamento a

perspectiva higiênica tinha como preocupação regular o sexo em termos de suas carências, e não simplesmente no que se referia a atividade sexual excessiva - o prazer gratuito e irresponsável - que mobilizara anteriormente a igreja católica. Ou seja, considerava-se fundamental a existência de uma vida sexual conjugal ativa. Acreditava-se que só assim seria possível manter os homens longe da prostituição, o que se revelou inviável, na prática. Ademais a preocupação principal, a impulsionar os partidários de tal proposta, era garantir o nascimento de filhos saudáveis. O prazer sexual no

matrimônio passou assim a ser fundamental, constituindo-se ademais o caminho para o amor, considerado de grande utilidade, enquanto um valor capaz de se contrapor aos valores patriarcais de modo eficaz. O enfoque higienista acerca do amor era visivelmente pragmático, e diferentemente da perspectiva romântica, o associava permanentemente à procriação e à sexualidade”. (Freire Costa, 1999

p. 227).

A princípio, a interferência médica não era bem vista. Para viabilizar sua aceitação e garantir sua influência eles tiveram que obter aliados no seio dos grupos familiares. A defesa das mulheres e das crianças e o investimento na redução do poder patriarcal – mediante as críticas ao velho patriarca e ênfase em sua decadência física – provocaram pequenas cisões familiares. Os médicos alcançaram assim desejada ascendência sobre o núcleo familiar e a redefinição do papel das mulheres de acordo com seus interesses. (Freire Costa, 1999)

O êxito completo da estratégia disciplinar requereu, além disso, o afastamento de alguns obstáculos tidos como capazes de colocar a referida iniciativa em risco. Entre os empecilhos que poderiam afetar diretamente as mulheres e as novas perspectivas para a o contrato conjugal os higienistas destacavam a livre circulação das prostitutas e as mulheres mundanas. Passíveis de corromperem moralmente as mulheres honestas com seu mau exemplo, essas mulheres, além da transmissão de doenças aos homens, deveriam ser mantidas sob rígidas regras e controles para que não contaminassem as mães, filhas, filhos e chefes de família. (Freire Costa, 1999; Menezes, 1992; Rago, 1987).

Assim como a colocação do sexo em discurso e a constituição da “ciência

sexual” implicaram na cientifização da confissão, a problematização da

prostituição, imersa no moralismo e na moralidade, recolocou a questão do bem e do mal no campo da sexualidade feminina. A constituição e difusão da dicotomia mulheres boas-mães versus mulheres más-prostitutas obteve assim êxito incontestável e logrou construir um limite poderoso para barrar não só a participação das mulheres em diferentes esferas da vida social, mas principalmente, a alteração do padrão desigual de relações entre mulheres e homens. Indicador desse sucesso é a persistência nos dias atuais não só do

estigma em relação à prostituição e mais particularmente às prostitutas, mas da atitude de suspeição para com as mulheres, atribuindo a todas o “estigma de

puta”, caso adotem comportamentos considerados inadequados.

As diferentes circunstâncias envolvendo a estigmatização contemplam segundo Goffman (1982, p. 14):

“as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto”.

Além da prostituta e da mulher mundana, que eram consideradas um atentado contra a maternidade e a moral feminina, os higienistas rechaçavam também, pelo lado dos homens, tanto o libertino, que encarnava a exuberância sexual incontida e ilimitada e por isso era habitat de doenças terríveis, como o homossexual e o celibatário, que se furtavam à função paterna e familiar. Na concepção higiênica essas figuras constituíam grandes ameaças à sexualidade medicalizada, ao desenvolvimento da família e à reprodução da espécie. (Freire Costa, 1999).

O enclausuramento das relações sexuais, como das funções corporais de modo geral, teve como uma de suas conseqüências mais marcantes na vida dos indivíduos a instauração de uma divisão entre a esfera íntima e a esfera pública, entre o comportamento permitido publicamente e o que deve ser mantido secreto. Apoiadas em sanções sociais, tais prescrições foram internalizadas pelos indivíduos e, reproduzindo-se sob a forma de autocontrole, transformaram-se em hábitos, os quais não logramos nos furtar sequer quando estamos sozinhos. “O

código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo”. (Elias, 1994, p.246).·

Nesse sentido, Foucault (1997) ressalta que num primeiro momento acreditava-se que esses mecanismos de disciplinamento dos corpos difundidos em oficinas, escolas, hospitais e cidades, deveriam ser, além de amplos e múltiplos, rígidos. Com o passar do tempo, mais especificamente a partir da

década de sessenta, percebeu-se entretanto, que, ao contrário do que se acredita até então, não era indispensável que este poder fosse assim tão rígido. “As

sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo (...) [e] os controles da sexualidade podiam atenuar-se e tomar outras formas...”. (Foucault, 1993, p.148). É nesse contexto que se pode entender a

flexibilização moral que se difundiu nas sociedades ocidentais, a partir da década de 1960, e que, sem superar completamente os padrões morais mais tradicionais, constitui uma das principais características do que Lipovetsky (1997) denomina “era do pós-dever” e outros autores que se debruçaram sobre as mudanças havidas a partir de então denominam de “pós-modernidade”. Mudanças essas que repercutiram fortemente também na esfera da prostituição, como é analisado posteriormente.

2.2-A CONSTRUÇÃO DA PROSTITUIÇÃO COMO UM “MAL”... NECESSÁRIO

O significado social da prostituição não é imutável ou trans-histórico. Ao contrário, ele se modifica de acordo com o contexto sociohistórico, cultural, político e econômico, os quais mediam e dão significado à prostituição. Contemporaneamente a prostituição é fortemente marcada pelo estigma e pela vergonha. A este respeito Juliano (2000, p.17) assinala que:

“Para as trabalhadoras do sexo, o problema [central reside] no prestígio e respeito que lhes são negados. Pheterson (2000, p. 10) chega a considerar a estigmatização como o eixo central da definição mesma do trabalho sexual. (...) Este aspecto é tão determinante que resulta muito difícil para a maioria das pessoas avaliar os problemas relacionados com a prostituição como o fariam com qualquer outro trabalho”.22

22 Tradução da autora. No original: “Para las trabajadoras del sexo, el problema [central, reside] en el prestigio y respeto que se les niega. Pheterson (2000, p.10) llega a considerar la estigmatización como el eje central de la definición misma del trabajo sexual. (...) Este aspecto

Contudo, nem sempre foi assim. A rejeição moral da prostituição e a percepção da prostituta como um “mal”, prevalecente nos dias atuais, está associada à institucionalização da divisão das mulheres em boas e más e à consolidação do “dualismo sexual moral”, que associou às mulheres, as coisas más, e os homens, às boas. (Lima, 1986; Paiva, 1993; Suárez, 1992; 2000).

De acordo com Suárez (1992) a utilização da “dicotomia natureza/cultura”, pelo pensamento ocidental, constitui um dos pilares para a naturalização e essencialização da mulher. Esta dicotomia que permite compreender e explicar a realidade, situando todas as coisas existentes no mundo como sendo dadas pela natureza – e portanto naturais – ou feitas pelo homem – e logo culturais –, tem função cognitiva e também em termos de poder. Isto por que, “dependendo do

campo onde algo seja situado, lhe será concedida à possibilidade de autonomia e mudança (o campo da cultura) ou lhe será destinada à subordinação e imutabilidade (o campo da natureza)”. ·(Suárez, 1992, p. 6-8). Ou seja, a transposição da “estrutura de relacionamento entre a cultura e a natureza” - que pressupõe a subordinação da segunda pela primeira - para as relações entre homens e mulheres, ensejou a constituição de um discurso de verdade que deu sustentação à subordinação das mulheres aos homens. Esse discurso, que vigora ainda hoje, serve de justificativa à desigualdade que perpassa a relação entre homens e mulheres.

Simmel (1993) recorre aos escritos de Heródoto para recordar a inexistência de qualquer reprovação moral na Antiguidade às moças que se ofereciam por dinheiro. Circunstância que se explica pelo fato de naquele período o dinheiro não ter se generalizado como equivalente de troca e nem as mulheres serem ainda tão individualizadas. Para o autor, somente

“... em condições mais evoluídas, como as nossas, onde o dinheiro torna-se cada vez mais impessoal por podermos comprar cada vez mais coisas com ele, enquanto os humanos, por sua vez, tornam-se cada vez mais pessoas, a aquisição desse bem tão íntimo mediante moeda parace cada vez mais indigna” (Simmel, 1993, p. 05-06).

Elias (1994) assinala que na cidade medieval, embora a situação social das prostitutas fosse marcada pelo desprezo, elas gozavam de direitos e obrigações como as demais categorias profissionais. Naquele período, ao contrário, tinham “um lugar próprio e bem definido na vida pública” e eram assunto que os adultos tratavam livremente com as crianças. (Elias, 1994, p.177). O relacionamento com prostitutas que também era explícito e público tornou-se, do mesmo modo, um assunto proibido de ser tratado publicamente a não ser em determinados ambientes, acessíveis via de regra exclusivamente aos homens adultos. Foi no processo de “civilização dos costumes” - no dizer do autor - ou da nova “moral

higiênica”, como denomina Freire Costa (1999), que emergiu a pressão por maior

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