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4. O OLHAR BIOÉTICO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO

4.1 Direito de Acesso

4.2.4 Controle de corpos e intervenção na mulher

Conforme já discutimos em diferentes pontos ao longo deste trabalho, a mulher é foco da intervenção médica no tocante às tecnologias de RHA, entretanto a presença do homem se faz indispensável, tanto para a fecundação, como para a permissão a que essa mulher se torne de fato objeto da intervenção, tendo-se em vista que se ela não é solteira, necessita do consentimento do parceiro para tornar-se detentora de um direito já discutido aqui como inerente à condição humana. Sobre o papel do homem neste processo, Diniz e Costa (2005, p.6) nos trazem que

na verdade, é a ideologia naturalista da reprodução pautada na heterossexualidade que é protegida pelas tecnologias conceptivas ao requerer a presença masculina na reprodução. A exigência moral é do cumprimento das convenções de gênero assentadas no discurso sobre o natural, em que assim como óvulos e espermas são necessários à fecundação, mulheres e homens à reprodução social. Neste sentido, se o diagnóstico de infertilidade sem causa aparente poderia ser uma porta aberta para a negociação da infecundidade involuntária e não estritamente do corpo estéril como critério de elegibilidade às técnicas, não é desta maneira que o debate político nos anos 2000 vem se desenhando em alguns países da América Latina, onde a tendência é restringir o acesso a casais heterossexuais.

Além disso, com a possibilidade de interdição da mulher pelo parceiro, voltamos aqui a uma noção de sociedade patriarcal, fundada no papel social do homem como primordial, e como palavra final nas relações homem-mulher, além de destoar dos princípios contidos na própria lei de planejamento familiar, onde a igualdade de direitos se expressa neste campo (CARVALHO, 1997, p.31-32, 98-99). Que igualdade se revela ao tornar um dos indivíduos controlado pelo jugo do outro? Se direitos e deveres não são de fato expressos como podendo ser exercidos igualmente, ferimos aqui os princípios constitucionais, e também os dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O uso da tecnologia médica para alcançar o objetivo de ser mãe expõe a mulher a uma forma perversa de medicalização e mercantilização da procriação. Ou seja, vivemos sob a ótica da ‘medicina do desejo’, que fragiliza e submete ‘cada vez mais as pacientes à supervalorização da biotécnica’ e que se apóia em um discurso positivo, sustentado pela utilização da generosidade profissional e eficácia dos procedimentos. Fica evidente a contraposição que se estabelece entre a hegemonia cientificista da

medicina reprodutiva, que engendra e ao mesmo tempo responde à demanda de filhos, e os interesses das mulheres no âmbito social, político e de seu poder pessoal frente ao processo de tomada de decisão quanto ao exercício da maternidade (GUILHEM e PRADO, 2001, p. 114).

Neste sentido a mulher é percebida como tendo o papel inato de procriadora, não sendo dada a atenção devida às novas configurações de seu papel na sociedade, o que é reforçado por Berlinguer (2004, p. 14) quando comenta que “no passado, a procriação sem intervalos, da puberdade à menopausa [...], constituíra para a mulher um dos principais empecilhos para o seu pleno desenvolvimento como sujeito humano em todas as várias dimensões”. Guilhem e Prado (2001, p 120-121) comentam aqui que colocar a noção de direito de reprodução como justificando o procedimento nos serviços públicos, e com eles o acesso à mulher, “traduz-se em uma falácia. Isso acontece exatamente porque os profissionais resumem o universo de direitos das mulheres à questão da reprodução, que em grande parte é vista sob a ótica da técnica, hierarquizando de forma distorcida esses direitos”. Este dado fica evidenciado também nos documentos analisados16, onde a procriação não é novamente

percebida como uma escolha livre dos indivíduos, mas sim uma função naturalizada, e agora também medicalizada.

A medicalização da reprodução humana é um dos grandes temas que suscita a discussão no âmbito da Bioética e do Biodireito, tendo em vista que as modernas técnicas de reprodução humana podem oferecer a maternidade tanto às mulheres estéreis, quanto àquelas que já atingiram a menopausa, mulheres lésbicas e, mesmo, a chance de maternidade às mulheres virgens. Tendo havido a quebra da tradição histórica e social da maternidade ao se separar a reprodução da sexualidade e ainda, a desvinculação da maternidade dos limites e imposições traçados pela tradição e biologia humana, houve a revalorização da maternidade enquanto vocação do feminino. (BRAUNER, 2003)

Concordamos com a postulação de Berlinguer quando este coloca em debate não somente a questão de ampliação da liberdade de escolhas sobre como procriar, promovidas pelos adventos das tecnologias reprodutivas, mas também sobre a crescente dependência corporal de uma “medicina altamente invasiva, a qual privilegia o remédio rápido e técnico” (2004, p. 34). Entretanto, este remédio rápido e técnico vem também permeado de valores morais, e embora torne o corpo – primordialmente o feminino – dependente da tecnologia, o

16 Em trechos como no PL 1135/03 (Anexo D): “riscos mínimos à paciente”, “a receptora”, ou no PL 1184/03 (Anexo E): “organismo da mulher receptora”. A naturalização da procriação como algo inerente à condição da mulher, e neste momento sendo também função medicalizada, é reforçada também nos dispostos sobre a gestação de substituição, onde alguns textos que a permitem restringem esta permissão somente em casos onde a doadora genética é impossibilitada, e esta impossibilidade é comprovada medicamente, como no PL 1135/03 (Anexo D).

faz para reforçar valores sociais tradicionais não mais hegemônicos, pois já dividem espaço na sociedade com novas formulações dos papéis de homem e mulher, assim com da visão de família contemporânea.

Esta disposição se deve também à não inserção do homem solteiro como foco de discussão, deixando-o de lado não somente na questão de direitos fundamentais sobre acesso a serviço e escolhas de formas de procriação, mas também negando a possibilidade de existência de famílias monoparentais formadas por eles. A discussão sobre a possibilidade ou negação da gestação de substituição é um ponto dentro dos documentos analisados que merece maiores aprofundamentos em posteriores propostas de trabalho, em face de encerrarem controvérsias religiosas e morais a um tema que acaba por negar um direito inerente ao homem, assim como também negar a existência de uma possibilidade de formação familiar já disposta na própria Constituição Federal como legítima, privilegiando a formação tradicional de família.

Neste aspecto de constituição de leis, Berlinguer (2004, p. 36) também nos faz permite pensar sobre a complexidade de formulação de regulações de uma sociedade, quando postula que

as leis devem refletir e, em certa medida, orientar uma sociedade pluralista, que seja baseada no inseparável binômio liberdade/responsabilidade, e assim não podem estabelecer vínculos, que não apresentem um fundamento racional demonstrado, como a idéia de que a derivação genética direta de dois genitores legalmente unidos seja a única que pode dar felicidade aos filhos. O Estado, todavia, não pode limitar-se a declarar lícito tudo aquilo que as ciências biomédicas tornam factível, ou a registrar a existência de diversas ‘comunidades morais’, como sustenta H. T. Engelhardt, que sejam autônomas entre elas e dotadas cada uma de regras próprias.

Diante desta discussão, seguiremos para a finalização desta seção, com as visões presentes nos documentos analisados acerca das formações familiares.