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4. O OLHAR BIOÉTICO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO

4.1 Direito de Acesso

4.1.2 Tema 2: Acesso para quem?

O segundo grande tema inicialmente poderia ser considerado a única referência para análise, se pensássemos em trabalhar apenas com quem tem direito de acesso ao serviço de RHA. Entretanto, a opção tomada para estudo foi a de ampliar o foco para a compreensão da configuração do direito de acesso, sem restringi-la a quem teria esse direito, de forma que essa configuração espontaneamente indicasse os pontos principais de discussão. Assim, novamente a leitura exaustiva se fez vital para a compreensão dos sentidos que o texto naturalmente ressaltaria. Também neste tema não houve diferença do ocorrido no tema anterior: o que parecia evidente e simples a um primeiro olhar, se mostrou revelador de possibilidades árduas de discussão, conforme tentaremos abordar neste momento.

O primeiro item que se faz presente nos textos analisados é, sem possibilidade de dúvida, a destinação do acesso para a mulher. Em quase todos os projetos analisados o texto refere-se de imediato à ela como quem teria o direito de acessar o que o texto dispõe. Contudo, embora possa parecer um tipo de avanço, por não especificar que mulher é essa que teria acesso ao disposto no texto, a continuação das leituras desfaz esta primeira impressão. A mulher ali descrita, pode sim ser a mulher solteira, não discriminada por sua condição de solteira como impossibilitada de ser mãe, mas não é a mulher por si só, que os textos se referem. A mulher solteira pode acessar, e sendo casada ou em união estável, torna-se necessária a autorização do cônjuge ou companheiro, para que ela tenha acesso ao que for que o texto disponibilize9.

Dessa forma, o acesso não fica assim tão disponível para a mulher como pareceria de imediato. Estaria ela já de início dependente da autorização de mais um agente externo, além do legislador, e também do médico responsável pela aplicação das técnicas. Nesse sentido, surge a partir da categoria mulher, a categoria casal, já subdividida em: casais em união estável, ou casais em união civil. Embora pudesse ser compreendida como uma subcategoria da primeira, a categoria casal pode ser uma categoria por si só, visto que suas subdivisões diferenciam de imediato o acesso da mulher, não sendo mais esse acesso à mulher em si, como no caso da mulher solteira, mas para uma mulher a partir de pré-condições dentro de uma relação marital.

9 Como exemplo, o texto do PL 1135/03 (Anexo D), no Cap. II, Art 9º: “Toda mulher, capaz nos termos da lei (...) pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida(...)”, e na seqüência, coloca em Parágrafo Único: “Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro (...)”. O mesmo dado se repete em outros PL’s além deste.

À esta categoria soma-se também o disposto na PRT/MS vigente (Anexo A), de acesso ao programa de RHA no SUS, onde a expressão casal é literalmente exposta, compondo assim a categoria isolada. Contudo, em ambos os casos que a compõem, destaca-se que o objeto de intervenção das técnicas é ainda a mulher, mesmo em condição de casal. Não se fala abertamente em intervenções no homem desse casal, o que já é um primeiro ponto a ser discutido, além de se falar em casal enquanto associação HOMEM-MULHER, não sendo pensada outra forma de composição de casal.

De todos os documentos analisados, apenas um deles, o PL 2031/03 (Anexo F), fala em acesso ao homem (Art 8º: “São beneficiários desta lei todo homem e mulher (...)”), e a existência de apenas uma indicação se faz por si só reveladora de sentido, configurando uma categoria própria, com suas problemáticas peculiares. Os textos são divergentes em se tratando de gestação de substituição, e nesse sentido, seria de grande importância uma discussão mais aprofundada e minuciosa desta questão, pois sua negação não contribui para pensar o acesso de forma universal, ainda em uma primeira avaliação. A gestação de substituição seria a forma possível de um homem – a princípio o solteiro – ter acesso ao filho, este compreendido como o produto do serviço de RHA. Não há referências de acesso ao homem em caso dele compor um casal, neste caso a referência é a mulher como objeto de intervenção, como já anteriormente exposto. Entretanto, ressalte-se novamente que embora não seja objeto de intervenção, o homem é aqui objeto de interdição do acesso dessa mulher, caso não esteja em concordância com a mesma.

Uma quarta e última categoria surge a partir de propostas de regulação específica para o serviço no SUS, onde quem tem direito de acesso passa a ser descrito como “pessoa”, sem definição de gênero para discriminá-la. Dessa forma, fica implícita a possibilidade de ambos os sexos terem acesso ao serviço, em quaisquer que sejam seus estados civis, o que representaria uma perspectiva bastante abrangente sobre quem tem direito de acesso ao serviço. A limitação, aqui, se faz a partir da postulação de “pessoa” enquanto aquela usuária do SUS, conforme expresso no PL 5634/05 (Anexo G), deixando de fora os que buscam o serviço no âmbito privado. Aprovada esta proposta de legislação, novamente vem à tona o questionamento, de como fica o procedimento de regulação e fiscalização dos mesmos serviços no setor privado?

As categorias vislumbradas nesta área temática não necessariamente são obtidas a partir de um mesmo texto, o que nos permite pensar também que diante da aprovação como lei, de algum dos materiais analisados, umas categorias estariam sendo legitimadas, em detrimento de outras. Se pegarmos apenas a primeira categoria como exemplo, teríamos já de

início bastante material para discussão, tendo-se em vista que aprovada uma legislação que destina à mulher o acesso, mas em seguida o restringe ao poder de decisão de um cônjuge, ainda que seja o corpo dela o objeto de intervenção, seria de fato este acesso igualitário? E ainda, que tipo de família estaria sendo legitimada a partir desta aprovação? Englobaria os modelos de família que compõem nossa sociedade contemporânea? Retornaria ao modelo nuclear de família? O que poderia ser inferido diante destes sentidos que saltam dos textos nesse tema? Estas poderiam ser as perguntas iniciais que o disposto nesta área temática nos permite vislumbrar.