• Nenhum resultado encontrado

1. TECENDO ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A TESSITURA DESTA

1.2. Enfocar Foucault

1.2.4. O Controle do Espaço, do Tempo e dos Corpos

1.2.4.3. O Controle dos Corpos

“Falar do corpo, se a palavra não for morta é falar de si próprio, é falar do próprio corpo, é expor-se, comprometer-se, é arriscar-se, descobrir-se e é convidar pessoas a se aventurar conosco neste desafio”.64

Sede de necessidades e de apetites, lugar de processos fisiológicos e de metabolismos, alvo de microorganismos os mais diversos, base biológica da existência implicada em processos históricos, emissor e receptor de signos e sinais, erógeno, flexível, interativo, partilhável, o corpo, nasce, cresce, envelhece, é feito de sentidos, é um olhar, um toque, um ruído, um cheiro ou um gesto que despertam memórias, sentimentos, desejos. É também o resultado do uso que os indivíduos fazem dele. Segundo Angel Vianna e Jacyan Castilho, o corpo é uma espécie de primeira casa do indivíduo e como tal deve ser ocupado da maneira como ele bem entende ou pode. O uso inadequado do corpo por um tempo prolongado o fará emitir sinais, soar alarmes de sobrecarga na forma de dores, tensões, indisposições. Rotinas de trabalho e inserções permanentes de poder acabam por reduzir os limites e possibilidades do corpo fazendo com que aos poucos ele se afaste de sutis percepções de prazer e de dor devido a seu embotamento, ao esquecimento delas se incorporando no corpo que acaba sendo “normalizado” a não ser apto a essas percepções. Mas o que rotiniza a vida é o poder disciplinar. No afã de dar conta das especificidades do cotidiano, as disciplinas padronizam comportamentos, gestos, atos, trabalhos a serem repetidos peremptoriamente de forma a poderem ser compreendidos, a possibilitar a construção de saberes objetivos sobre eles. Portanto, se as disciplinas são capazes de potencializar os

64 TRINDADE, Azoilda Loretto da. Do Corpo da Carência ao Corpo da Potência: Desafios da

corpos e a torná-los mais produtivos, isso se dá via uma incidência permanente sobre eles, uma microfísica do poder que está em constante movimento ao redor e através deles e de um controle do tempo e do espaço e dos usos que se pode fazer deles. Por outro lado, os corpos se vêem atrofiados em várias de suas aptidões: para o prazer, para a liberdade, para as rebeldias políticas e as reações contra esse poder.

A pesquisadora argentina Denise Najmanovich chama atenção para um certo dualismo reducionista que vem marcando as discussões sobre a corporalidade, onde as concepções mais comuns sobre o assunto dividem o conhecimento em compartimentos estanques “limitando o corporal ao biológico, o vivo ao físico e o físico ao mecânico. (...) Retalhado em ‘aparelhos’ e ‘sistemas’, isolado do seu meio nutriente, o corpo tornou-se antônimo de alma”. para ela:

“Aquilo que conseguimos pensar a respeito da corporalidade não é independente da nossa experiência corporal, e a nossa experiência nunca é puramente biológica. O que chamamos de experiência humana é algo que nos acontece e que decorre no âmbito social, que narramos a outros e a nós mesmos numa linguagem, algo que nos acontece no espaço/tempo em que nos é dado viver e que cobra sentido unicamente em função da nossa história sociocultural, a que assumimos como sujeitos capazes de produzir sentido. E é justamente o corpo o mediador desses processos, o lugar de afetação e o território desde onde atuamos. O corpo humano não é somente um corpo físico, nem pura e simplesmente uma máquina fisiológica; é um organismo vivo capaz de dar sentidos à experiência de si próprio: um sujeito corporificado – um corpo subjetivado”.65

A modernidade tende a pensar no corpo como algo aprisionado numa “pele/cápsula” com limites físicos e fronteiras e essa forma de encará-lo transmuta-se em limitações a sua existência e suas experiências. “Ele não pode ser pensado como um recipiente que nos contém, uma muralha que nos isola é o que se forma na vida, num devir no tempo que vai formando uma organização que leva, no corpo, sua história”.66 Delimitá-lo é inseri-lo em uma ordem, construir saber sobre ele mais para seu controle que para sua expansão plena. O corpo, assim como os saberes existentes a respeito dele,

65 NAJMANOCICH, Denise. Pensar/Viver a Corporalidade Para Além do Dualismo. In: GARCIA.

(org) op. cit. p 94.

é histórico, não existe desvinculado das vivências, crenças e experiências que transcorrem sempre num ambiente povoado de outros seres e entidades com os quais está profundamente entrelaçado. Ele é a condição indispensável da possibilidade de nosso ser no mundo, da nossa humanidade, da nossa animalidade também, da nossa sociabilidade. Participar da corporalidade implica necessariamente pertencer ao universo do limitado, que nos obriga tanto à matéria quanto à forma, nos restringe a elas, porém, e paradoxalmente, só a partir dessas restrições é que podemos aceder a uma infinidade de possibilidades.67

Numa abordagem fenomenológica, Merleau-Ponty também denuncia a tradição cartesiana de desprendimento do homem frente ao objeto, o que se agrava quando o objeto em questão é seu próprio corpo, que (para ele) vem equivocadamente sendo definido como “uma soma de partes sem interior e a alma como um ser presente inteiramente em si mesmo”. Para esse autor a noção da existência traz em si dois sentidos principais; existe-se como coisa ou como consciência. Paradoxalmente, no entanto, “a experiência do corpo próprio nos revela um modo de existência ambíguo”, as funções corporais estão unidas entre si e com o mundo exterior por relações de causalidade.

“O corpo não é, pois um objeto. (...) Não posso decompô- lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade é sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa além do que é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que liberdade, enraizado na natureza no momento mesmo em que se transforma pela cultura, nunca fechado sobre si mesmo, e nunca ultrapassado. Se se trata do corpo de outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, quer dizer retomar por minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele”.68

Também Maria de Fátima Costa de Paula denuncia a artificialidade dos discursos ditos “neutros” e fragmentadores do corpo humano que:

“(...) deixam de abordar o corpo em sua totalidade bio- psico-sócio-cultural, para reduzi-lo a um conjunto de

67 Ibidem p 99-100.

68 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos,

órgãos e sistemas isolados como se a totalidade pudesse ser reduzida à soma das partes. (...) o termo corpo (...) não se reduz ao corpo biológico, físico. Corpo aqui é entendido enquanto a própria realidade pessoal experienciada, enquanto o lugar a partir do qual é sentido e apreendido o mundo e de onde partem os movimentos de relação com o mesmo. (...) é profundamente marcado e modelado pela estrutura social da qual faz parte, (...) é suporte de signos, expressando uma determinada realidade social, histórica, econômica e cultural. (...) vai sendo construído e fabricado através das múltiplas relações que o homem estabelece em sociedade”.69

Além disso, corpos também têm suas cicatrizes visíveis ou não, suas marcas, seus inchaços, olheiras, feridas, arranhões e incompletudes. Têm fome, sede, preguiça, tesão. Há também, aquilo que Alfredo Veiga-Neto chama de “marcadores identitários”: “símbolos culturais que funcionam para diferenciar, agrupar, classificar, ordenar”, os quais são inscritos no corpo.

“É sobretudo no corpo que se tornam manifestas as marcas que nos posicionam: ser (ou não ser) baixo, negro, magro, loiro, deficiente etc.; ter (ou não ter) tal ou qual sexo, idade, língua etc.; partilhar (ou não partilhar) de tal ou qual costume, tradição, território, classe social etc. Essas marcas. Cujos significados nem são estáveis nem têm a mesma importância ou penetração relativa, combinam-se e recombinam-se permanentemente entre si e é principalmente no corpo que se tornam mais visíveis”.70

Outros marcadores identitários estão no vestuário e nos adereços utilizados na roupa ou diretamente no corpo: brincos, piercins, óculos, pulseiras, cordões, colares, tatuagens, maquiagens, etc.; as marcas mais propriamente físicas tais como a cor, a textura, o comprimento e o tipo de corte dos cabelos, a cor da pele, a gesticulação, a língua e o modo de falar, etc. Vale ressaltar que na sociedade disciplinar e de controle atual há diversos dispositivos e instituições (mídia, indústria cultural, escolarização de massa, etc) que trabalham para a todo momento criar novos marcadores identitários ou ressignificar os já existentes “reorientando constantemente os pertencimentos e os ‘usos’ que se podem fazer desses pertencimentos”. Para Foucault, a modernidade

69 PAULA. op. cit. pp 2, 3, 8, 9 e 10.

inventou ou passou a enfocar mais as diferentes identidades assumidas pelos indivíduos no decorrer do tempo como forma de classificar as normalidades e anormalidades.71

Apesar do corpo ter existência biológica no tempo ao longo do qual sofre degenerescências visíveis e invisíveis culminando na morte, limite da individualidade, isso não é o único determinante para as classificações etárias do corpo. Para Veiga- Neto, “além da dimensão biológica, existe uma outra dimensão, de natureza simbólica e representacional, em que se situariam os significados e sentidos que são atribuídos às diferentes idades”, apesar de a biologia, enquanto ciência classificatória e, portanto, útil ao poder disciplinar, ter buscado dividir e subdividir cronologicamente a existência corporal classificando e ordenando os mais diferentes atributos e características físicas, químicas e psicológicas, criando faixas etárias pelas quais os seres humanos devem passar durante a vida para serem considerados normais e para que “cada um aja disciplinadamente de acordo com o que se espera dos membros” de cada faixa etária. Ter essa ou aquela idade significa ter um conjunto de padrões de comportamentos que devem ser seguidos para manter a normalidade. A idade, portanto, captura, aprisiona e é meio de disciplinamento do corpo perpetuamente atravessado pelo poder.

Como o leitor pode perceber, há inúmeras maneiras de se pensar o corpo, múltiplos ângulos para enfocá-lo ou desfocá-lo. Visões muitas vezes contraditórias, outras complementares, outras ainda complementares exatamente por que contraditórias. A psicanalista Eliana Schueler Reis afirma com razão que “o corpo humano existe de diversas formas, segundo os diferentes saberes que o definem (...) e cada especialista vê um corpo preferencial”.72 Minha intenção ao trazer à tona algumas opiniões de diferentes autores foi mais ilustrativa que para definir uma posição, mesmo que indiciariamente seja possível perceber que preferi dar mais voz aquelas visões que tratam do assunto de forma menos dicotômica e têm o corpo como prenhe de multiplicidades.

Mas o que interessa realmente para os rumos deste trabalho é a discussão não do que é o corpo ou sua “essência”, mas sim sua relação com o poder, não ao poder coercitivo da violência direta e explicita, mas principalmente em relação aos poderes simbólicos, aos micropoderes foucaultianos. O corpo foi descoberto como alvo e mecanismo de poder, passível de manipulação, de treinamento e obediência a partir do que suas forças produtivas podem ser multiplicadas. Ou seja, o corpo está diretamente

71 FOUCAULT, Michel. Les Anormaux. apud VEIGA-NETO. ibidem. p 47. 72 REIS, Eliana Schueler. Pensando o Corpo no Feminino. In: Garcia. (org) op. cit.

mergulhado em um campo político, é atravessado permanentemente pelo poder que o atinge e fabrica, o marca, o sujeita, suplicia, exige-lhe sinais. Saberes que bucam tornar o corpo inteligível pretendem também torná-lo útil. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.73

Se, como diz Foucault, “em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”, o que há de novo então nos mecanismos de poder constituídos para incidirem sobre os corpos a partir do século XVIII? A resposta é dividida em três partes: 1) – a escala: a partir dessa época começa a se delinear uma preocupação infinitesimal sobre o corpo ativo, que passa a ser trabalhado detalhadamente, investido de uma coerção sem folga; 2) – o objeto do controle: a coação passa a incidir mais sobre as forças do corpo que sobre seus sinais, mais sobre a eficácia econômica de seus movimentos que sobre elementos do comportamento e linguagem; 3) – a modalidade: surge nessa época uma preocupação em desenvolver uma coerção ininterrupta, sobre os processos da atividade do corpo mais que sobre seus resultados, sendo exercida via um esquadrinhamento máximo do tempo e do espaço e a partir disso, dos movimentos.

Surgem as disciplinas como uma modalidade de poder específica, uma tecnologia política, uma economia dos corpos que “realiza a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”.74 Elas na verdade já existiam, por exemplo, nos monastérios, mas agora são diferentes daquelas porque têm por função realizar aumentos de utilidade mais do que renúncias. Essa nova anatomia política pretende ser uma arte do corpo humano capaz de torná-lo mais hábil, mais submisso e ao mesmo tempo obediente, útil e produtivo. Eis a constituição de um saber capaz de tornar o corpo suscetível de operações especificadas, capazes de afetar sua ordem, seu tempo, suas condições internas, seus elementos constituintes tornando-o alvo dos mecanismos do poder e oferecendo-o a novas formas de saber. No entanto, apesar desse desenvolvimento das disciplinas acontecer a partir do século XVIII, não é correto afirmar que ele se deu através de uma súbita descoberta. Houve:

“(...) uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de

73 FOUCAULT. Vigiar e punir. op. cit. p 126. 74 Ibidem. p 126.

aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar. Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro (...)”.75