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1. TECENDO ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A TESSITURA DESTA

1.2. Enfocar Foucault

1.2.5. O Olhar Sobre as Minúcias

A disciplina viabiliza seus processos de sujeição também a partir de toda uma técnica minimalista, infinitesimal, de observação dos pequenos detalhes, técnicas minuciosas e até íntimas. Para isso esquadrinha milimetricamente os espaços, os tempos e observa com “olhos de águia” e “faro” apuradíssimo o transitar e o relacionar dos corpos, os quais quanto mais inteligíveis forem mais úteis e dóceis podem se tornar. É esse o meio, aliás, que o poder tem para tentar capturar todas as diversidades do cotidiano. A disciplina precisa esquadrinhar, manipular e calcular detalhes, estar atenta a tudo, mapear, organizar, fragmentar para se inserir nos fragmentos e dominar. A disciplina precisa de um espaço seu, fabricado com “arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza”. Há toda uma “racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político” 76.

É assim, através da observação e da regulação daquilo que aparentemente tem pouca ou nenhuma importância, da intervenção em qualquer detalhe possível da vida e das relações cotidianas e do fazer essas intervenções aceitáveis, que se dá o disciplinamento dos corpos e a fabricação processual e ininterrupta de subjetividades submissas. Mas esse olhar sobre as capilaridades da existência, que Foucault identifica como tendo começado a se consolidar como método a partir dos séculos XVIII e XIX, pode ser relacionado com o modelo epistemológico que o historiador italiano Carlo Ginzburg chama de “paradigma indiciário”, que vem se tornando cada vez mais operante enquanto método de investigação e construção de saberes, mesmo que pouco teorizado.

Este autor cita vários exemplos de como tal paradigma foi utilizado: desde o crítico de arte italiano Morelli, que para descobrir se quadros eram falsos ou verdadeiros

75 Ibidem. pp 127-128. 76 Ibidem. p 128.

desenvolveu um método que ao invés de se basear em “características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros”, buscava observar os pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola que o pintor pertencia, tais como os lóbulos das orelhas, as unhas, dedos, etc. Esta forma de olhar para a arte foi identificada como tipicamente moderna, visto que buscava apreciar os pormenores de preferência à obra em seu conjunto. Sherlock Holmes, famoso investigador personagem criado por Anthur Conan Doyle é um outro exemplo, comparável com Morelli em função dos métodos que utiliza para desvendar os autores dos crimes a partir de indícios imperceptíveis para a maioria. Freud é outro que utilizou largamente esse paradigma epistemológico, por acreditar que pequenos gestos inconscientes podem ser fontes reveladoras de caráter mais que as atitudes formais, cuidadosamente preparadas pelos indivíduos. O criador da psicanálise inclusive cita Morelli assim: “o seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou ‘refugos’ da nossa observação”.77 para Ginzburg a leitura que Freud faz de Morelli o influencia profundamente na criação de um método interpretativo centrado nos resíduos, nos dados marginais, considerados reveladores, onde “pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ‘baixos’, forneciam a chave para acender aos produtos mais elevados do espírito humano”78.

Nos três casos, Morelli, Holmes e Freud apenas as pistas infinitesimais permitem captar realidades mais profundas, inatingíveis por outros meios. “Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli)”.

Mas como se explica essa convergência de métodos em áreas tão distintas? O que torna os três tão relacionáveis e que, aliás, me permite também relacioná-los com as análises de Foucault sobre o poder disciplinar? Resposta: a medicina. Freud era médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle foi médico antes de se tornar escritor. “nos três casos, entrevê-se a semiótica médica: a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes

77 GINZBURG, CARLO. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989. p 147.

irrelevantes aos olhos do leigo”. Para Foucault, a medicina enquanto ciência do corpo desenvolveu métodos e constituiu saberes que o poder disciplinar desenvolveu.

O interessante em Ginzbung é que ele conseguiu vislumbrar uma origem bastante longínqua desse olhar minucioso: nos primórdios da humanidade, quando ainda eram caçadores e coletores, os homens já farejavam, registravam, interpretavam e classificavam pistas infinitesimais como fios de barba, pelos de animais, pegadas, galhos quebrados, estrumes, cheiros, etc., e a partir delas remontavam a uma realidade complexa, descoberta através de pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelos observadores. Já o autor de Vigiar e Punir vê no ascetismo religioso e na teologia os precursores da incorporação do detalhe para controle político e assim o “olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito”.79

Vale ressaltar que o paradigma divinatório ou indiciário pode ser dirigido segundo as formas de saber tanto para o passado quanto para o presente e para o futuro. A medicina em seus diferentes ramos, a jurisprudência, a historiografia, a filologia, a psicologia, a pedagogia, são alguns dentre tantos exemplos de áreas do conhecimento que se valem de tal paradigma para se viabilizarem enquanto saberes e se realizarem enquanto poderes.

Em certo sentido esta dissertação pretende se apropriar desses métodos, desse paradigma indiciário e a partir deles perceber não só as relações cotidianas se dando processualmente e em rede, de forma “rizomática” deleuziana, como também e principalmente perceber como as disciplinas percebem tudo isso, projetar um olhar esmuiçante sobre o olhar esmiuçante do poder disciplinar. Eu que como tantos outros convivo num espaço escolar disciplinante (que será analisado em seus pormenores mais a frente), estarei olhando no olho do poder que me olha, analisando suas piscadelas e cochiladas e o que é possível realizar de liberdade nos ínfimos espaços e tempos em que elas acontecem.

O corpo, por exemplo, pode ser olhado como prenhe de indícios, como um poço de pistas que podem revelar em seus pormenores diversas características de como ele

vem sendo tratado pelo indivíduo que o possui, mas também pela sociedade onde está inserido e pelos poderes que o atravessam e o fabricam. O corpo fala!

“Fala através do volume do som da voz, dos tiques e cacoetes, do jeito de abaixar a cabeça, do nível do olhar voltado sempre para o chão, para a frente ou para o alto, do posicionamento da cabeça sobre os ombros, do jeito que estes se curvam ou se empinam (...). Fala através (...) da respiração ruidosa, (...) do tônus da pele, do brilho dos olhos, do balançar dos quadris, do sorriso e do choro. Mas fala não só de registros, não só de memórias, não só do que já passou. (...) fala de contínuas transformações que estão ocorrendo o tempo todo, exatamente por que consiste numa estrutura dinâmica”.80

Enfim, há mil e uma características mais ou menos visíveis que podem ser pensadas como pistas, indícios para a compreensão das circunstâncias que envolvem o corpo e a partir daí problematizar sua história.