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Controle social da organização e subjetividade humana

2.3 Vínculos entre Indivíduo e Organização

2.3.2 Controle social da organização e subjetividade humana

A subjetividade do indivíduo refere-se “à forma de construção da concepção ou percepção do real, que integra o domínio das atividades psíquicas, emocionais e afetivas do sujeito individual [...]” (FARIA; MENEGHETTI, 2007a, p. 46). A gestão da qualidade está localizada nos modelos de produção e gestão toyotista vinculados ao sistema de apropriação progressiva e constante dessas atividades. A subjetividade não está apenas localizada no próprio indivíduo, mas é também constituída por sua atuação com outros. Os vínculos grupais estabelecidos, os processos organizacio- nais a que se submete e a ideologia que o influencia têm importância na formação de sua subjetividade.

Para ser aceito nos espaços em que convive, o indivíduo passa a ceder de sua subjetividade para aliviar as tensões estabelecidas com outros. Nas relações de trabalho (que são também relações de poder e não apenas de produção, com

expectativas distintas de indivíduos, grupos e organização), o indivíduo passa a ceder de si para algo maior que ele — a organização —, tentando equalizar as forças que dominam e submetem, pela repressão progressiva e constante, desejos e expectativas individuais. Limita-se ao controle social da organização. Fragmenta sua subjetividade por se ver obrigado a abrir mão de sua autonomia em prol dos interesses do coletivo. Faria e Meneghetti (2007a, p. 49) conceituam subjetividade fragmentada como

[...] uma forma de “doação forçada” que o indivíduo faz de sua subjetividade para o coletivo, do que decorre um constante conflito entre o “desejo total” e o “desejo partilhado” deste indivíduo, através da cessão, para o coletivo, dos objetivos que o mesmo almeja só para si [...] é também a forma criada para que os indivíduos alcancem determinados objetivos particulares, sejam eles de natureza física, material ou psicológica, que os mesmos não alcançariam senão no plano coletivo.

O indivíduo renuncia à responsabilidade de decidir algo, de questionar o que se apresenta como verdadeiro, aguardando ser conduzido por alguém ou por uma norma ou por um modelo que gesta a satisfação de necessidades e desejos. É um processo passivo de identificação das necessidades individuais com as necessidades da organização. O indivíduo submisso dá como oferta à organização a sua subjetividade. A interiorização ou introjeção dos valores organizacionais como sendo os valores pessoais fragmenta a subjetividade do indivíduo porque as concepções e percepções da realidade passam a ser exercidas e controladas por um outro — a organização (FARIA; OLIVEIRA, 2007).

Uma subjetividade controlada pela organização precisa de um indivíduo que tenha uma consciência de si e dos outros dimensionada pelos valores da organização, modelando qual conduta terá no local de trabalho e nos grupos em que se insere. É um processo interior, intrínseco, estabelecido numa relação entre autoconceito, conhecimentos e práticas estabelecidos como importantes para o indivíduo sentir-se seguro na condição de conhecer-se. Entretanto, o processo de conhecer-se nunca se esgota porque não é possível a total compreensão das manifestações emocionais e racionais de si e porque são infindas as contradições expostas na realidade a serem percebidas e compreendidas pelo indivíduo. Essas circunstâncias implicam uma individualidade, uma relação social com outros ou instituída (organizacional) com significações diversas para além da percepção e compreensão que possa o indivíduo apreender da realidade que o cerca. Esse

processo está repleto de conflitos porque cada indivíduo percebe e compreende de forma diferente. Os vínculos de identidade estabelecidos por grupos ou promovidos pelas instituições desejam submeter os outros a sua compreensão de realidade (FARIA, 2007).

Essa subjetividade fragmentada é muito desejada pela organização. É um reconhecimento de que o indivíduo está comprometido com a organização. Mas é preciso estabelecer uma ordem que converta esse comprometimento sempre em vantagem para a organização. É necessário um conjunto de princípios e normas de conduta valorizados e seguidos por esses indivíduos nos seus modos de agir, de se portar, de viver, de conduzir-se. Essa é uma forma de condicionar, de vincular ao indivíduo como seu o que antes não era parte de si. É uma mudança de convicções pessoais, de crenças próprias. A aceitação desse condicionamento das convicções e crenças dos indivíduos apresenta uma séria contradição muitas vezes não percebida pelo indivíduo (SCHEIN, 1982). Assim, as angústias e experiências de trabalho relacionadas com a implementação da cultura da qualidade são mais suportáveis do que uma exclusão ou estranhamento de colegas em não desejar apoiar um modelo que só levará a organização à excelência. Não desejar uma associação identitária com essa experiência é algo não tolerado pelos grupos articulados com os processos de qualidade.

Desse modo, as organizações exercem um controle institucional sobre o indivíduo, um controle social pelos grupos articulados com a gestão da qualidade e um controle autoinferido que negocia de forma intrínseca, consciente ou não, sua subjetividade ao enredo da gestão excelente como via de realização pessoal. A gestão da qualidade é um modo imposto pela organização e apresentado como algo construído coletivamente (FARIA; OLIVEIRA, 2007).

O Modelo Gespública e suas relações com os modos racional-econômicos de gestão podem ser uma estratégia de apropriação da subjetividade do indivíduo por meio do vínculo formal. No modelo, a organização oferece vencimentos, benefícios (plano de saúde, vale alimentação), oportunidades (experiências de trabalho em processos diversos, processos de capacitação), progressão de carreira, condições de trabalho (local de trabalho, equipamentos, ambiente), autonomia e investimento no servidor. Nos modos de gestão social e da autorrealização são satisfeitas as necessidades psíquicas: valorização social, status de pertencer à organização,

segurança no emprego, respeito entre alta administração e subordinados, relacionamentos no trabalho baseados em princípios éticos, comprometimento com a organização, amor à organização, sentimento de família e sentimento de contribuir com algo importante — a missão organizacional.

Cabe acentuar que a investigação dos impactos do Gespública nas pessoas que trabalham numa instituição pública não pretendeu estabelecer como únicas as relações dilacerantes entre o modelo de gestão da qualidade e os indivíduos. As organizações podem ser vistas como local de realização pessoal, de fonte de prazer e mesmo mediadoras de saúde porque introduziram iniciativas de melhoria contínua de seus processos. São reconhecidas e amadas por seus trabalhadores (CHANLAT, 1996b). Entretanto, esta pesquisa procurou compreender a harmonia indivíduo/ organização defendida nos fundamentos e práticas do Modelo Gespública, considerando que a participação submissa, consciente ou não, de servidores públicos ao modelo, pode significar uma piora de sua satisfação e de seu comprometimento no trabalho.

A subjetividade de um indivíduo não pode ser encerrada nas práticas instituídas no campo da racionalidade. O Modelo Gespública pode ser uma oferenda à intensificação do trabalho e uma precarização das condições físicas e psicológicas de trabalho dos servidores públicos, alguns com sentimentos de inadequação ao modelo e ainda outros indiferentes ou integrados em algo que os realiza como indivíduos.

Uma metodologia que atenda à investigação do Modelo Gespública foi considerada nos capítulos seguintes.