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2.2 O Modelo de Gestão da Qualidade para a Administração Pública

2.2.2 O discurso do Modelo Gespública

O apelo das organizações para a participação dos indivíduos é reverberado por seus dirigentes. Eles são os primeiros que perseguem os objetivos da organização. Uma gestão participativa requer um “falar” constante sobre esses objetivos a todos que integram a organização para estimulá-los à participação. As palavras executam uma função administrativa e são utilizadas para relaxar ou tensionar o controle administrativo quando alguém ou um grupo não colabora. “Cada palavra expressa no ambiente organizacional está sendo monitorada e classificada” (FARIA; MENEGHETTI, 2007b, p. 119).

Os estudos e as pesquisas de Chanlat (1996b) sobre o indivíduo e as organizações evidenciaram uma compreensão da linguagem como veículo da informação por seus dirigentes. No decorrer do século XX, a progressiva atenção dedicada à linguagem nas ciências humanas e sociais favoreceu outras concepções de realidade e de natureza do conhecimento. A linguagem passa a ser instrumento para criar acontecimentos. É centrada nas relações do cotidiano. É uma forma de ação no mundo. Sendo a realidade construída nas práticas cotidianas, pode-se afirmar que a linguagem é um instrumento imprescindível para construí-la. É possibilidade de configurar a realidade porque é uma prática e, portanto, provoca efeitos. Tem como função empreender e executar ações e não somente descrever o mundo. Assim, a linguagem é compreendida como ação, é compreendida como prática (MELLO et al., 2007).

O discurso organizacional “pode criar uma dimensão capaz de estabelecer regras de comportamento, de condutas e de diálogos comuns [...] legitimado como padrão de conduta a ser adotado pela maioria” (FARIA; MENEGHETTI, 2007b, p. 121). O Modelo de Excelência em Gestão Pública (Modelo Gespública) é constituído por uma ideologia que expressa as ideias do poder público, agindo para convencer, impor ou estabelecer acordos com indivíduos e grupos.

A reforma da administração pública será executada em três dimensões: (1) uma dimensão institucional-legal, através da qual se modificam as leis e se criam ou modificam instituições; (2) uma dimensão cultural, baseada na mudança dos valores burocráticos para os gerenciais; e (3) uma dimensão

gestão. [...] a dimensão gestão será a mais difícil. Trata-se aqui de colocar em prática as novas idéias gerenciais e oferecer à sociedade um

serviço público efetivamente mais barato, melhor controlado, e com melhor qualidade (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 31-32, grifo nosso).

O Gespública utilizou o discurso das organizações corporativas como prática para “adaptar” o “estado da arte” da gestão das organizações capitalistas à administração pública.

Como primeira ação e tomando como parâmetro básico os critérios constantes no Prêmio Nacional de Qualidade, buscará adaptá-lo às especificidades da Administração Pública, para que analogamente ao sucedido em relação a iniciativa privada possa ser um instrumento propulsor do desenvolvimento das instituições públicas, através do aprimoramento do processo de gestão da qualidade (BRASIL, 1997, p. 24).

Esse discurso é encontrado na forma escrita (manuais da qualidade, da difusão da missão, da visão e dos valores da organização em documentos oficiais, expositores e locais de convivência), falada (facilitadores da qualidade, aqueles indivíduos mais articulados com as novas práticas e linguagem de um novo modelo de gestão; oficinas, encontros, seminários e reuniões) e nas imagens veiculadas internamente na organização (símbolos da qualidade, fotos de personalidades ilustres apresentadas na organização como apoiadores da qualidade etc.).

É um discurso que flui como convocação da organização ao indivíduo, sendo a gestão da qualidade o meio de produção e reprodução da prática discursiva. É, portanto, um discurso ideológico dos dirigentes que conclamam os indivíduos a construir uma realidade do trabalho perfeito, da qualidade total, da única verdadeira gestão. Mas o discurso da gestão da qualidade se prevalece do indivíduo com a roupagem de participativo e descentralizado. A prática da gestão da qualidade reforça a prioridade de condicionar os indivíduos de acordo com as exigências da organização. Faria e Oliveira (2007, p. 200) destacam que se vislumbra na gestão da qualidade

[...] mais que um programa, mais que um processo de produção industrial, um modismo com ares de “fim da história”, de unanimidade fenomenológica, que admite que qualquer nova teoria ou concepção, por melhor que seja, jamais poderá prescindir das virtudes da qualidade.

O discurso do Modelo Gespública é, a priori, o da organização perfeita. Os objetivos de aplicação do Gespública estão expostos em seus manuais.

O modelo de excelência em gestão pública deve orientar as organizações na busca da transformação gerencial [...] cujos fundamentos representam o

“estado da arte” em gestão [...] O Modelo de Excelência em Gestão Pública tem passado por aperfeiçoamentos contínuos com o propósito de acompanhar o “estado da arte” da gestão preconizado pelos modelos que lhe deram origem [...] (BRASIL, 2008/2009, p. 17).

O discurso do Modelo Gespública traz a “explicação ideal” do que significa gestão excelente com as palavras “estado da arte”. O que pode estar acontecendo aí é a construção de uma versão da realidade sobre a organização. A concepção da linguagem como amo do sujeito tem força maior num projeto assim. Os indivíduos e os grupos recebem o modelo de gestão como algo universalmente testado e aprovado. Como uma realidade ideal que existia em outro lugar e não se sabia disso. Como algo que a partir dali vai ressignificar todas as coisas, e como se o passado da organização tivesse sido uma grande alucinação. É uma versão negociada e construída da organização que tem efeitos no indivíduo (IBÁÑEZ, 2004). Esse discurso é uma prática que pode afetar e transformar o autoconceito das pessoas.

A linguagem como ação no cotidiano é uma abordagem que procura situar a compreensão da polifonia de vozes (pontos de vista diversos das pessoas). Pressupõe a articulação de três dimensões básicas: história, pessoa e linguagem. É por meio da linguagem que se dá sentido ao mundo e a si mesmo, sendo ela inerentemente dialógica (MENEGON, 2006). Os manuais, os termos de referência e os cadernos formativos do Gespública são textos de uma só voz. Há um sujeito contemplando uma coisa. O contemplador, nos manuais, é chamado de critério. Para exemplificar:

Critério Liderança – Esse critério examina a governança pública e a governabilidade da organização, incluindo aspectos relativos “a transparência, eqüidade, prestação de contas e responsabilidade corporati- va. Também examina como é exercida a liderança, incluindo temas como mudança cultural e implementação do sistema de gestão da organização. O Critério aborda a análise do desempenho da organização enfatizando a comparação com o desempenho de outras organizações e a avaliação do êxito das estratégias (BRASIL, 2008/2009, p. 27).

Não há um movimento, uma troca de enunciados, uma dinâmica de posicionamentos diversos. Só há um sentido. A palavra critério se reveste de um poder que esconde as intenções de alguém que domina o discurso (talvez daqueles que editoram o texto). É a institucionalização da organização que pergunta e nunca responde e do indivíduo que responde e nunca pergunta. É um estímulo para o

indivíduo permanecer em silêncio sem desejar perguntar, apenas ouvindo para responder, subordinando-se, moldando-se ao discurso do outro. O indivíduo participante “é falado por alguém, muito mais do que fala” (LACAN, 1966, p. 281 apud CHANLAT, 1996a, p. 138).

No Gespública também é de interesse da gestão ter “definidos e disponibilizados os canais de interlocução e a negociação com a força de trabalho da organização, quando pertinente” (BRASIL, 2008/2009, p. 48, grifo nosso). Se o relacionar-se com o outro acontece num processo imbricado com a complexidade do cotidiano, daí emergindo um diálogo, propor-se um modelo (molde) de gestão já aponta para o problema de não dar conta da complexidade que supõe estar atendendo porque estabelece um sentido prévio da organização entendido como modelo de qualidade, sendo disponibilizada a interlocução apenas quando pertinente à organização, o que não significa diálogo.

O discurso de que as organizações só terão um futuro pela inovação contínua de processos, orientada pela gestão da qualidade, nomeia as organizações de trabalho como organizações de aprendizagem (SENGE, 1990) com disciplinas e módulos conceituais promovedores dessa mudança de mentalidade dos indivíduos que ali trabalham. Também declara que a única vantagem competitiva sustentável das organizações é a capacidade de aprender mais rápido. Não é mais possível que apenas a gerência resolva e os demais sigam ordens. As melhores organizações do futuro deverão despertar o empenho e a capacidade de aprender das pessoas em todos os níveis da organização.

Senge (1990) garante que as organizações de trabalho são organizações de aprendizagem. A prática do diálogo é o centro do aprendizado: a capacidade de os membros de um grupo levantarem ideias e participarem de um raciocínio em grupo. Também consiste em aprender e reconhecer os padrões de interação que prejudicam o aprendizado em grupo. Para tanto, são elencadas “disciplinas” que os indivíduos deverão seguir para que suas organizações sejam organizações de aprendizagem. A disciplina chamada “Domínio Pessoal” tem como ensinamento o pressuposto de que as organizações só aprendem através de indivíduos que aprendem. O aprendizado individual não garante o aprendizado organizacional, mas sem ele não há como recorrer ao aprendizado organizacional. As organizações que pretendem criar objetivos comuns estimulam seus membros a desenvolver seus

objetivos pessoais. Quando um grupo de pessoas compartilha do objetivo da organização, cada uma delas participa da responsabilidade pelo todo, não apenas por sua parte. Os objetivos organizacionais podem ou não emanar da direção, mas é bastante frequente que emanem de objetivos pessoais de indivíduos que não ocupam cargos de autoridade e que atuam em vários níveis da empresa. O objetivo só passa a ser comum quando está ligado aos objetivos dos membros da organização e leva tempo para emergir como objetivo compartilhado.

As atitudes ensinadas pelas organizações de aprendizagem são engajamento e participação nos assuntos organizacionais (SENGE, 1990). Uma estrutura de organização de aprendizagem parece estar no discurso do Modelo Gespública porque estabelece “a formação de multiplicadores internos da qualidade na Administração Pública [...] a inclusão dos conceitos da qualidade nos conteúdos programáticos dos demais cursos ministrados a servidores públicos” (BRASIL, 1997, p. 25). Essa abordagem pode incorrer num “princípio de controle e coerção” ou mesmo “de interdição” (FOUCAULT, 2007) de outros discursos. A participação das pessoas é uma dimensão que está previamente modelada pelo Gespública.