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1.2 CONTROLES, PODER DISCIPLINAR E RECOMPENSAS: Uma análise no

1.2.1 Controles, denúncias e recompensas

Seria possível, a título de ilustração, propor a seguinte troca: em vez de pensar em controle, denúncias e recompensas, imagina-se, respectivamente, disciplina, vigia e sanção (positiva). Ora, essa provocação serve de ponto de partida, mesmo que talvez ainda não se vislumbre o paralelo existente. Por isso, cabe mencionar alguns elementos que estruturam essa aproximação de campos e de conceitos.

Sabendo-se do conceito do whistleblower, pode-se partir para a prática: em diversos países, há uma legislação específica para proteger esse sujeito denunciante e para recompensar sua ação, caso as informações prestadas por ele venham a apontar fraudes ou comportamentos ilícitos ou desviantes.56

                                                                                                                 

54 Cfr. artigo publicado pelo jornalista Michael KNIGGE para a Deutsche Welle (http:/www.dw.de/europeu-us-

take-different-approaches-to-whistle-blowing/a-5965148).

55 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Whistleblowing: una aproximación desde el Derecho penal. Madrid: Marcial

Pons, 2013. p. 33.

56 A título de exemplo, Estados Unidos, Reino Unido, Japão, África do Sul, Canadá e Austrália são países que

dispõem de legislação avançada a respeito da figura do whistleblower a fim de protegê-lo e de incentivar sua prática: Whistleblower Protection Enhancement Act of 2012 - WPEA (Estados Unidos); o Public Interest

Evidentemente, imerso na cultura pragmática da sociedade estadunidense, logo se previu uma farta recompensa financeira para o denunciante que prestar informações que gerem um processo em benefício do Estado.57 Além disso, a prática de whistleblowing se tornou objeto legislativo de diversos países seguindo o modelo norte-americano: o denunciante é digno de tutela e deve ser recompensado por sua ação, caso reste comprovado um benefício para o Estado, desde a prevenção de futuros delitos até a descoberta de fraudes ou crimes diversos.

Portanto, a proposta aqui é direcionar o olhar na base filosófica que está por detrás dessa estrutura, (re)pensar a questão do agente denunciante sob um viés criminológico, lançando as seguintes questões: até que ponto a conduta correta é a de realizar uma denúncia e até que medida uma sociedade livre tolera essa prática, tendo em vista que o conceito de delação remete a priori a regimes (ou práticas) autoritários?

O interessante dessa análise resta em pensar que poucas figuras são objeto de valorações sociais tão ambivalentes como a do denunciante. Nessa linha, assevera Ramon Ragués i Vallès:

Desde ciertas perspectivas el sujeto que pone en conocimiento de las autoridades las prácticas ilícitas que se cometen en su entorno suele ser visto como un auténtico traidor, especialmente en aquellos casos en los que dicho sujeto no ha sufrido ningún perjuicio propio a resultas de la actividad denunciada y actúa movido exclusivamente por la voluntad de promover el respeto a la legalidad o, peor aún, por un cierto ánimo de venganza o de obtener algún tipo de beneficio. Desde otro punto de vista, sin embargo, dichos sujetos pueden presentarse como un ejemplo de heroísmo y valentía, especialmente en aquellos casos en los que ponen en riesgo sus intereses personales — sus expectativas económicas y profesionales o, incluso, su seguridad personal — para salvar a su propia empresa, a terceras personas o a la sociedad en su conjunto de posibles daños ocasionados por la actuación ilícita de otros individuos o impedir la impunidad de éstos.58

De certa maneira, nesta análise parte-se do constante conflito entre os polos opostos: segurança vs. liberdade, o qual é regido por um permanente desequilíbrio. Como afirma Carlos Alberto Elbert:

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

Disclosures Act – PDA (África do Sul, 2000); o Public Servants Disclosure Protection Act – PSDPA (Canadá,

2005); o Public Service Code of Conduct (Austrália, 2009).

57 Por exemplo, a Lei Dodd-Frank (2010) prevê, a título de recompensa ao whistleblower, de 10% a 30% do

valor da multa aplicada em caso das informações prestadas pela denúncia sirvam para contribuir ou solucionar um processo. Conforme aborda-se minuciosamente na parte final da presente dissertação.  

58 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Whistleblowing: una aproximación desde el Derecho penal. Madrid: Marcial

Esse fator coloca o tema como prioritário nas discussões dos candidatos a ocupar cargos públicos, em especial durante campanhas eleitorais. Em muitas pesquisas de opinião, altas porcentagens de cidadãos de classe média privilegiam a segurança em relação à liberdade ou à democracia.59

É dizer, corre-se o risco de reincidir em erros passados quando, inseridos num sistema jurídico que declara estar baseado no respeito aos direitos e às liberdades humanas, vivenciou- se, gradualmente, o enclausuramento dessa sociedade.

Em uma dimensão jurídico-penal, os apelos à segurança de um lado e, de outro, a flexibilização dos direitos fundamentais conquistados, restam materializados de modo bastante emblemático: uma constante tensão entre a busca pela eficácia punitiva e a concretização das garantias constitucionalmente alcançadas com o advento do Estado democrático de Direito. Nessa mesma alinha, assevera Gabriel Ignacio Anitua:

A sociedade segmenta-se e diferencia-se. Os indivíduos, em crise quanto à própria identidade, não vacilam em desconfiar dos outros, por conta da insegurança ontológica e por conta também da insegurança material. A combinação de um aumento objetivo de delitos com um incremento no debate sobre as regras em si mesmas tem por resultado não somente uma mudança qualitativa na sociedade, mas também uma mudança no sistema de controle.60

Então, em outras palavras, optar por incentivar de maneira crescente as denúncias levadas a cabos por sujeitos tutelados e recompensados não aumentaria, por conseguinte, o controle da pessoa sobre a pessoa, aproximando-se do que já foi definido como vigilância, como controle social, como prelúdio de uma sociedade autoritária? Incorrendo naquilo que definiu com maestria a professora Vera Malaguti Batista quando apontou que “perdemos a mordida crítica que tínhamos contra o autoritarismo”?61

Ou, contrariamente, trata-se de um instrumento perfeitamente legítimo para lograr adequadamente que se respeitem a legalidade e as normas jurídicas ao mesmo tempo em que mantém um elevado nível de proteção dos citados direitos, das liberdades humanas e da convivência em sociedade?

Colocados alguns questionamentos, resta destacar a pergunta-guia que permeia todo o desenvolvimento inicial do trabalho a fim de aproximar esses campos: qual seria a valia de trazer conceitos desenvolvidos nos anos 1970, cuja análise se debruça especialmente sobre instituições totais e sobre o controle social através da pena carcerária?

                                                                                                                 

59 ELBERT, Carlos Alberto. Novo manual básico de criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,

p. 224

60 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 834. 61 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 101.

Há apenas abismos entre os conceitos que fundam o poder disciplinar e os conceitos que justificam, em uma sociedade de consumo, a possibilidade de todos indivíduos se tornarem informantes em potencial?