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2 DA EXPANSÃO DA FIGURA DO WHISTLEBLOWER: ANÁLISES

2.3 OS SISTEMAS DE DENÚNCIA: Whistleblowing interno e externo

2.3.1 Whistleblowing interno: sistemas de denúncia a partir do caso Enron

Em 2002, a whistleblower Sherron Watkins estampava, na condição de personalidade do ano, a capa da revista norte-americana Time ao lado de mais duas denunciantes, responsáveis, a sua vez, por revelarem os escândalos de Enron, WorldCom e FBI. 189 Antes disso, tratava-se apenas de uma funcionária de uma grande empresa, mas, acabou sendo a responsável por denunciar uma fraude contábil que deu cabo a uma das maiores concordatas da história corporativa dos Estados Unidos.190 Para apresentar seu caso brevemente, vale-se de seu próprio relato do desenrolar dos eventos.191

Atenta-se ao fato de que, nesse caso, houve, por parte da denunciante, uma tentativa de resolver internamente o problema da fraude na contabilidade da empresa. A funcionária optou, primeiramente, por levar as práticas ilícitas que descobrira aos seus superiores hierárquicos na empresa. Não obstante, as suas tentativas fracassaram e o que se viu foi o primeiro grande caso de whistleblowing interno no mundo corporativo estadunidense.

                                                                                                                 

188 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Whistleblowing: una aproximación desde el Derecho penal. Madrid: Marcial

Pons, 2013, p. 147.

189 PERSONS of the year 2002. Time, dez. 2002. Disponível em:

<http://content.time.com/time/specials/packages/0,28757,2022164,00.html>. Acesso em: 20 nov. 2016.

190 ENRON: perguntas e respostas. BBC Brasil, 30 jan. 2002. Disponível em:

<http://www.bbc.com/portuguese/economia/020128_esp_eronqa.shtml>. Acesso em: 20 nov. 2016.

191 WATKINS, Sherron. The Emperor’s new clothes: My Enron story. In: CALLAND, Richard; DEHN, Guy.

Antes de adentrar na sua narrativa, há de se destacar que esse caso foi um divisor de águas na postura legislativa dos Estados Unidos. In casu, estabelecida a crise advinda de um crime econômico de magnitude tal a levar a empresa à falência, sobreveio uma resposta legislativa que, a seu turno, foi um propulsor para diversas mudanças na proteção e no incentivo a denunciantes.

Findo o processo de falência da Enron, em decorrência de uma enorme fraude contábil, houve a edição da Sarbanes-Oxley Act (2002). Essa lei, dentre diversas medidas pretendidas, buscou coibir que os superiores hierárquicos se omitissem quando da denúncia de funcionários no âmbito interno da empresa.

A Enron foi uma enorme empresa do ramo da energia que chegou a lucrar U$ 101 bilhões ao ano e a contar com mais de 20.000 funcionários.192 No final de 2001, quando apresentou o resultado de seus rendimentos, revelou-se um enorme descompasso em sua contabilidade. Ato contínuo, os preços das suas ações despencaram e, depois desse anúncio, a

Securities Exchange Comission (SEC) — equivalente à Comissão de Valores Mobiliários

(CVM) — coordenou um processo de investigação para apurar os resultados da empresa. Ocorre que, antes de haver o anúncio formal dos resultados da empresa no mercado financeiro, houve diversas tentativas infrutíferas por parte da whistleblower de alertar seu superior hierárquico até culminar no ponto em que ela se viu obrigada a formalizar suas denúncias por meio de um memorando interno que, quando da fiscalização da SEC, foi crucial para investigação. Conforme narra Sherron Watkins:

Todos tentaram me convencer de que minha análise estava errada e de que eu estava errada. Eles se perguntavam como é que um dos melhores escritórios de advocacia do estado e uma das melhores empresas de contabilidade do país poderiam ter deixado passar os problemas que eu apontava. Eu comecei a me sentir vulnerável e alienada na medida em que meus colegas começaram a me evitar. As pessoas agiam como se eu quisesse destruir a empresa. No entanto, era exatamente esse medo, o conhecimento de que vinte mil empregados e muitos mais acionistas perderiam tudo se a Enron entrasse em colapso, fora isso que me tinha me impedido de ir diretamente a SEC ou a mídia em primeiro lugar. 193194

                                                                                                                 

192 WATKINS, Sherron. The Emperor’s new clothes: My Enron story. In: CALLAND, Richard; DEHN, Guy.

Whistleblowing around the world: Law, Culture and Practice. London: ODAC, 2004, p. 65.

193 WATKINS, Sherron. The Emperor’s new clothes: My Enron story. In: CALLAND, Richard; DEHN, Guy.

Whistleblowing around the world: Law, Culture and Practice. London: ODAC, 2004, p. 69, tradução nossa.

194 “Everyone tried to convince me that my analysis was wrong, that I was wrong. They would ask how could one

of the state’s best law firms and on of the country’s best accounting firms have missed all of the problems? I began to feel vulnerable and alienated as my colleagues began avoiding me. People acted as though I wanted to tear down the company. However, it was that very fear, the knowledge of the 20 000 employees and many more

Importante salientar que ela cumpriu à risca com os requisitos para se enquadrar na figura de denunciante ora estudada. Aliás, consiste em um exemplo ideal de whistleblowing interno. Mesmo que a sua denúncia tenha sido malsucedida, pois seu superior hierárquico fez “vista grossa”, ocorre que, na condição de funcionária, ela levou ao conhecimento de sua autoridade — no âmbito da empresa — as práticas ilícitas que descobrira. Além disso, conforme destacado acima, a whistleblower adotou essa decisão, pois acreditava que seria mais benéfica à empresa do que ir diretamente a autoridades externas ou à mídia.

Nota-se que a Sarbanes-Oxley Act apostou em sistemas de denúncia interna, isto é, não trouxe previsão de proteger aqueles denunciantes que decidiram ir diretamente para os meios de comunicação. Essa legislação outorgou status de whistleblower tão somente àqueles que optavam, primeiramente, por levar as irregularidades para o canal de denúncia da empresa.

Desde então, a evolução legislativa estadunidense — país que é referência no assunto — seguiu sendo substancial. Com os desdobramentos da crise econômica de 2008, deu-se o advento da Dodd-Frank Act (2010), lei que previu uma reforma do setor financeiro a fim de proteger os consumidores (Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act). Tratou-se, em linhas gerais, de uma reforma financeira prevendo responsabilização e regulamentação para os operadores financeiros de Wall Street.

Importa destacar que tal legislação foi um marco legislativo, pois definiu a incorporação do whistleblower enquanto mecanismo efetivo de denúncia de ilícitos, além de proibir expressamente qualquer meio de retaliação aos denunciantes, ao estabelecer uma causa de ação privada em caso de dispensa ou de discriminação por parte dos empregadores.

Seguindo a tradição da legislação estadunidense no que tange ao incentivo ao

whistleblowing, está previsto na Secção 922 da Dodd-Frank Act que a Securities Exchange Comission (SEC) pagará recompensas aos denunciantes que, voluntariamente, fornecerem

informações originais que levem a um processo bem sucedido. Por óbvio, o cumprimento das normas para se qualificar a um prêmio, visto que essa legislação define, além de um procedimento específico, condições e requisitos para o whistleblower pleitear o pagamento de recompensa pelas informações alcançadas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

stock-holders that would lose if Enron collapsed suddenly, that had kept me from going either to the Securities Exchange Commission or the media in the first place”.

No curso do processo instaurado pela SEC a partir de uma denúncia, se as sanções monetárias impostas a quem infringiu a lei forem superiores a um milhão de dólares, o valor do prêmio deverá estar entre 10% e 30% das sanções monetárias coletadas. É dizer que a base de cálculo para a recompensa é o valor da multa aplicada contra quem cometia o ilícito.195