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4.2 A SOCIEDADE DE EDUCAÇÃO CRISTÃ/FUNDAÇÃO EDUCACIONAL

4.2.1 Convênios e doações destinados à Sociedade de Educação

A maioria dos convênios realizados pela SEC foram firmados com instituições públicas. A partir da análise destes, pode-se identificar uma prática de parcerias público-privadas e que, durante o projeto educativo mantido pela SEC, retrataram significativa sustentação de uma relação direta entre o Estado e a Igreja Católica. Nesse sentido, os convênios podem ser considerados uma

183 consolidação da relação de interdependência entre essas instituições, pois que viabilizaram de forma expressiva o funcionamento escolar.

Uma instituição particular que realizou convênio com a SEC foi o Serviço Social da Indústria (SESI), este realizado durante os longos anos de 1953 até 1973, haja vista que a professora Rachel havia solicitado para a entidade uma Clínica Infantil. Cabe frisar que o início deste convênio é incerto, tendo em vista imprecisão nas datas, podendo inclusive ser anterior a 1953. Desse modo, firmou-se, entre as partes, um convênio cujo teor garantia ao SESI um local gratuito para seu funcionamento.

Figura 11: Foto do antigo local de funcionamento do Sesi junto às instituições mantidas pela SEC. Jul.1967.

Fonte: Acervo da EEMIC.

O SESI mantinha no local uma clínica de pediatria, um gabinete dentário, um serviço de enfermagem e um posto de venda de medicamentos (Figura 11). As despesas e manutenção desses serviços eram contratadas e mantidas pelo SESI, bem como o pagamento de luz e água. Os atendimentos seriam preferenciais aos sesianos e seus familiares, e atenderiam também a A Minha

184 Casa Rural e ao Grupo Escolar Santo Antônio “durante 1/5 do horário de trabalho de cada serviço ou 20% da frequência média mensal, embora não sesianos” (BLANCO, 1959a; 1959b).

Um outro convênio foi realizado em 1955 entre a SEC e a Secretaria de Educação e Cultura do estado do RS para “fins de funcionamento em A Minha Casa Rural, no bairro Três Vendas, em Pelotas, de uma Escola Normal Regional sob a denominação de “Imaculada Conceição” (SOCIEDADE..., 1955f). A partir deste documento, há o entendimento sobre como ocorria o funcionamento e a manutenção do sistema privado e sua relação com o governo estadual, o que demonstra que, desde seu princípio, a ENRIC contou com auxílio estatal, fato que não ocorreu somente com a ENRIC, mas fazia parte de uma ampla política do estado rio-grandense.

Havia uma série de regras que regulamentavam esses convênios. No caso do convênio realizado em 1955, cabia ao governo a responsabilidade de realizar inspeção frequente e manter dois professores fiscais para o ensino de disciplina de preparação profissional e para orientação e fiscalização dos trabalhos escolares. Ao mesmo tempo, o poder público estadual assegurava à escola o direito de conservar sua orientação religiosa, reservando à direção solicitar substituição dos professores designados pela Secretaria de Educação e Cultura, caso prejudicassem essa concessão. O Estado contribuiria com a escola anualmente de acordo com o número de alunas gratuitas e de acordo com o custo de alunas internas ou externas cobradas pelo estabelecimento. No primeiro ano de funcionamento, a ENRIC receberia um auxílio de Cr$ 50.000,00 independentemente de qualquer outro que venha a receber para organização e instalação do curso (SOCIEDADE..., 1955f).

À SEC cabia a responsabilidade de cumprir o que era determinado pela Secretaria de Educação e Cultura: designar professores brasileiros natos para as cadeiras de Português, História, e Geografia do Brasil; dispor para o Estado de 5 matrículas gratuitas, sendo 2 no internato e que se manteriam até o final do curso e seriam indicadas pela Secretaria de Educação e Cultura; cuidar para que o número de alunas gratuitas para o ano de 1955 fosse de, no máximo, 10 internas e 20 externas, devendo ser aumentado nos 3 primeiros anos em progressão aritmética para que fosse igual a 50% de matrículas gratuitas. Anualmente, far-se-ia a revisão desses números (SOCIEDADE..., 1955f). Essa

185 revisão, de fato, era realizada, haja vista que correspondências escolares frequentemente solicitavam alterações e aumento do número das alunas bolsistas. Em 1964, eram em número de 40 internas. Foi solicitado passar para 60. As externas eram 20, sendo solicitado passar para 30. Noutra correspondência, já aparecia a sugestão de aumento do número de bolsistas e verbas, passando para 80 alunas no total e para o valor “per capita” de Cr$100.000,00 anuais para as internas e Cr$20,000,00 para as externas (DIRETORA..., s/d).

Esse convênio remete a questões mais gerais sobre a manutenção de Escolas Normais Regionais no RS. Segundo consta nos Boletins de Educação Rural, outras instituições semelhantes mantiveram assistência por parte do governo estadual. A E.N.R Murialdo, de Ana Rech, mantida pela ordem dos padres Josefinos de Murialdo, também recebia esse auxílio. Em 1956, o Boletim de Educação Rural publicava a minuta do convênio entre essas duas instituições redigida quase integralmente igual ao convênio realizado entre o estado do RS e a ENRIC. Nos convênios, além de o governo ajudar com o valor por aluno, também enviava professores (BARATA; SCHIAVO, 1956). Na mesma edição do Boletim, confirma-se que existiam 60 alunas bolsistas na E. N. R Santa Gema Galgani, em Sarandi (RELAÇÃO..., 1956) e também com a E. N. R. Maria Auxiliadora, de Gaurama. No ano de 1958, o estado distribuiu 409 bolsas de estudo (ENSINO..., 1958). Pela reprodução de convênios semelhantes entre duas instituições, percebe-se que, de modo geral, as regras que regeram o convênio da SEC serviam também para outras instituições, quando os contratos eram estabelecidos. Werle (2016, p. 7) menciona que “a política de formação de professores com estas especificidades era concedida à iniciativa particular e apenas apoiada por meio de convênios que possibilitavam bolsas de estudos a alunos internos” por conta do governo do RS.

Não é demais lembrar que, para que as instituições privadas se consagrassem, houve muitos tensionamentos entre os defensores do ensino público e privado, muitos dos quais continuam atuais76. Ressalto que a palavra

“público” apresenta diversos sinônimos como “fora do âmbito da família”; “relativo ou destinado ao povo”; “pertencente ao Estado”; “que é do uso de todos”;

76 Esses tensionamentos históricos não serão abordados neste estudo, sendo, de alguma forma,

186 “público de algum evento em geral”. A palavra “privado” apresenta o significado “de privação, carente de algo”. Como afirma Pinheiro (2005, p. 257):

Todavia, esses dois sentidos da dicotomia nem sempre são coincidentes. O público identificado ao Estado nem sempre é aberto a todos. Da mesma maneira, o privado não é necessariamente fechado ao público. [...] Agregado ao significado de público como o que se passa fora da família e cujo centro é a cidade, surgiu com a constituição da sociedade moderna uma outra conotação de público, relacionado ao poder público, que é o Estado. Com este conteúdo, o público é uma categoria histórica própria desta sociedade e quer dizer poder público. A esfera pública neste sentido corresponde a esfera de competência do poder público. Como poder público, o Estado tem a tarefa de promover o bem comum entre todos os cidadãos. Nesta acepção estrita, público tornou-se sinônimo de estatal.

Segundo Severino (2005, p.32), “a Proclamação da República, em que pesem seus alegados fundamentos positivistas, não significou a marca de uma ruptura inovadora na política educacional” que, no período colonial e imperial esteve predominantemente ao domínio da Igreja. A partir de 1930, o Estado se consolidou na implantação do sistema público de ensino, não sem conflitos e resistências por parte da Igreja. Entretanto, a partir da LDB de 1946, firmou-se um “compromisso, no âmbito da política educacional, entre católicos e liberais. Esse conflito acaba levando a Igreja a posicionar-se favoravelmente a um modelo privado de gestão educacional” (SEVERINO, 2005, p. 33) cujos argumentos invocavam o princípio da liberdade para que pudessem administrar uma escola. O Estado colocou-se progressivamente como um agente fiscalizador da iniciativa privada que, em outro sentido, foi vista como um serviço de todos e, portanto, público (CURY, 2005). Este fato podemos perceber neste estudo nos convênios aqui estabelecidos que, apesar de fazer concessões de cunho religioso e financeiro, o poder público fiscalizava o teor educativo, de modo que os princípios da educação rural fossem pertinentes à ideologia estatal.

O convênio realizado em 1955 entre a SEC e o governo estadual retratou as relações entre a Igreja e o estado rio-grandense ao longo da história da educação. Aqui, pode-se identificar a impregnação de valores cristãos (o Estado respeitava a orientação religiosa presente naquelas instituições) e nacionalistas (a SEC respeitava a orientação enviada pelo estado do RS para o contrato dos docentes, fruto do pacto realizado pelos convênios estabelecidos). De fato,

187 Tambara (2005, p.15) afirma que

ao final da República Velha o que se observa é que a Igreja Católica conseguiu retomar seu papel hegemônico no processo de formação ideológica, apesar do caracterizado papel de coadjuvante no aspecto político. Ademais, evidencia-se que este processo ocorreu, em grande monta, através do domínio do aparelho ideológico escolar pela Igreja.

No que tange às políticas para formação rural, cabe ressaltar que, além de agente fiscalizador, os convênios analisados demonstram o caráter financiador do estado. Esse financiamento não ocorria somente através do pagamento dos bolsistas, mas também através da ajuda para acumulação de bens, que na realidade, seriam privados. Veja-se este convênio: “termo de convênio especial fundado entre o Ministério da Educação e Cultura e a Fundação Educacional Rural Cristã de Pelotas, estado do RS, para obras e equipamentos de escola no referido município” (RIO GRANDE DO SUL, 1964). Desse modo, o estado do RS contribuiria com Cr$5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros) para manutenção da referida fundação.

Neste outro caso, em 1954:

Após serem lavrados 3 decretos para a Sociedade de Educação Cristã, foram pagos os CR$100 mil e dispensado o imposto intervivas para compra do terreno do Sr. Hidro Alves Ferreira. O Departamento Nacional da Criança nos auxiliou com CR$50.000,00; prometendo auxílio maior para a manutenção de A Minha Casa Rural (SOCIEDADE..., 1954a).

O ano de 1954 foi profícuo em auxílios financeiros, pois outra verba foi disponibilizada pelo Departamento Nacional da Criança no valor de Cr$150.000,00 (SOCIEDADE..., 1954c) 77. Assim, retoma-se aqui o caráter dos

conceitos públicos e privados na história da educação, de modo que instituições de caráter privado como as mantidas pela SEC mantêm-se, em grande parte, com verbas públicas.

Noutro momento, verifica-se que há mais verbas públicas para a manutenção da Escola Normal Regional:

77 O Departamento Nacional da Criança foi criado pelo Decreto-Lei n.2024, em 17 de fev. de

1940 pelo presidente Getúlio Vargas com o objetivo de “coordenar todas as atividades nacionais relativas a proteção à maternidade, à infância e à adolescência” (ARTIGO 5º). Em cada estado deveria haver “uma repartição central especialmente destinada à direção das atividades concernentes à proteção, à maternidade, à infância e à adolescência. Esta repartição manterá permanente entendimento com o Departamento Nacional da Criança” (ARTIGO 10º).

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Voltou de PoA a Sra. Presidente onde foi falar com o Sr. governador do Estado, Dr. Ildo Meneghetti, para conseguir que fossem pagos os auxílios de assistência social, atribuídos à Sociedade de Educação Cristã relativo ao ano de 1957. Recebida pelo Sr. governador obteve um cartão de apresentação ao Sr. Secretário da Fazenda, em que pedia sua reinvindicação de pagamento de verba a Sociedade de Educação Cristã, fosse levada em consideração por se tratar de uma obra de grande mérito e que se achava em grande dificuldade financeira. Trouxe, D. Rachel a ordem de pagamento para a Exatoria de Pelotas – no valor de 300 mil cruzeiros, que veio desafogar a nossa grande apreensão (SOCIEDADE...,1957a).

Para Severino (2005, p. 36) o Estado é “uma instituição que, apesar de estatal, não é efetivamente pública, é autenticamente privada, apesar de custeada com o sangue e o suor do trabalho realizado pelo conjunto da sociedade civil”. Porém, expressa as relações e manutenção de um direito que, em nome do bem comum, aqui justificado pela formação de moças da zona rural, ajudou a acumular os ditos bens para a SEC, uma entidade privada.

No que tange à busca por verbas para a SEC, geralmente a professora Rachel viajava a Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo para que fossem assinados e assim concretizados os financiamentos. Em alguns documentos, havia referência de que a professora Rachel era a pessoa mais indicada para ir assinar estes convênios, haja vista os bons relacionamentos que a professora mantinha, como era o caso de suas articulações com o diretor do Departamento Nacional da Criança, Orlando Seabra Lopes.

Cabe ressaltar que outras instituições no estado do RS também recebiam verbas dos mesmos organismos que financiavam a SEC. Zimmermann; Cunha (2002) referem que, em 1954, a Escola Especial Antônio Francisco Lisboa, localizada em Santa Maria-RS, “recebeu verbas e professores do estado, por meio da Secretaria de Educação e Cultura, do Departamento Nacional da Criança e da Legião Brasileira de Assistência – LBA” o que demonstra ser esta uma prática usual desses órgãos, não atinente somente à SEC.

A narrativa da vice-diretora Camila T. (2016) destaca outro importante fator nas relações que sustentaram o financiamento da SEC:

A irmã dela [refere-se a Rachel] Sylvia Melo, foi Delegada da Educação, então ela tinha uma relação muito íntima com o Estado e

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também com o Município; ela conseguia doações também do Estado e também do Município; professores cedidos foi a base da escola.

Doações locais também contribuíram para as obras da SEC, como a de um terreno doado por parte do médico “Dr. José Veloso” destinado à Mitra Diocesana (SOCIEDADE..., 1940a), fato que rendeu disputas entre Rachel e o bispo Dom Antônio Zattera, como veremos a seguir78.

O repasse do material da demolição, retirado do casarão do Coronel Pedro Osório, para a construção da ENRIC foi outro fato frequentemente relatado nas narrativas e nos documentos escritos79. “Segundo cálculos dos

entendidos em construção, retiraremos aproximadamente cem milheiros de ótimos tijolos e quinze milheiros e boas telhas, não falando do restante do material que de lá sairá” (SOCIEDADE..., 1955b)80.

O sobrinho de Rachel Mello, Renato V. (2015) relata que a ENRIC havia sido construída com “parte do antigo banco pelotense, aquelas grades de bronze, tudo ela [refere-se a Rachel] conseguiu quando eles fizeram a reforma, ela conseguiu a doação daquele material, e outra parte era de um casarão onde hoje é a escola Coronel Pedro Osório”81. Suzete M. (2017), ex-professora e ex-

diretora do Santo Antônio, também lembra que, neste local, o casarão do Coronel Pedro Osório, funcionou a Escola Assis Brasil, que, ao ser demolida, teve parte de seus materiais doados à SEC82.

[...] Ali na Osório....eu fui aluna do Assis Brasil ali. Depois quando o Assis Brasil ganhou o prédio novo, grande e tudo, que nós fizemos uma marcha até o colégio novo, tudo. Antes ali era uma casa de família. O prédio não era nem sobrado nem nada [...]. E quando o Assis Brasil passou para lá [...]..e quando desmancharam essa casa para fazer um

78 O sanatório Veloso era uma instituição que atendia à comunidade pelotense e ficava situada

no bairro Três Vendas, localizada ao lado das instituições mantidas pela SEC. O sanatório e o médico José Veloso são lembrados frequentemente nas narrativas das ex-alunas da ENRIC bem como aparece em boa parte de documentos da SEC.

79 O Cel. Pedro Osório foi destacado charqueador e arrozeiro pelotense cuja família se consagrou

na política e economia da cidade.

80 Relembro que, devido ao fato de ter realizado entrevistas que não tiveram por base a

metodologia da História Oral, conforme já afirmado no capítulo 1, utilizo a palavra “entrevista” para dados escritos e “narradores”, “depoentes” e “colaboradores” para referir-me aos dados das entrevistas cuja metodologia de História Oral foi utilizada.

81 Segundo Osório (1962, p. 231), o Banco Pelotense foi fundado em Pelotas em 5 de fevereiro

de 1906. “A inauguração do majestoso edifício próprio realizou-se a 5 de fevereiro de 1916” e fechado em 1931.

82 Segundo Mesquita (2007), a Escola Complementar Assis Brasil funcionou neste casarão de

1933 a 1941. Segundo Relatório da ENRIC de 1956, quando recebeu as doações do desmonte desse Casarão, ali já funcionava o Grupo Escolar Coronel Pedro Osório.

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colégio grande, o “Pedro Osório”, a dona Rachel conseguiu o material todo que saiu dali e aí é que ela começou a construção da Imaculada Conceição, foi mais ou menos assim... (Suzete M., 2017).

O prédio que foi doado pela família para construir o Grupo Escolar, hoje Escola Estadual de Ensino Médio Coronel Pedro Osório, permanece até hoje na rua Osório, localizada no centro de Pelotas. Em ata, refere que o prédio do Cel. Pedro Osório foi dado ao Estado pelos seus herdeiros para edificar o Grupo Escolar, tendo com patrono Cel. Pedro Osório (SOCIEDADE..., 1956a). Importante destacar que a ENRIC data sua criação de ano anterior a esta doação, porém, apesar de as obras para esta escola terem iniciado em 1955, não haviam sido concluídas ainda, continuando sua construção quando doados materiais do “Casarão Pedro Osório”.

Acredita-se que, a partir do exposto, foram esclarecidas questões atinentes à formação e manutenção da SEC, o que, ao mesmo tempo, revelou a importância da professora Rachel Mello, uma vez que ajudou a viabilizar um projeto educativo pensado pelo Estado e pela Igreja Católica.

4.3. A SENHORINHA RACHEL MELLO: MEDIADORA CULTURAL DE UM