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Os mapas da alma não têm fronteiras Eduardo Galeano

1 CONVITE A UMA VIAGEM Khilá!

Quando criança eu viajava muito, embora nunca tenha saído do lugar onde nasci. E a primeira viagem, diferente das que fizeram muitas crianças do mundo inteiro, não foi “pela estrada afora, levar os doces para a vovozinha”. Porém, me lembro que na minha primeira viagem também havia um cesto.

Acredito que todos saibam como essa história começa11. Todos sabem do cesto de junco revestido de piche e de um bebê que ali encontra um segundo berço às margens do rio. Todos sabem também que a princesa Termutis, filha de faraó, descia ao rio para tomar banho com suas criadas, no exato momento em que o bebê descia. Todos sabem que uma criança nasceu em algum lugar, mas que teve de deixar a casa dos pais às pressas. Quando a princesa a olhou, viu que era um menino. Um menino hebreu. Ao menino foi lhe dado um nome próprio, porque um nome, na tradição do menino, significa lugar. Um nome ou lugar que é o resumo de toda essa história: Moisés: aquele-que-foi- tirado-das-águas. Recebendo o nome de sua história, ele recebe “um nome que nomeia a paixão de um olhar, a paixão de ver e seu objeto; sua recompensa, esse nome.”12

É a narrativa do Pentateuco13 que nos apresenta Moisés ou “o- retirado-das-águas,” cuja história cada um pode ler à sua maneira no Êxodo. O Êxodo pode suscitar muitas perguntas, sobretudo porque constitui uma história de muitos segredos e traz como pano de fundo aquilo que afirma Wladimir Krysinki: “O deslocamento moldou o mundo e a humanidade”.

Talvez a explicação esteja no livro anterior ao Êxodo: o Gênesis. Neste, está aquela história tão breve mas de uma força tamanha: “E disse Deus: faça-se a luz. E foi feita a luz”.14 Alguém escreveu essas palavras, ou melhor, mais do que uma escrita, esta é uma criação. Mas o que significa criar? No hebraico: Bereshit Bara Elohim traduz-se: e

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Em língua changana, khilá é uma interjeição que indica o arranque de uma melodia, uma canção.

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Pedindo licença a Louis Marin e sua narrativa tão inspiradora.

12

Marin (2000, p.168).

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Pentateuco, sob a interpretação judaico-cristã, refere-se aos cinco livros da Bíblia escritos por Moisés, também chamados de cinco livros da lei.

14

Deus criou o mundo/E Deus foi de um lugar a outro.15 O que significa que criar, assim como viajar, significa: ir de um lugar ao outro.

Assim, o que não se pode ignorar é a recompensa ou a frustração do olhar que todo o deslocamento provoca para que possa surgir a criação. Uma entrega e escuta sem mediação e consciência, à maneira de Miriã, a irmã do menino Moisés, que estava a olhar a distância e exatamente por isso, conseguiu intervir no olhar da princesa para fazer- lhe a pergunta: “Quer que eu vá procurar entre as mulheres dos hebreus uma ama para amamentar esse bebê?” Mas que também faz o leitor/ouvinte perguntar: o que a voz dessa menina esconde?

Dos segredos que todo deslocamento esconde, há significativos registros nas diferentes formas de testemunhos de viagens deixados pela humanidade ao longo dos tempos; um deles, e o que interessa a este trabalho, é a literatura. Porque “há na literatura, no segredo exemplar da literatura, uma chance de se dizer tudo sem tocar no segredo.”16

É assim que chego ao que pretende a viagem ou pretendem as muitas viagens que caracterizam a escrita desta tese, uma vez que a caminhada vem de algum tempo.

Para isso, preciso lembrar do percurso acadêmico que a antecede , aquele que se iniciou lá no mestrado em que busquei compreender, através da pesquisa bibliográfica o conceito de voz humana em diversos campos teóricos. Uma viagem que procurava saber como o sujeito se constitui. Na época, por estar trabalhando na Secretaria de Educação de Joinville, seguindo a sugestão de autores do campo da análise do discurso, examinei a voz como discurso no documento “Normas para a Escolha do Professor Alfabetizador”, que naquele momento a Secretaria de Educação vinha utilizando com o objetivo de selecionar os professores que poderiam atuar na 1ª. série do Ensino Fundamental. A análise de cada item dava visibilidade a um conjunto de critérios que, de certa forma, procurava normatizar a voz do/a alfabetizador/a como se para o exercício da sua profissão o saber científico estivesse desconectado do seu ser. A dissertação “(Re)encontrando a Voz Onde Ela Está”17 foi uma tentativa de compreender que o humano opera em uma linha dupla: saber e ser.

Tal constatação, de alguma maneira, é a que move esta tese, que parte de algumas questões que ficaram em aberto no mestrado e das

15 Steinsaltz (1989, p. 46). 16 Derrida (1995, p. 49). 17

SOUZA, Roselete Fagundes de Aviz. (Re)encontrando a voz onde ela está: (des)encantos no ser professor. Itajaí: Univali, 2005.

perguntas que se colocaram na experiência de viagem no doutorado. Dentre elas duas ainda me causavam mais inquietações. Tendo como ponto de partida a voz humana: de que voz se trata? Como é que se pensa a escuta quando pensamos na voz?

Dessa forma, se em um primeiro momento ganhou destaque na pesquisa o modo como a voz se mostra no discurso de um documento em que um conjunto de critérios procura normatizar a voz do/a professor/a, agora se trata de desdobrar a voz em uma proposta transdisciplinar, na qual viagem e literatura se colocam como instrumento de estudo para que seja investigada a questão da voz que (não) é também escuta, silêncio, presença, experiência, música, transmissão e memória.

A vontade de continuar com Paul Zumthor, autor que me acompanha desde o mestrado, vem da percepção das suas viagens e de uma dedicação singular para tecer uma configuração a respeito do corpo e sua relação com a estética da recepção desde a Idade Média até os dias de hoje. Suas viagens registradas em livros, dentre os quais e um dos principais traduzidos no Brasil, A Letra e a Voz, partem do texto literário e fazem uma grande síntese de teorias contemporâneas. Assim, a estética da recepção e a teoria da comunicação de MacLuhan conjugam-se em uma configuração na qual “o texto se tece na trama das relações humanas múltiplas, que, sem dúvida, na experiência vivida foram tão discordantes quanto contraditórias”.18 Trabalhando sempre a voz em sua materialidade, o autor chega à escritura, categoria advinda principalmente dos estudos literários, aos quais se conjugam contribuições de diversas áreas do conhecimento. O autor mostrou, a partir da literatura da Idade Média ocidental, que a “letra” e a “voz” não se opõem, mas coexistem. Para Zumthor, “antes do século XV, oral não significa popular nem escrito, significa erudito”.19 Assim, em A Letra e a Voz, Zumthor já aponta aproximações entre a poesia medieval e os meios de comunicação de massa. Como na arte medieval, a TV, o rádio, o cinema se dirigem a um público através do olhar da voz e do gesto. É assim que, pelos estudos da voz, o autor chega ao prazer de ouvir.

Diante disso, na tese que desenvolvo, proponho-me a realizar uma reflexão sobre a voz, a viagem, o encontro e a formação, justamente porque a formação é perpassada pela voz em sua multiplicidade e que convida à escuta, ao silêncio, à presença... Nesse sentido, esta tese se vale da hipótese de que a voz em sua multiplicidade

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Zumthor (1997, p. 285).

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é devir, como o segredo: abriu, deixa de ser. E para deixar de ser é preciso não ser. Isso não significa que a voz deixe de ser para se tornar outra, mas quando falamos da voz como devir falamos da operação de “deixar o estado de ainda não ser uma”.20

Por essa razão, esta tese chama por uma escrita como escuta, silêncio, presença, experiência... Questões importantes para discutir a formação como a experiência de uma viagem, uma vez que experiência, em alemão – Erfahrung - traz em si o que se passa numa viagem: Fahren, o que acontece numa viagem.21 Assim, “a experiência formativa seria, então, o que acontece numa viagem e que tem a suficiente força como para que alguém se volte para si mesmo, para que a viagem seja uma viagem interior.”22

Com isso coloco em relevo, através da escritura, os elementos estruturais que sustentam uma importante reflexão acerca da formação como uma viagem aberta, uma viagem que não pode estar antecipada, e uma viagem interior, uma viagem na qual, à maneira de Larrosa (2004), alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro. Uma viagem na qual alguém é a constituição desse próprio alguém, e a prova, desestabilização e eventual transformação desse próprio alguém. Por isso, a experiência formativa, da mesma maneira que a experiência estética, é uma chamada, mas uma chamada que não é transitiva. Chamada confiável, exaustiva e vibrante, musical e estremecedora:23 “o que ela produz é algo que alguém não pode chamar de transitivo: produz isso e aquilo,24 como um romance, já que “o romance implica uma estrutura, um argumento (uma maquete) através do qual se soltam assuntos, situações.”25

Este trabalho, na área de Educação, inscreve-se na linha de pesquisa Ensino e Formação de Educadores. A voz que evoca não busca uma identidade, mas, sim, parodiando Mário de Andrade, ser “trezentos e cincoenta”.26

O dialogismo entre as vozes de teóricos, mestres da tradição oral, artistas ou pessoas comuns que aqui se apresentam tem o objetivo de contrastar, confirmar e ampliar a hipótese de que a voz, na viagem, solicita uma escrita como escuta, silêncio, música... Essa voz que

20 Silva (2004, p.153). 21 Larrosa (2003). 22 Larrosa (2003, p.53). 23 Larrosa (2003). 24

Lezama apud Larrosa (2004, p. 93).

25

Barthes (2003, p. 25).

26

entendemos como constituinte da experiência da formação. “O texto e os fragmentos oferecem ao leitor sempre um quantum de ilegível, configuram uma estratégia de subversão”27em que o “saber-fazer- pesquisa” pode se caracterizar em um “não-saber”, um pedido para calar: um silêncio. Porque o fragmento, segundo Roland Barthes, artista dos fragmentos,

(...) implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob a forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que se diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um “pensamento”, mas algo como o cunho, o que se chamaria outrora um “verso” . [...] fragmento (o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar-me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário.28 Assim, para que a voz se mostre em diversos tons, a estrutura desta tese convida o leitor às variações sobre a busca de caminhos para viajar por ela. Em cada capítulo, a sensação é a de que o jogo muda. Desse modo, o leitor poderá iniciar sua leitura pelo meio, pelo fim, ou pela trilha pela qual sentir mais curiosidade, uma vez que, assim como a voz, viajar não é algo preciso.

No segundo capítulo, “Não sei, só sei que foi assim”, retorno a algumas das principais questões abordadas no projeto inicial do doutorado para justificar a mudança do percurso dessa viagem que se chama tese e apresentar sua nova configuração.

O terceiro, o qual denomino “Os Desenhos do Canto dos Pássaros onde me Aconchego”, procura situar o contexto em que se localiza a pesquisa, realizada como “Cultura e não como Método.”29 No capítulo, busco conceituar cartografia, indico as perguntas norteadoras do trabalho, bem como os objetivos.

27 Coelho (1973, p. 29). 28 Barthes (1977, p. 102/03). 29 Barthes (2003).

Como cabe a uma exposição30 polifônica, a desta tese apresenta, no quarto capítulo, “Sete Visitas à Ex-Posição Na Casa da Voz”31, escritas para pensar a voz que a permeia. A voz é apresentada primeiramente por Paul Zumthor: sucessivamente por Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Roland Barthes, Wassily Kandinsky, Paulette Roulon-Doko e Ungulani Ba Ka Khossa, finalmente, Francisco Noa, Isabel Noronha, Malangatana Ngwenya e Mia Couto. São eles artistas, mestres da tradição oral, filósofos, cineastas... que se encontram na mesa do tempo: Com Tempo32 porque essa ex-posição escapa ao modelo preocupado em construir estruturas sólidas, cristais simétricos, modelos consagrados, mas está profundamente atenta às diferenças, ao contraditório, ao instantâneo, ao errante, não ao misturar coisas, mas sim ao sobrepô-las.

Ao sair da Ex-Posição o leitor, se quiser, poderá abrir meus diários de viagem, os quais denomino “Fragmentos de Cadernos de Viagem”. No primeiro caderno estão as cenas dos encontros da viagem que realizei no estágio-sanduíche em Moçambique. Categorizo-o como “A busca”, não só para caracterizar minha procura por um resto que falta. Apresento a maneira como realizei o trabalho de campo, os afetos, dificuldades, tudo em fragmentos. Uma escrita realizada sem querer. E sem querer “escrevi metade. Isso é: como é que eu podia saber que era metade, se eu não tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah viu?!”33 Este pode ser caracterizado como o quinto capítulo.

Ao terminar a leitura do “Primeiro Caderno” ou quinto capítulo, o leitor ainda poderá optar pela leitura do “Suplemento”, ao qual denomino “A Poética dos Quintais” e que categorizo como o encontro. No suplemento, abordo como pelas cantigas me foi possível perceber aspectos fundamentais à cultura bantu, do Sul de Moçambique e, sobretudo, viver a experiência única da poética dos quintais, intimidades das quais tive o prazer de participar. O capítulo cinco, então, trata

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No contexto musical, exposição é a parte de uma fuga em que são apresentados os diferentes elementos temáticos que fazem parte da composição.

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Com imensa gratidão à inspiração de Carlos Rodrigues Brandão, em sua obra

Memória Sertão, quando apresenta suas “Sete Visitas à Morada da Memória”.

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Contemporâneo: contemporaneus, cum temps, com o tempo. No sentido de pensar com o tempo, não, de modo algum, representando o espírito do tempo (“pós-moderno, “pós-filosófico, se diz”) , mas pensando o tempo de forma a deslocar nossa contemporaneidade. (DERRIDA; 1996, p. 14).

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também da decepção: “momento fundamental da busca ou do aprendizado”, segundo Deleuze.34

No sexto capítulo, o “Segundo Caderno” e uma pergunta: qual o segredo? Um roteiro imaginário que enuncia uma fantasia que eu buscava: de vida, de etnicidade, de gênero. Essa fantasia, por ocasião de uma leitura gratuita do romance Seus Olhos Viam Deus, da escritora norte-americana Zora Neale Hurston, encontrou a palavra que a fez trabalhar em toda a cena. A excursão pela história da palavra segredo busca dar ritmo ao capítulo. Na outra extremidade das páginas o desejo se instala. Imagens que rondam e que busco no profundo de mim mostram, como uma sombra, um outro lado da cena - um espiar pela greta – reerguendo em fragmentos de memória os movimentos de uma vida.

Para mim, debulhar o feijão na eira ou simplesmente sentar em uma esteira com as mulheres, nos motivos do encontro, em Moçambique, ouvindo seus silêncios, me fizeram pensar que fazer uma viagem em trilhas tem um sabor muito diferente das viagens feitas por itinerários, as trilhas permitem as pausas para escutar a voz que se mostra em sua multiplicidade. Mas como se permitir viver essa experiência? Ao pensar assim, pergunto-me, como fazer com que em minha própria prática, no ensino e na formação de educadores, o motivo seja mais importante que os encontros? Haveria quem pudesse nos ensinar mais sobre isso do que uma sociedade que ainda se permite viver em muitos momentos como um romance? As pessoas que me acolheram em Moçambique e que, de alguma maneira, me ajudaram nesta pesquisa é que poderão dizer.

É importante dizer também que, em alguns capítulos desta tese, histórias, fragmentos, títulos ou subtítulos são apresentados em posição, formato ou letra diferentes de como fazemos seguindo as normas da ABNT.

Ao voltar ao começo da escrita dessa tese, depois de um mergulho tão grande, sinto vontade de rasurar, apagar algumas coisas, selecionar ou refazer outras. Porém, como seria isso possível em um sistema de doutorado em que a velocidade vale mais que o com.passo? Essa é a razão de trazer a esta tese as reflexões na ordem em que elas foram escritas. Na aventura. Sendo assim, esta tese lança um convite a uma viagem: uma viagem de aventura. Ao leitor cabe a decisão: entrar ou não.

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