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2 “NÃO SEI, SÓ SEI QUE FOI ASSIM”

Os mapas da alma não têm fronteiras Eduardo Galeano

2 “NÃO SEI, SÓ SEI QUE FOI ASSIM”

Como já havia feito durante o mestrado, minha pesquisa no doutorado é o aprofundamento de uma investigação sobre a voz.

Em meu projeto de pesquisa para o doutorado me propus a perceber a relação entre a voz da oralidade e a voz midiática, na escola, no contexto de uma investigação sobre o papel da voz humana enquanto força de ressignificação dos dados da cultura.

No momento em que eu soube da possibilidade de realizar o estágio-sanduíche em um país africano, o trabalho Cultura Acústica e Letramento em Moçambique, do professor José de Sousa Miguel Lopes, que conheci ainda no mestrado, foi determinante para a opção por Moçambique. Tudo o que Miguel Lopes falava em sua obra sobre os Tsongas em Moçambique, em especial sobre sua vocalidade, aflorava em mim um desejo enorme de conhecer na prática coisas que eu havia visto só na teoria. A partir dessa obra e de outros referenciais, apostei na possibilidade de levantar dados em uma escola da minha cidade para depois fazer o mesmo em alguma escola do país onde escolhi estagiar.

No Brasil, tomei como centro de atuação a Escola Anaburgo35, localizada em Joinville SC, no bairro Vila Nova. A estratégia para a escolha foi baseada em meu conhecimento anterior da região e na ideia de que a escola está situada em uma região de fronteira rural/urbana, hoje com mais uma denominação pouco reconhecida, a de zona industrial.36

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Segundo Cunha (2003), a escola Annaburg foi fundada em 1857 por imigrantes suíços. A escola formava uma das “associações escolares”, uma vez que os imigrantes construíram suas próprias escolas, em língua alemã, que eram mantidas pelos colonos. Era uma escola particular protestante para filhos dos primeiros imigrantes suíços que ali se instalaram. Na década de 1940, passou a ser administrada pela Rede Municipal de Ensino.

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A partir da instalação das primeiras indústrias na região, iniciam-se as primeiras vendas de terras de plantação de arroz, assim o primeiro loteamento aparece. Nele se instalam pessoas de várias partes do país, na esperança de conseguir um emprego. Em 2009, a escola contava com um total de 500 alunos de 1º. ao 9º anos, em uma área construída com capacidade para um número bem menor. Embora a escola esteja situada em área industrial, por ficar distante do centro da cidade e em área de manancial, o imaginário que as pessoas têm sobre a localidade é de um lugar de colonos, plantadores de arroz. No entanto, pouco dessa história restou a não ser as poucas terras das plantações, as quais exibem enormes placas de “Vende-se”, modificando a paisagem a cada dia.

Acompanhei a rotina da escola, uma vez por semana, de março a dezembro de 2009. O conhecimento prévio da escola e da região foi fundamental para o estabelecimento de relações e o direcionamento da pesquisa a partir do plano elaborado previamente e das indicações oferecidas pelas pessoas com as quais eu conversava na escola: crianças, adolescentes, professores, diretora, dentre outras.

Este trabalho está registrado em duas experiências com vídeo- documentário realizadas pelas crianças e adolescentes da escola: os vídeos Passagem e Adorável Escola, cuja experiência foi relatada em um dos capítulos do livro Múltiplos Olhares para as práticas de linguagem no espaço-tempo da sala de aula.37

Figura 2 - Alunos da Escola Anaburgo

Faço referência a esse primeiro momento da pesquisa no Brasil para, de um lado, pensar qual era o objetivo de minha busca inicial em Moçambique e para, de outro, assumir, mais do que justificar, o caráter subjetivo e pessoal desta pesquisa.

Quando cheguei a Moçambique, em março de 2010, as escolas do sistema público de educação estavam se preparando para as primeiras férias do ano letivo que acontecem no mês de abril. Comecei, então, executando algumas entrevistas que estavam no meu plano de trabalho. Foi nessa etapa, bastante inicial, que, aconselhando-me com pessoas como o mestre da tradição oral e das artes Malangatana Ngwenya, soube que não era na escola de educação formal38 que eu iria conseguir

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SOUZA, Roselete Fagundes de Aviz; PERES, Fábio Lessa. Com Mágoas da Escola Sem Perder a Ternura: uma experiência com o audiovisual. In: In: SILVA; Rohling et al. Múltiplos Olhares para as práticas de linguagem no espaço-tempo da sala de aula. Curitiba: CRV, 2011.

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Nas comunidades rurais bantu a educação não está relegada somente à educação formal, mas principalmente ao que Alfane (1995) designa de

investigar o que eu pretendia. Além de que, a dificuldade de deslocamento da região de Maputo a outras, mesmo a periferia, se tornou inviável para um trabalho sistemático de pesquisa, em virtude da falta de transporte, uma vez que a Universidade não podia, naquele momento, disponibilizar um veículo para a execução do trabalho. Na maior parte das escolas que tive a oportunidade de conhecer, algum tempo depois, constatei o que me fora falado e passei a compreender também o que Miguel Lopes discute em sua obra em relação ao problema da desvalorização das línguas autóctones39 no país.

Nas escolas urbanas que visitei, o ensino era todo em língua portuguesa, bem como nas poucas escolas que visitei em regiões mais afastadas da cidade, em que ficava muito evidente o deslocamento da língua portuguesa e a tradição oral ficava restrita apenas à referência a um documento chamado Currículo Local, 40 citado quando fazíamos determinadas perguntas na conversa com professores ou diretores pedagógicos.

Nas escolas mais retiradas observamos que, num espaço em que a língua portuguesa como língua de expressão da escola não era voz, ou melhor, só era voz na escola, mas não fora dela, o problema se agravava

Transmissão Cultural, que se divide em aprendizagem espontânea e ensinamentos dirigidos. Dentro dos ensinamentos dirigidos estão os ritos de iniciação. É com os ensinamentos dirigidos que muitas vezes a escola não- formal se choca, uma vez que por serem ensinamentos ministrados por certas pessoas especializadas e designadas pela própria comunidade, esse sistema muitas vezes é considerado pelas famílias mais importante que o formal.

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As conversas com o professor Miguel Buendia foram muito importantes. Buendia é um grande defensor do ensino bilíngue na escola. Em um dos seus depoimentos ele me dizia: “As pessoas têm o direito de aprender em suas próprias línguas (...). O sistema educativo, desconsiderando essa questão, está reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais. Aqueles que seus pais falam o português têm uma vantagem superior àqueles que não têm. Para além daquele que tem maior escolaridade, etc. O fato de o sistema educativo não encarar com seriedade, essa desigualdade a priori, no ingresso, na entrada da criança na escola, isso já é um fator gravíssimo e um fator produtor de desigualdade social.”( Depoimento de Miguel Buendia. Caderno de Viagem, 03 de agosto de 2010).

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O professor Miguel Buendia tem uma interessante investigação nessa área e comprova como a implementação do Currículo Local: documento cujo objetivo é de que 20% do currículo deve responder às necessidades de aprendizagem localmente relevantes e que poderia responder algumas questões em relação à tradição oral na escola, “existe na teoria, mas ainda não foi implantado de fato.” ( Miguel Buendia. Caderno de Viagem, 03 de agosto de 2010).

ainda mais, uma vez que nem aqueles que estavam ali na sala de aula dominavam a língua portuguesa. Estive na escola primária de Tenga, por exemplo, a 60 km de Maputo, em que o professor ministrava toda sua aula em língua portuguesa para uma classe de primeira série, porém, ao acompanhar as crianças na hora do intervalo, elas só brincavam falando em língua local. Era bastante difícil estabelecer um diálogo com elas, porque pouco compreendiam o que eu falava.

Essas foram as principais razões para a mudança de foco na minha pesquisa da escola para a cultura. Outro tema que anteriormente estava mais presente em meu foco era a relação oralidade e voz midiática. A questão, como se poderá observar, seguirá presente, porém sem tanta ênfase, uma vez que a intensidade que o tema da viagem de formação assumiu exigiu que ela viesse a ocupar o lugar central.

Comecei a viver os primeiros (des)encontros na viagem, quando a voz que eu procurava não encontrei nas escolas que conheci, encontrei-a em um outro lugar: na vivência dessa cultura. No entanto, esse encontro começou a criar em mim outros afetos, principalmente em relação à dificuldade de entrada naquela cultura. Como entrar nela? Por que um povo aparentemente tão receptivo nos primeiros momentos da minha chegada, agora criava tantos obstáculos para a minha entrada? É assim que os primeiros (des)encontros se configuram: a demarcação, a começar pelo fenótipo de que eu não pertencia àquele lugar, aliada à questão de ser mulher e brasileira, foram fundamentais para que tudo se anuviasse de tal forma que era preciso encontrar formas para continuar caminhando. Mas como alguém como eu, acostumada a andar com itinerários, por espaços bem marcados e conhecidos, passaria a andar por trilhas? São esses afetos que passaram a delinear o novo foco para a pesquisa. As relações é que passavam a estar no foco. Então, eu me descontrolo toda e quase caio de uma altura considerável, aprendendo a caminhar sem ser em linha reta.

Toda essa experiência me fez refletir sobre o que é ser professor/a, fez pensar também na professora que sou e a professora que eu deveria ser. Não seriam o professor, a professora, viajantes? O que encontramos nessa viagem que se chama Educação? Será que como viajantes só encontramos aquilo que levamos? Será que na agência chamada Educação nos arriscamos a entrar em uma viagem sem itinerário, permitimo-nos viver uma viagem de aventura?

Foram essas as questões que me levaram a pensar nos (des)encontros da voz na viagem de formação. A refletir que a formação também é uma viagem. Uma viagem de (des)encontros. Uma viagem

que não nos exige necessariamente atravessar o oceano, mas andar em trilhas para que o saber da experiência se dê.

Em uma trilha, a primeira coisa que nos acontece é reduzir o passo, sentir o que isso provoca em nós. Larrosa diz que “a velocidade e o que ela provoca, a falta do silêncio e da memória, são também inimigas mortais da experiência.”41

Foi andando devagar que ouvi minhas perguntas. Andando em trilha, o que eu fazia era escrever. Era um desejo, uma necessidade mais do que tudo. Era no meu diário, meu pequeno caderno de notas, que eu conseguia folhear páginas e páginas daquele acontecimento lentamente. No diário, estão os escritos de mim mesma, as marcas desse tempo e as relações inscritas nesse espaço; uma busca constante de nomear aquilo que parecia impossível. De fazer coisa com as palavras, lembrando Larrosa, “de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos.”42

Era o meu momento de luta e descoberta da minha fragilidade. Um traço, um vazio, um vácuo, ora pedindo palavras, ora pedindo silêncios. Às vezes, só uma imagem, no entanto, quantos rompimentos e dúvidas aquilo me causava? Assim, ao mesmo tempo que compunha o diário, era afetada por ele. Mas vale lembrar que tudo isso eu fazia, sem saber que fazia. Eu simplesmente escrevia.

Hoje, ao pensar nos novos rumos tomados pelo trabalho, pergunto: o que é um diário? O que um diário significa para a formação do professor? O que ele provoca na própria concepção de ser professor? Será que é possível “ser” professor? Afinal o que é “ser” professor?

São essas perguntas que me fazem pensar que, mesmo com alguns anos em sala de aula, nunca escrevi um diário, ou melhor, nunca me permiti essa maneira de escrever-me. O leitor poderá se espantar: nunca escreveu um diário? Isso é impossível na Educação!

Tudo isso para dizer que quando falo do diário, falo de escrever e, lembrando Barthes (2004), “falar”, “relatar”, não é escrever. Falar aqui se refere a se estender ao longo de inúmeras exposições; relatar se refere a controles regulares; e escrever se refere ao desejo. É assim com o trabalho de pesquisa, uma solicitação forte de escritura, uma paixão presente.

Talvez o leitor esteja estranhando este texto, já no início, afinal será isto uma justificativa? Talvez, sim. Ou talvez seja a minha

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Larrosa (2002, p. 23).

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incapacidade de dizer tudo isso com a simplicidade de Chicó, o inesquecível protagonista do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna: “Não sei, só sei que foi assim.”

3 OS DESENHOS DO CANTO DOS PÁSSAROS ONDE ME

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