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III. Paisagens para o corpo

3. Coppelia

Fantasia: faculdade da visão interna de tornar presentes coisas assentadas no espaço, passadas ou futuras; capacidade de se apresentar algo mesmo quando está ausente.

Dietmar Kamper (2000)71

Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann é contemporâneo de Goethe e Schiller e da primeira geração romântica, com Novalis e Schlegel. Ganha fama com suas peças noturnas, às quais chama “Nachtstucke”, noturnos. A primeira versão de “Der Sandman” data de 1815 e bebe da fonte de Ludwig Tieck, famoso por seus contos de fada populares (“Voksmarchen”) e por teoricamente ter dado início ao romantismo alemão. Sua coleção de contos “Phantasus” (1816) é uma poética das peças noturnas com um novo arranjo para a novela gótica. Tieck explora a falta de unidade narrativa, a fusão entre presente e passado, entre realidade e fantasia, e o acontecimento grotesco.

O contexto histórico-científico de Sandman é propício: razão pura e imaginação são atividades de raíz comum no fim do século XVIII e início do XIX. A ideia de dar vida a bonecas vai de encontro à teoria do médico alemão Anton Mesmer (1734-1815), que acredita na afinidade de organismos vivos e substâncias inanimadas (dando origem ao termo “mesmerismus”).72 Hoffmann é fascinado pela ideia de bonecas que ganham vida e se envolvem em problemas, e se apaixona por suas criações Olympia, Giulietta e Antonia.

“Der Sandman”, seu conto mais macabro, data de 1815. Há um estudante que desde a infância teme o terrível Sandman, que no folclore inglês é um homem que vem buscar olhos de criancinhas que não querem dormir; ele joga-lhes um punhado de areia nos olhos para que estes saltem para fora e sejam levados num saco para a lua crescente, para alimentar seus próprios filhos. O garoto Nathanael associa este personagem a Coppernicus, um mercador conhecido de seu pai, químico experimental, que estaria ainda envolvido na morte deste. Quando adulto, já comprometido com sua noiva Klara, ele conhece Olympia numa festa e se apaixona por ela, acreditando que ela seja uma mulher real, sem saber tratar-se de uma autômata feita por Coppernicus e pelo cientista Spalanzani. A descoberta do truque o leva à loucura e ele por fim provoca a própria morte.

A Olympia de E.T.A. toca harpa, canta, dança, e é de uma beleza impactante, embora apresente movimentos rígidos, um olhar fixo e um toque gélido, além de ações estranhamente mecânicas.

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Artigo “Fantasia”, publicado pelo CISC (PUC-SP, COS), 2000. site http://www.cisc.org.br

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Olympia (“she who comes from Olympus”) lhe parecera uma mulher real por causa de óculos mágicos que Coppernicus lhe havia presenteado. Eles dançam juntos, até que ele cái e quebra os óculos, e assim, em meio a uma multidão onde todos riem dele, Hoffmann (Natanael) percebe então que estava apaixonado por uma autômata. Em outra versão eles dançam copiosamente, e quando ele vai se declarar a ela, vê seus dois criadores discutindo com a boneca, cujos olhos de esmalte caem no chão, e ela é levada sem olhos e sem vida por Coppernicus. E gritava “pretty eyes, pretty eyes”... Nathanael enlouquece e vai parar num asilo, antecipando a própria morte.

Hans Bellmer, cuja obra me inspirou em “Olympia”, interpreta por sua vez parte dos “Contos de Hoffmann”, Opera de Jacques Offenbach apresentada em Paris em 1881 a partir de três contos de E.T.A. Hoffmann (1776-1822), “Der Sandman”, “Das verlorene Spiegelbild” e “Rath Krespel”, resectivamente sobre Olympia, Antonia, a musicista, e Giulietta, a cortesã73, e seus vilões Coppelius, Miracle e Dapertutto, formas diabólicas que perseguem Hoffmann,74 que muitas vezes é personagem de suas próprias histórias.

A referência de E.T.A. Hoffmann nos dois videos – a personagem do conto “Der Sandman”, Olympia, autômata que nem sabe se viveu, se amou e se sabe dançar. O video “Olympia” referencia a obra de Bellmer, artista alemão fantástico que se inspirou nela para criar bonecas (des)articuladas, influenciado pelo movimento surrealista e pela 2a Guerra. Já “Coppelia” se inspira na criação para o clássico balé “Coppelia”, que desta vez habita com outras bonecas um ambiente mágico, lendo um livro em branco.

A Olympia de Bellmer e a Coppelia bailarina, ambas a autômata de Hoffmann, me servem de inspiração: a primeira pelo corpo desarticulado, a segunda pelo ambiente doméstico encantado, e

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No Prólogo o autor se situa numa taverna alemã, onde está apaixonado por Stella, uma cantora de ópera. Troca insultos com outro admirador e começa a contar as histórias de seus amores passados: Olympia e seu co-inventor Spalanzani (1o Ato), Antonia (2o Ato) e Giulietta, uma cortesã veneziana (3o Ato); no Epílogo Hoffmann termina os contos e, bêbado, é visto por Stella, que parte com o outro admirador. O amigo Nick Lausse presume tratarem os contos de três aspectos diferentes de Stella, e encoraja o poeta a consolar-se em seu gênio criativo.

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A história de E.T.A. teve várias outras adaptações: “the voice of midnight”, videoclipe de “The Residents” (2007), uma ópera de câmera em 2002, a montagem clássica do balé “Coppélia”, um stopmotion de Paul Berry em 1991, outro filme de 2008, “The eye of the Sandman”, uma novela de Kim Newman de 1998, “Dracula cha cha cha”, e ainda por vir, uma animação russa de Gofmaniada. Também influenciou o filme de Tim Burton “Nightmare before Christmas” (1993) e Brothers Quay em “The Sandman” (2000). Mas poucos diretores conseguem juntar as histórias em uma fantasmagórica sequência única. O dramaturgo e escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), que tem um de seus famosos romances adaptados para a tela por Stanley Kubrick (“Breve romance de sonhos” e “De olhos bem fechados” respectivamente) é considerado o “herdeiro moderno” dos contos de E.T.A. Hoffmann; ambos reproduzem mitos antigos num misto de mágica e alucinação.

ambas pela ausência de memória (visto tratar-se de uma boneca), que me permitiu jogar com minhas lembranças, reinventá-las no presente com novas cargas afetivas, demandas do meu estado-corpo.

As duas obras representam respectivamente um corpo desestruturado que tenta se recompor e comunicar e o ambiente doméstico afetivo e imaginário. Duas Olympias que são também leituras do feminino inspiradas nos conceitos de corpomídia, de fenômeno, e dos falsos dualismos dentro e fora, razão e emoção, corpo e mente, corpo e ambiente, arte e ciência, criação e história, memória e fantasia.

A feitura dos dois videos, aos quais considero videoperformances, em parte por não contarem com um roteiro prévio ou ensaio, não tem conexão com a leitura dos dois filmes (de Kieslówski e van Sant): estes dois filmes são um momento na vida de dois jovens, dirigidos por uma 3a pessoa (o autor diretor), enquanto os dois videos são sobre minha própria vida: um o estado do meu corpo (externalizado nele próprio como personagem), outro imagens de outras possibilidades do corpo, fantasias móveis.

“Olympia” e “Coppelia” têm uma narrativa aberta e poderiam ser exibidos em um espaço expositivo: a compreensão está na percepção espacial das obras, com os corpos sempre dialogando com o ambiente doméstico. O suporte ou recurso técnico da feitura e da exibição da obra devem portanto servir ao seu autor e aos seus propósitos, destinados a cada obra como um caso particular.

“Coppelia”, é um estado atual da organização de imagens reais do meu imaginário. A montagem é como o meu pensamento: é interrompida antes que a ação se complete, se perde, se repete, se (des)sconstrói em fragmentos narrativos, às voltas com imagens que buscam soluções provisórias no espaço. Meu corpo: o representar-se, que nunca se completa.

Esta boneca bailarina tem tamanho natural que com outras duas habita o ateliê de Coppelius, espécie de feiticeiro ou cientista com uma ideia retorcida de realidade. Coppelia costuma sentar-se na sacada olhando para um livro aberto. Em sua busca pela perfeição Coppelius só vê o que quer (“What and

where does beauty lie, if the eye of the beholder can not find it – does it exist?”)

Durante uma festa na vila Coppelius perde a chave de casa, que é encontrada por Swanilda, que vai à sua casa e descobre que Coppelia, objeto de desejo de seu noivo Franz (que a corteja admirando-a da sacada), é uma boneca. Franz entra no quarto de Coppelia e quando o solitário artesão de brinquedos volta pra sua casa repleta de invenções descobre a presença do rapaz e decide

embriagá-lo, para passar sua alma à boneca através de sua bruxaria, dando vida assim à sua mais perfeita criação. Swanilda se veste da boneca, confundindo o inventor, e consegue fugir com Franz. Coppélius fica desolado, abraçado à boneca patética.

A adaptação para a dança explora realidade e ilusão. “Coppelia” é um balé cômico75, e representa uma quebra na tristeza dos balés românticos da época; em lugar de uma criatura etérea, uma terrena boneca mecânica pressagia o balé clássico que viria. Os autores do libretto são Charles Nuitter – que afasta o lado obscuro da história original na qual a boneca de fato ganha vida usando o espírito retirado de Franz (no balé Swanilda finge ser a boneca pra salvar Franz do experimento do Dr.Coppelius) – e Émile Perrin, diretor da Opera de Paris, que dá continuidade à colaboração de Arthur Saint-León (maitre do balé do império russo e músico talentoso, que na grande variedade de solos e danças de Coppelia inclui a primeira czarda com mazurcas e valsas num balé).76 Léo Delibes compõe a obra prima musical muito citada como principal razão para a popularidade de “Coppelia”, misturando composições clássicas e folclóricas, estilos de dança e música, com melodias mais líricas. Elementos fantásticos residem nas figuras mecânicas.

Corpo, imagem e representação são termos que agregam vários sentidos ao longo da história; a imagem medieval do corpo era ligada ao culto, o humanismo italiano apresenta a representação do ponto de vista único e da construção ética, as vanguardas modernas trazem o corpo sentido, não mais visto (como no realismo). A evolução dos conceitos ao longo dos séculos se deixa contaminar pelo papel da subjetividade, que testemunha a arte a partir de uma dimensão inédita de singularidade e não mais de projeções atemporais. Resta a imanência de um corpo, sem respostas, exposto.

O neurologista e psicanalista Paul Schilder afirma que o corpo depende de contínua construção de sua imagem; a noção de imagem corporal supõe uma estrutura libidinal dinâmica com o meio, num processo contínuo de experiências incorporadas – perceptivas, motoras, afetivas, sexuais. (Matesco, 2009).

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O balé é remontado várias vezes; entre elas há a remontagem russa de Marius Petipá (1884), que origina a

maioria das versões e é possivelmente a mais próxima do original de Saint-León, e a versão dinamarquesa de Hans Beck, muito popular e próxima do enredo original, com foco menor nas bailarinas (Dinamarca tem longa tradição de homens na dança, diferente dos bailarinos clássicos em geral, menos complexos). George Balanchine e Alexandra Danilova também a adaptam.

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A alemã Adéle Grantzow, estrela do Bolshoi, faz o papel principal, mas em 1870, após três anos de ensaio,

Grantzow tem uma lesão e se afasta antes da estreia (anos mais tarde morre após ter uma perna amputada). A italiana Giuseppina Bozacchi, de 15 anos, assume o papel, mas após 18 apresentações, durante o sítio de Paris, contrái uma febre e morre. Léontine Beaugrand assume o papel e, aclamada pelo triunfo, é tida como bailarina de máxima admiração e ganha a obra prima “Giselle”, tributo a ela.

A memória me atrai por sua flexibilidade temática, alcance temporal (passado e futuro que se atualizam num instante sempre presente e atual) e por abraçar tanto a realidade histórica quanto a imaginativa, nomeada por muitos como fantasia77. Quanto vale uma memória? O valor que ela tem é medido pela empatia ou por um peso histórico? Quando a memória de um invade o outro, ela vira fantasia? Qual o peso da realidade numa memória afetiva? Toda memória é carregada de emoção? O valor do afeto do outro em nós depende do grau de empatia? Objetos sem valor perderam a memória? Como lidar com a memória dos outros, senão com a imaginação? As coisas mudam de lugar e seu movimento é aleatório e significante.

A videoperformance “Coppelia“ demonstra que o conteúdo de imagens de um corpo é facilmente manipulável por outros corpos por sua vez geradores de outras imagens, ou, que as memórias de um corpo encontram-se em estado suspenso de influências e novas interferências nos contextos afetivo e imaginativo. Conteúdos de um corpo são manipuláveis e estão em eterna construção, abertos a novas leituras dos corpos com os quais interage e se permite contaminar. O imaginário das autômatas em relação a si próprias também ganha visibilidade: seus anseios, dúvidas e a imagem que fazem de si mesmas ou de como gostariam de ser – um exercício que também passa pela auto estima e pelo feminino.

As cenas das autômatas, realizadas e capturadas por elas, são atualizações do meu ambiente doméstico, invadido por um presente que também é fantasioso (elas não habitam ali), reinventado por corpos sem memória (daí a ideia das Coppelias). A realidade (corporificação das personagens) é fantástica – e é fantasia do meu corpo. Uma espécie de eu invadido por corpos vazios (autômatos). Um passado de imagens afetivas que é ficção e realidade, história e memória. Um presente que é imaginado porque invadido por outras possibilidades do feminino e de percepções afetivas.

O filófoso Pélbart expõe uma vida sem forma, numa dimensão residual. ‘A vida aparece agora como um manancial de formas de existência, reservatório inesgotável de sentido, germe de direções que extrapolam os cálculos dos poderes constituídos.” Preservamos a capacidade de ser afetados sendo permeáveis, passivos e mesmo fracos, acrescenta, mas “como ter a força de estar à altura de sua fraqueza?” (Pélbart, 2007:22) Pélbart nos inspira a pensar que “às vezes é no extremo de uma vida

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A história da fantasia data do início da Era Moderna – cerca de cem mil anos. Por algum tempo a fantasia é

denominada melancolia (“a fantasia tem os pés pesados: sobrecarregada com gravidade e melancolia”, escreve Kamper). Para Descartes a imaginação é enganadora, sonhadora e presunçosa; para Freud, só o infeliz fantasia. É o romantismo europeu quem decidirá por um movimento contrário à busca por um mundo iluminado, linear e racional.

nua que se descobre “uma vida” (como invenção de formas e potência, como sugere Deleuze), assim como é no extremo da manipulação do corpo que ele pode descobrir-se como imanência, pura potência.” (idem:35)

Pélbart lembra Deleuze (um corpo é primeiro o encontro com outros corpos; é o poder de ser afetado) e Nietzsche (todo sujeito vivo é um corpo que sofre de suas afecções) e sugere retomar o corpo no que lhe é mais próprio: sua afectibilidade. É como buscar um aquém do corpo empírico e da vida individuada, explica. Num tal corpo afetivo se desfazem hierarquias, preservando apenas intensidades que compõem zonas incertas, explica o pesquisador; há ainda Kafka (o embate de corpos num sistema de crueldade imanente) e Artaud (o corpo devolvido a si mesmo, intensivo), e há “aquele limiar vital a partir do qual tudo gira em falso e derrapa, perde a pregnância, permitindo ao corpo redistribuições de afeto.” (Pélbart, 2007:32)

Para Bandiou (1998) toda vida é desnudamento, abandono das vestimentas, dos códigos e órgãos – “para sustentar-se no ponto em que se intercambiam atualização e virtualização.” (apud Pélbart, 2007:34) Gombrowicz (1988) sugere um inacabamento próprio à vida, onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não pegou inteiramente; um estado de imaturidade onde se preserva a liberdade de seres ainda por nascer, explica Pélbart. (idem:30)

O processo criativo é um processo do corpo, de internalização de conteúdo teórico e pessoal, imaginário e de memórias, elucubrações em silêncios ao longo do tempo. Esta experiência de organização dos discursos atualizados do meu corpo se manifesta como narrativa aberta, isenta de continuidade, facilmente corrompida por outras ações (imagens) que surgem sem disciplina ou ordem.

A performance começa no aberto. No corpo como ambiente perceptivo e no espaço aberto da memória, espaço latente e contaminado por um passado e futuro a cada gesto atualizados; a captação de imagens dialoga com este ambiente vivo. A videoperformance “Coppelia” é planejada e estruturada, ainda que sem roteiro, ensaio ou direção. Há personagens e montagem sonora, locações e figurino. O fator acaso ocorre no ato.

Fictícia será sempre a linearidade do pensamento e das imagens expostas na solução (montagem), porque não corresponde à realidade dos estados simultâneos do corpo, mas também é um processo que comunica, uma forma que expressa um pensamento. Portanto, real.

O ambiente mágico de Coppelius, a casa que abriga suas criações fantásticas, me serviu de inspiração para que minha casa fosse o ambiente criativo para as três personagens, que poderiam nele simular realidades variadas. Greiner lembra que espaço não é cenário. Para Pina Baush por exemplo espaço deve ter o máximo de realidade, para criar ficção e deslocamento de sentidos com detalhes, rastros etc; a bailarina e coreógrafa alemã traz material de casa (de suas vivências e percepções de espaços domésticos dos outros) para o trabalho e transforma questões em dispositivos para iniciar alguma coisa, para criar um espaço que não é só artístico mas que é pessoal. Greiner acrescenta que a espacialização (ação no espaço) seria também uma forma de presentificação (ação da presença). Das forças do espaço, do tempo e da matéria de onde nasce a experiência formam-se as intensidades. (Greiner, 2010:93)

A criação de ambos os videos começou no doméstico, estado de potência do ambiente e do corpo, espaço de significantes que representa a si mesmo. A escolha e disposição dos objetos foi espontânea porém planejada, na organização de visibilidades e disposição de afetos. A casa foi arrumada por mim para ser explorada por outros, como conjuntos de ações possíveis de outros corpos que não têm memória (por isso a analogia à boneca Coppelia) ligada à casa.

A ideia é que Coppelias se ambientassem um dia neste ambiente estranho a elas, carregado de histórias e imagens que não lhes pertence, e que elas a partir deste material disponível, e munidas de câmeras de video, interagissem e construíssem novos significados, gerando novas cargas semânticas ou criando novas relações com meus objetos, aos olhos delas desprovidos de qualquer valor.

As paisagens do corpo delineiam uma memória viva impregnante no meu espaço doméstico, e as três autômatas tinham à sua disposição um pequeno inventário das minhas coleções: fotos, roupas, revistas, discos, cartas, broches, colares etc. Imagens-vestígio de um corpo, performance de rastros.

As Coppelias na minha casa é como se a minha história pudesse ser manipulada. A casa como um conjunto de ações possíves, como um ambiente de entornos informes (onde se fundem curiosidade pelo desconhecido e realidades desconhecidas umas das outras e delas por mim. Os afetos se desarticulam como juntas de autômatas para pensar em outros gestos possíveis. O material gravado foi visto por mim posteriormente, que tentei criar a partir dele uma sintaxe que articulasse as partes. As três Coppelias e eu: onde uma está no olhar da outra.

Elas registram a si próprias sem planejamento prévio, numa experiência com a câmera como olhar e extensão do corpo. Elas fazem uma leitura da minha casa e do meu corpo que não são as minhas. Minha presença se dá numa espécie de movimento estendido, fluxo silencioso que atravessa o tempo

do filme nos meus objetos pessoais reinventados por elas. “Interessam instâncias de conexões nas quais a instabilidade reina, e se sustenta quando se torna corpo”. (Greiner, 2010:57)

O video é a criação de uma sintaxe para expor alguns conteúdos do meu corpo, interiorizados. Paisagens impregnadas que foram apropriadas pelas autômatas sem minha presença ou qualquer tipo de controle. Suas imagens são representações de estados de um corpo, inconstantes, recorrentes, remetendo a uma atenção dispersa e a pequenos cuidados com minha própria história, revista afetivamente. A realidade se torna ficção ao se reinventar. A obra se torna uma imaginação do corpo, arranjos possíveis de imagens que se dão como ações no fluxo espaço-temporal: sentimentos, perturbações, possibilidades.

A emoção não é uma modificação acidental de um sujeito que estaria mergulhado num mundo inalterado. (Sartre, 2006:87) Assim, não se deve ver na emoção uma desordem passageira do organismo e do espírito que viria perturbar de fora a vida psíquica: trata-se do retorno da consciência à atitude mágica, uma das atitudes que lhe são essenciais, com o aparecimento de um mundo correlativo, mágico. A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de “Verstehen”) seu “ser no mundo”. (idem:91)

O autor da trilha sonora, Edu Negrão, é o mesmo de “Olympia” (2008/2010) e de “Brevidade” (2005), video apresentado junto à monografia de mestrado. Esta opção se dá em função de uma tentativa de construção de uma trilogia sobre o corpo: a primeira obra exibe um artista em processo de criação de uma obra musical; a segunda, um corpo fragmentado que busca uma unidade. A terceira, um corpo que busca um passado afetivo para lançar-se num futuro já impregnado de desejo e memória.

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