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II. Performances do imaginário

3. O sentido em trânsito

Movimento é imaginação corporificada. Neide Neves (2008:75)

A pesquisadora italiana Giuliana Bruno sugere que um filme cria composições de espacialidade transformando um lugar em paisagem, e que os lugares dão forma aos filmes, que imprimem sua marca no modo como navegamos no espaço (urbano, doméstico, afetivo), emotivamente e cognitivamente. (Bruno, 2002:20)

A imagem-movimento continuamente reinventa lugares como ambientes narrativos (places as sites). A absorção do sujeito ou objeto na narrativa espacial envolve transformações embodied; cinema e

arquitetura (o foco de pesquisa da autora) proveriam espaços para viver e ambientes biográficos; vive-se o filme como se vive o espaço onde se habita, como uma passagem diária, tangível. São ambientes constantemente reinventados pelo corpo vivo, e sediam interações táteis. Emoções e fantasias mapeiam a narrativa no espaço liminal. (Bruno, 2002:66)

Neste seu livro “Atlas da emoção” a autora exemplifica o que chama de landscape portraits com obras de Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Win Wenders e Peter Greenaway, nas quais os diretores abusam de paisagens para compor narrativas subjetivas e explorar meandros, sentimentos e situações de seus personagens em ambientes organicamente compostos, que compactuam e alimentam as construções de discurso e de sentido. Bruno cita “O eclipse”, onde Antonioni explora o foco no inacabado (a história tem como cenário a cidade de Roma em pleno processo de modernização arquitetônica) para falar da vida na transição da cidade, do pensamento na construção, “vagando pelos locais como se eles fossem já ruínas incipientes.” (Bruno, 2002:37)43

“O eclipse” (1962), filme extremamente interessante, joga com o tema do desencontro (ou melhor, das tentativas de encontro) de um casal plasticamente, em muitos enquadramentos aparentemente oblíquos mas de uma precisão antonioniana. Uma pilastra divide o corpo dela ao meio numa locação urbana; locações vazias, sem ninguém, levam vários segundos; pequenos acontecimentos (a água num meio fio, uma rachadura no asfalto, o olhar por trás dos óculos de um transeunte; planos fechados em objetos aparentemente sem sentido irrompem em meio a sequências de ação.

O audio parece abstrato: falas desacompanhadas de imagens que as orientem. Muitos silêncios, mesmo entre os dois; sequências sem ação, que se não fosse pelo lento movimento de câmera, pareceriam esquecimento do cinegrafista ou falha de montagem. Incongruências e incômodos em cenários da cidade ampla e incomunicativa. Vazio é o coração dela? Incongruente é ele? Não importa. Talvez “O eclipse” fale da impossibilidade de amar de qualquer um, simbolizada no não encontro na última cena do filme – o local combinado onde nenhum dos dois comparece – testemunhado pela luz de uma luminária de rua.

Há um contraponto na sequência dela na casa de uma amiga, dentre objetos africanos de uma viagem exótica, compõe um oposto absurdo: cômico, exasperante, cheio de gargalhadas e conversas desimportantes - como uma tentativa de usar a palavra como excesso, como se ela fosse sempre dispensável, desperdiçada em conversas fúteis.

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A metrópole existe como uma cartografia emocional, um ambiente de transporte, compondo uma psicogeografia. (Bruno, 2002:67)

Bruno observa que o cinema herdou os códigos visuais dominantes da representação ocidental da perspectiva renascentista do século XV. O foco limitado nesta perspectiva obscurece outras formas de olhar e o desenvolvimento daquele paradigma em relação ao espaço cenográfico, opina. (Bruno, 2002:139) A perspectiva sistematizada no renascimento nas artes visuais corresponde ao idealismo na filosofia ocidental: ela substitui o geocentrismo por um novo recentramento instalando um sujeito entendido como uma consciência que dá origem ao sentido.

A fotografia surge para salvar a perspectiva em crise, pois seu aparato recupera os procedimentos renascentistas de “retificação” da informação visual. O cerne dessa questão é formulado na Rússia nos anos 1920: V.N.Volochinov afirma que a produção de sentidos é ideológica, pois no instante em que os signos nascem, o fenômeno da refração lhes imprime as marcas dos sistemas sociais que os pariram. Em 1970 Jean-Louis Baudry acrescenta que o aparelho fotográfico, vinculado ao sistema de valores dos séculos XV ao XVIII, difunde a ideologia burguesa antes de qualquer coisa. Se a câmera, ao invés de reproduzir a hierarquia da visão unilocular, descentralizasse a perspectiva, tal como o fez o cubismo, o cinema não teria acontecido como a menina dos olhos dos sistemas de entretenimento e poder. (Machado, 2006:38)

Arlindo Machado lembra que o cinema é inventado simultaneamente no fim do século XIX por Skladanovski, Edson, e na Alemanha, França e Inglaterra, que disponibilizavam da tecnologia e dos conhecimentos técnicos. Este foi o século dos espetáculos de fantasmagoria (projeções em fumaça), do teatro óptico (desenho animado quadro a quadro a mão e projetado em placas ou cintas, que originam o zootrópio), dos dioramas (salas de imersão em 360o, exploradas pelos irmãos Lumière), e das cenas autômatas com o chão móvel – que nem tinham movimento, o que só foi percebido quando o movimento surge. O cinema perpetua as formas de representação ancestrais.

No cinema a narrativa se organiza espacialmente, e seu mapeamento cria mais espaço para a vivência no ambiente e seu movimento. Na descrição cinemática, como na cartografia emocional e sua paisagem, vemos e vamos. A imagem em movimento é a síntese do ver e ir – um lugar onde ver é ir. Sentimentos são inscritos como fisionomias móveis. A cartografia emocional é sobre um itinerário, o conhecimento corpóreo cuja textura é o nosso próprio texto: um lugar onde imagens (pictures) se tornam ambiente. (Bruno, 2002:245)

A escolha de um plano pela câmera é um meio de mapear o visitante no espaço. Técnicas de edição convencionais, como a analítica, tentam orientar esse deslocamento situacional reafirmando a locação continuamente. Outras técnicas permitem ao espectador “flanar” livremente pelo filme. A edição em geral cria um diálogo com o corpo, de orientação ou de desorientação. O trabalho de edição navega

no curso emocional do filme, interagindo com suas várias passagens culturais e fenomenológicas. À margem da viagem do espectador pelo espaço, o filme se move, continuamente refigurado pela (e)moção. (Bruno, 2002:271)

O filme é um produto de transações que carrega os traços das emoções e de seu roteiro ficcional. Cria-se uma relação entre lugares e eventos que forma a narrativa: ela própria é imaginada, como os lugares são transformados pela sequência em movimento de seus passantes. (Bruno, 2002:66) Um filme é construído como uma imagem do corpo: é experienciado, imaginado, manipulado. A edição incorpora a força da e-moção, coreografando corpos, num espetáculo kinestésico que cria um ambiente próprio do corpo e do filme. (idem:25)44

A exploração das possibilidades de criação de linguagens do cinema podem promover uma autonomia em relação às formas tradicionais de narrativas, tantas vezes ancoradas por estruturas literárias (que reinam absolutas nos anos 1930 e 40 e ainda hoje exercem grande influência na arte cinematográfica em geral), e desenvolver novas. Esses modelos, estruturados a partir da imagem e do som, podem articular-se de maneira orgânica, conferindo a esta arte sua autonomia formal.

As adaptações de obras da literatura constituem um grosso caldo, muito diverso tanto em relação aos temas (do velho oeste às novelas de época, da ficção científica ao terror etc) quanto no tratamento dado pelo autor (roteirista e/ou diretor). Um exemplo marcante pelo grande desafio e pelo resultado primoroso é a adaptação de “As relações perigosas” (1782), que gera filme homônimo dirigido por Stephen Frears em 1988. Estrelado por John Malcovith (Visconde de Valmont) e Glenn Close (Marquesa de Merteuil), o filme tem magníficos cenários, figurino e direção de atores, que dão vida às cartas trocadas entre os personagens – o livro de Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos é inteiramente composto por cartas, que criam uma rede de intrigas amorosas da alta sociedade francesa, testando a natureza humana numa trama de paixões e humilhações, numa narrativa polifônica. Aqui está uma passagem do livro, que reflete justamente a dificuldade de se criar imagens e sons para as “palavras do coração”:

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É na emoção cartográfica, onde a imagem-movimento é ativada, que é possível retrabalhar nosso próprio mapa psicogeográfico face às nossas histórias, elucida Bruno. (2002:268) O cinema justapõe num só espaço segmentos de geografias de mundos diversos e histórias temporais. Uma imagem em movimento é uma anatomia móvel, escaneando o espaço íntimo fazendo sua própria geografia. (ibidem, 148)

“Eis-me pois, há quatro dias, entregue a uma paixão forte. Sabeis como desejo vivamente, mas o que ignorais é como a solidão aumenta o ardor do desejo. Só tenho uma ideia; tenho que

possuir essa mulher para me salvar do ridículo de estar enamorado dela; pois até onde leva um desejo contrariado? Oh, gozo adorável! Que felicidade para nós as mulheres se defenderem tão mal!

Do contrário, seríamos junto delas apenas tímidos escravos.

Experimento neste instante um sentimento de gratidão para com as mulheres fáceis, que me conduz naturalmente a vossos pés. Adeus, minha belíssima amiga: sem rancor.”

(do Visconde de Valmont à Marquesa de Merteuil. Choderlos de Lacros, 1993:21)

O autor do filme precisa recorrer a um universo imaginário de composições de som e imagem que representem os textos escritos. No caso destas cartas, que ao contrário da maior parte da literatura adaptada ao cinema (descritiva ou literal, em cujos casos o trabalho adaptativo envolve menos interpretação e criação por parte do autor) a escrita é subjetiva, ambígua, e não apresenta quaisquer detalhes ou apresentação de lugares, ambientes ou mesmo dos personagens – tudo se “limita” a emoções, sentimentos, anseios, sensações etc. Vale lembrar ainda que o repertório, ou a coleção de imagens do autor, individual e intransferível, implica que a partir de um mesmo livro (assim como a partir de um mesmo material captado pela câmera) faz-se um filme único – quer dizer, a cada autor, um filme: é impossível que uma mesma obra seja feita por dois autores diferentes. Mesmo nos casos da grande maioria dos filmes do cinema industrial, nos quais cada etapa é realizada por uma equipe.

Relativizar gêneros e nomenclaturas (por exemplo: ficção e realidade, documentário, cinema verdade, drama e filme histórico) e suportes (o primeiro cinema é próximo do teatro; o cinema pode ser dança, artes plásticas, fotografia e adaptação literária) é reduzir totalmente sua linguagem a um entendimento raso, imediatista e estéril. Como categorizar René Clair e Salvador Dalí por exemplo? Godard? “Elogio ao amor” e “Nossa música” não poderiam ser classificados como videoarte, videopoemas ou videoperformances? A linguagem estética de ambos filmes se apropria do video e da performance e o suporte videográfico também é utilizado na captura das imagens, juntamente com o cinematográfico.45 Para não mencionar outros filmes de Godard como “A chinesa” e “Duas ou três coisas que sei sobre ela”, além de seus filmes experimentais dos anos 1980.

O cinema demonstra desde sempre uma relação ambígua com as outras artes. Pode tanto agregá-las todas – isto é, um filme pode ser uma adaptação literária, pode se dar num palco teatral, pode acompanhar a produção e ensaios de um espetáculo de dança, ou de música, pode contar a história de um ator ou bailarino ou músico acompanhando seus trajetos e ensaios, pode ser um musical, pode se inspirar num artista plástico, retratando sua obra ou contando sua história; a música e a fotografia

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É claro que muito provavelmente em razão da exibição das obras ocorrer na sala escura, mas a questão é discutir o imbricamento dos recursos criativos.

já se fazem presentes na grande maioria dos filmes, a música como parte da trilha sonora, a fotografia na composição cênica, de luz e de cada plano enquadrado.

Não citarei exemplos de cada uma destas possibilidades porque isto em si já demandaria imensa pesquisa e sempre correndo o risco de deixar alguma obra importante de fora. Me limitarei a ilustrar com imagens alguns destes filmes, que de alguma forma me tocaram ou fizeram parte de meu aprendizado. O que interessa aqui é dizer que o cinema pode tanto dialogar com toda e qualquer arte, de inúmeras formas narrativas e infinita possibilidade de uso da linguagem artística, como fazer usos conjugados ou não fazer nenhum. Ou seja, um filme pode ser “apenas” um filme, sem alusões nem referências: ele não precisa ter música, não demanda necessariamente um cuidado fotográfico, e nem sequer a existência de um roteiro.

Neste sentido o cinema, considerado por muitos a mais rica das artes, por justamente abraçá-las todas, pode sobreviver (e bem) sem nenhuma delas. O cinema é independente inclusive de seu suporte – não é condição intrínseca que seja projetado numa sala escura. Sua autonomia audiovisual é tamanha que o cinema homenageia outras artes sem que esteja subordinado às linguagens das mesmas.

É claro que nem sempre estes filmes podem se enquadrar no que proponho chamar de cinema do corpo; mas alguns deles, como “Camille Claudel”, “Frida”, “Sylvia Plath” e “Dorothy Parker” o fazem, pela maneira como o filme é conduzido, centrado na dor destas personagens, ou em suas angústias e refletindo o mundo (as imagens do filme) desta forma; a presença do corpo se manifesta de forma impregnante, conduzindo a narrativa e direcionando sua estética e conteúdo. Outras obras exploram a moda e a culinária (“Festa de Babette”), que se não são considerados hegemonicamente segmentos da arte, mantêm com ela vínculos estreitos.

Não busco aqui respostas teóricas que funcionem como receitas ou guias para como identificar um cinema do corpo. Este cinema sempre existiu. Além disso a produção artística que se propôs a flertar diretamente com a ciência sempre a inspirou, a provocou, como aconteceu com o surrealismo, movimento moderno que se inspira em Freud, e que foi muito além do que a psicanálise podia digerir na época – vejamos Dalí!

Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech acreditava numa pintura com os valores da filosofia e da psicologia. Zomba da noção de modernidade, que lhe parece suspeita, dando preferência a um mais permanente “classicismo artesanal” (Dalí, 2008:13). Em seu panfleto “Les cocus du vieil art

moderne”46 o artista múltiplo desdenha mesmo André Breton, e faz uma arte de imagens explosivas que englobam o maravilhoso e as obsessões freudianas.

Imagens surrealistas (pintura, montagem e justaposição contínua) derivam das ilustrações do fim do século XIX e são marcadas por vigorosa multiplicidade.47 (Adorno, 2008:137) Através de deformações o surrealismo cria um álbum de idiossincrazias no qual se desgasta a promessa de felicidade (negada em seu próprio mundo dominado pela técnica). O momento subjetivo está na ação da montagem, que desejaria reproduzir percepções anteriores. O sujeito torna-se absurdo e dispõe de si livremente e sem qualquer consideração pelo mundo empírico. (ibidem,140)

As imagens do surrealismo são as de uma dialética da liberdade subjetiva em situação de não liberdade objetiva. As obras pornográficas seriam os melhores modelos do surrealismo: o que está contido de modo espasmódico nas colagens assemelha-se às alterações que ocorrem em uma imagem pornográfica no instante da satisfação do voyeur: monumentos aos objetos do instinto pervertido, que outrora despertarvam a libido. “Reificado e morto nas colagens, o esquecido revela-se o verdadeiro objeto do amor, aquilo que ele gostaria de aparecer, e como nós gostaríamos de ser.” (Adorno, 2008:139)

Mais recentemente cito o trabalho investigativo de artistas-pesquisadores que me servem de exemplo. Além dos famosos Klee, Artaud, Eisenstein, Laban, Chagall e Sartre, com cujas obras tive pequeno e estimulante contato, alguns brasileiros alimentam minha hipótese da performance do corpo como fundadora de suas obras. Assim, cito: a dramaturgia do afeto (termo de Pablo Assumpção), a dramaturgia do inconsciente (termo de Juliana Moraes), a dramaturgia da forma (cunhada por Eisenstein e apropriada por Cao Guimarães), além de outros artistas contemporâneos cuja obra está incorporada no trabalho científico, como Patrícia Moran (no cinema), Neide Jallageas (na fotografia e video), Neide Neves (na dança), Julia Panadés (nas artes plásticas), para citar alguns ao meu alcance.

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Literalmente “Os cornudos da velha arte moderna”, publicado na coleção “Libelles”, escrito capital dos anos

1950 e publicado em 1956 na França e mais tarde no Brasil sob o título “Libelo contra a arte moderna” .

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A teoria corrente que relaciona o movimento surrealista aos sonhos e ao inconsciente é improcedente: o surrealismo não é uma coletânea de ilustrações literárias e gráficas de Jung e Freud – e nesse sentido uma duplicação supérfula do que a teoria já exprime, e seria inofensivo, sem espaço para o escândalo pretendido, seu elemento vital. Há decomposição e rearranjo, mas não dissolução: no sonho o mundo das coisas aparece de forma mais velada, sem se apresentar tanto como realidade. (Adorno, 2008:136)

“Performance” é compreendida aqui como sequências de unidades momentâneas, em sua concepção e em dado ambiente. A partida para este estudo de obras audiovisuais se dá no corpo, lugar da impermanência e do movimento. Ou, no corpo em movimento que se apresenta como processador de comunicação. Renato Cohen lembra que a performance é antes de tudo uma expressão cênica, e deve ser entendida como uma função do espaço e do tempo; algo precisa estar acontecendo naquele instante e local. (Cohen, 2007:27)

O aspecto fundamental da performance é que ela é um ato de comunicação – sujeita às circunstâncias e situação em que o trabalho se dá. Ela ultrapassa a necessidade do uso de uma mídia ou suporte determinados (video, teatro, instalação, dança) e compreende a obra como o experimento de uma linguagem, cuja intenção dramática irá determinar a pertinência desta ou aquela ferramenta de realização. O ato performativo do autor é que trará suas próprias necessidades de expressão - que melhor representarão o estado que ele quer comunicar. O que está em jogo na performance é o sentido. Suas categorias básicas de compreensão são expressão e conteúdo (Glusberg, 2003:67).

Em sua origem a performance passa pela body art; a body art desloca o foco do produto para o processo, da obra para o criador, onde o artista é sujeito e objeto de sua arte. Ela assume o corpo como suporte artístico. O artista transforma-se em atuante, agindo como um performer.48 (Cohen, 2007:19) Este “fazer a si mesmo” seria representar algo (no plano do simbolizar) em cima de si mesmo (estadunidenses denominam “self as context”).

Nos anos 1970 as experiências são mais sofisticadas e conceituais, incorporando tecnologia e maior senso estético, dando início à performance art. O artista da performance funde linguagens da dança com o teatro, o video, não se compondo de forma harmônica ou linear. Teatro e imagens em movimento são empregados não como forma única de expressão: “há dança e música simultaneamente, mas a dança não coreografa a música; cada elemento cênico tem um valor isolado e um valor na obra”. (Cohen, 2007:51) Os traços que caracterizam a linguagem da performance tampouco se estruturam numa forma aristotélica (com começo, meio e fim e linha narrativa). Quando a performance pende para um discurso visual, é a intenção dramática que vai aproximá-la mais do teatro que da dança, acrescenta.

48 Ao nível do conceito e da prática a performance advém de artistas plásticos, e não do teatro, afirma Cohen. A

performance se colocaria no limite das artes plásticas e cênicas, sendo uma linguagem “híbrida, mantendo a primeira enquanto origem e a segunda enquanto finalidade.” (Cohen, 2007:30)

A história passa a não interessar tanto, e sim como aquilo está sendo feito.49 Regina Melin (2008) lembra ainda o caráter autobiográfico da performance, muito presente em grande parte de obras das últimas décadas. A obra passa a existir onde o artista está (como acontece com o conceito de ateliê nos anos 1950), e é destacada como ação, cuja qualidade consiste em realizar. Trata-se de compreender o processo como obra. (Melin, 2008:54)

Para a antropóloga grega Nadia Seremetakis nossos sentidos estão emaranhados de história, memória, esquecimentos, narrativa e silêncio. (Seremetakis,1994:2) Os sentidos seriam aparatos que operam além da consciência e da intenção. A interpretação dos e pelos sentidos se torna experiência, e a performance vem assim de dentro tanto quanto é estraída do externo e da história. (ibidem:6)

Este entendimento do como se dá a realização da obra, e o entendimento de que a obra, enquanto ação, também se dá onde o artista está, contribuem muito para a feitura dos dois videos, aos quais chamo de videoperformances, “Olympia” e “Coppelia”, que se passam justamente em ambientes domésticos potencializados por ações de corpos em contato com objetos ou memórias autobiográficas.

O pesquisador Peter Pál Pelbart (2003) apresenta o gesto “não como o meio pelo qual se age ou se produz, mas como aquilo por meio do que se assume, se suporta. (...) O gesto transforma um fato num acontecimento; ele se basta, como na dança – é um meio sem finalidade.” (Pélbart, 2003:69)50

Pélbart destaca que é preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo. Ele sugere que corpo é sinônimo de uma certa impotência; “ao defender-se ele se abre para acolher a variedade das afecções sutis, e torna-se ativo a partir de seu sofrimento primário, da sensibilidade elementar, das dores e da afetação originária – torna-se ativo a partir da passividade constitutiva, sem negá-la.” (Pélbart, 2003:74) Assim o brasileiro apresenta seu corpo informe: “frágil, próximo do mundano, em posturas que tangenciam a morte: corpo moribundo, embrionário, inerte, desfeito, mas que encarna uma

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O conceito de “texto” seja entendido no sentido semiológico, como um conjunto de signos que podem ser

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