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1 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SAO PAULO PUC-SP

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Academic year: 2019

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SAO PAULO

PUC-SP

Monica Toledo Silva

Imagem em ação:

para um cinema do corpo

DOUTORADO EM COMUNICAÇAO E SEMIOTICA

SAO PAULO

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SAO PAULO

PUC-SP

Monica Toledo Silva

Imagem em ação:

para um cinema do corpo

DOUTORADO EM COMUNICAÇAO E SEMIOTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutora em

Comunicação e Semiótica, área de

concentração Signo e significação nas

mídias, sob a orientação do Prof. Doutor

Arlindo Machado.

SAO PAULO

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Banca Examinadora

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

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Dedicatória

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Agradecimentos

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RESUMO

Esta tese propõe o entendimento do cinema como uma narrativa do corpo, e sugere que a realização de uma obra audiovisual seja um ato de performance. Para isto proponho a compreensão de algumas obras audiovisuais como cinemas do corpo, partindo da fenomenologia do filósofo Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e de parte das ciências cognitivas e do entendimento do corpomídia. Sugiro que o cinema de alguns autores dialoga com os conceitos do corpo enquanto fenômeno, a partir do modo como criam imagens no ambiente audiovisual a partir de meios de significação cinematográficos como a montagem, a direção e o roteiro. Proponho a feitura da obra atado ao corpo vivo do autor, às suas imagens pessoais, memórias e imaginação, que recriam representações pessoais em obras que são sempre processos de pensamento de um corpo vivo, portanto instável e inacabado. Interessam a esta pesquisa os meios narrativos de construção de conteúdos corpóreos no meio audiovisual – que se extende do filme à videoarte, videoperformance, videoinstalação, conforme a apropriação da mídia e suportes com os quais cada autor se identifica em cada obra. O pesquisador Noel Burch discute representações pessoais e propõe novas possibilidades no discurso fílmico a partir do entendimento das ações como provisórias. As obras de Gus van Sant (Paranoid park, 2007) e Krzystof Kieslowski (Não matarás, 1988) criam uma narrativa do corpo vivo representada nos códigos cinematográficos, e servem como ponto de partida para meus comentários sobre outros filmes dentro da proposta do cinema do corpo. Cada um a seu modo, estes dois autores constroem um cinema liberto da narrativa clássica e mais próximo de um pensamento-ação. Um cinema como a difusão de estados do corpo em imagem-movimento; a obra audiovisual como um fragmento do tempo e espaço e um ato de performance. Este pensamento em ação como modo de organizar a obra conduz também a realização de duas obras em video, às quais chamo videoperformances, inspiradas na personagem Olympia de E.T.A. Hoffmann; trata-se de dois experimentos pessoais da narrartiva proposta, descontínua e fragmentada, partindo do corpo como signo comunicativo no ambiente audiovisual.

PALAVRAS- CHAVE

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ABSTRACT

This thesis proposes the understanding of cinema as a body narrative, and suggests that the making of an audiovisual piece is a performance act. In order to comprehend some audiovisual pieces as cinemas of the body, I draw from the phenomenology of Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) as well as the cognitive sciences and the paradigm of the mediabody theory (teoria corpomídia). I suggest that some cinema artists' works point to the concepts of the body-as-phenomenon, from the way they create images in the audiovisual environment to modes of creating sense, such as the montage, the direction, and the script. I contend that the making of a work is part of a living body, of the author’s own images, memories and imagination, re-creations of personal representations in works that are always thought-processes belonging to a living body, therefore unstable and unfinished. The main focus here are the ways narrative constructs body-contents in the audiovisual environment – from film to videoart, videoperformance, videoinstalation, depending on the media appropriation with which each author identifies himself best in each work. Cinema scholar Noel Burch, in discussing personal representations, departs from the understanding of actions as provisories in order to propose new possibilities in filmic discourse. As I present the idea of a cinema of the body, the works of Gus van Sant (Paranoid park, 2007) and Krzystof Kieslowski (A short story about killing, 1988) are taken as narratives of the living body represented on the cinematic codes, thus working as starting points to my comments on further film works. Each on his own way, these authors construct a classic narrative-free cinema, and closer to an action-thought cinema (pensamento-ação): a cinema that diffuses body states in moving images; the audiovisual piece as a fragment of time and space, and a performance act. The idea of action-thought also leads to two video pieces made by myself, in an artistic experiment of the very narrative I am mapping out throughout the thesis: discontinuous and fragmented, body narratives. The body is thus posed as a communication sign in the audiovisual environment, and the action-thought as the way to organize a film.

KEY-WORDS

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SUMARIO

I. A narrativa no fluxo da imagem

Introdução...9

1. A short film about killing (Krzystof Kieslowski)...11

2. Paranoid park (Gus van Sant)...18

3. Resíduos de uma teoria e forma...23

4. O cinema: expressão do movimento...37

II. Performances do imaginário

1. A montagem da realidade...48

2. O corpo no contexto audiovisual...64

3. O sentido em trânsito...83

4. Olympia: da autômata à videoperformance de um corpo...95

III. Paisagens para o corpo

1. O pensamento-ação...103

2. Performances no tempo-espaço...115

3. Coppelia...129

Conclusão...137

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I. A narrativa no fluxo da imagem

Introdução

Esta tese parte da hipótese de que o processo de realização de uma obra audiovisual seja recheado de imagens do corpo do autor, em um tipo de cinema onde o corpo atua como uma presença impregnante no próprio sentido da obra. Nesse contexto proponho que a feitura de um filme seja um ato de performance de seu autor, a quem atribuo as funções de roteirista, diretor e montador.

Esta performance do corpo do autor se dá a partir do seu universo imaginário, sua concepção do argumento, direção – cênica, sonora, gestual – e montagem, a partir dos recursos desta linguagem; ela permite perceber um certo cinema simultaneamente como linguagem do corpo e discurso fílmico: descontínuo, situacional, fragmentado, plural. A obra como uma expressão do pensamento-ação. A expressão e o sentido que se dão no fluxo de imagens.

Para tanto, as abordagens teóricas desta pesquisa abrangem estudos que se diversificam por filósofos e cientistas que pesquisam o corpo como mídia e como fenômeno, abordados para comentar aspectos das teorias de cinema, que ao longo do último século dão pistas para tornar este discurso possível.

Proponho analisar narrativas audiovisuais sob esta perspectiva do corpo vivo, portanto composto por vazios, repetições, ambiguidades, incompletudes, expressas nos signos fílmicos ou ferramentas criadoras de sentido no ambiente audiovisual. Esta pesquisa sugere que a criação de imagens seja uma performance do corpo do autor, que traz para a obra uma representação de suas próprias imagens e formas de abordar aquele tema.

O termo “performance” que será trabalhado aqui refere-se ao sentido de ato performativo, de acordo com o que o filósofo da linguagem britânico John Langshaw Austin se refere em suas ideias sobre o performativo, onde falar é fazer, diferenciando atos de descrições. Para Austin a fala é uma forma de ação: a fala que encena, não que relata. A partir deste entendimento de ato performativo desenvolvo minha proposta do cinema que se encena como corpo.

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no corpo, em suas ações e pensamentos, anula a possibilidade de um discurso linear – proporcionando situações sempre provisórias, permitindo que a própria mídia do cinema seja ampliada a outros suportes, como o video, espetáculo, instalação e evento de uma forma mais ampla.

Não interessam a esta pesquisa o percurso de um corpo que recebe as informações, como as percebe e o que faz com elas. A presença do espectador, suas expectativas, seu repertório, suas imagens, contexto cultural etc, são questões de grande magnitude que seriam de grande valor mas aqui estão excluídos em virtude da complexidade e abrangência que trariam.

Este recorte teórico não contempla tampouco o que poderiam ser outros estudos do corpo nesta linguagem artística, como a interpretação do ator, sua gestualidade, as imagens que traz consigo e como compõe seu papel em cena, assim como a criação do figurino, da iluminação, a produção, (como o corpo do produtor dá vida ao roteiro decupado), em última análise o que poderia dizer respeito à distribuição da obra no mercado, geograficamente, estrategicamente. São todas resoluções do corpo, ou de um corpo que em algum momento se faz presente e determina os rumos da obra. Estamos centrados na feitura, que abrange funções hoje muitas vezes praticadas pela mesma pessoa, o diretor-autor da obra.

Dois videos fazem parte da tese. Esta produção criativa se fez fundamental durante o processo investigativo, que é uma pesquisa teórica e de linguagem autoral, portanto de experimentação. Meu universo como realizadora dialoga com o meu entendimento da obra audiovisual como performance do meu corpo.

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1. A short story about killing (K. Kieslówski)

“Até hoje nenhuma punição foi capaz de melhorar o mundo.” Piotr Balicki, citando Caim em sua entrevista de emprego.

A riqueza das obras e das abordagens de Gus van Sant e K.Kieslówski com suas linguagens distintas alimentam a hipótese de que as narrativas do corpo no filme são tão autorais quanto múltiplas, tão específicas quanto abertas. Ambos desenvolvem em suas filmografias narrativas marcadas por diálogos enxutos, trilha sonora diegética, com raro uso da música, e ênfase no poder das cores e das imagens. Transformam palavras em poesia visual. As formas narrativas e de representações de ações são infinitas, tanto do corpo quanto do cinema.

Em “Não matarás“ (1988) Kieslówski nos coloca na mente do protagonista, um jovem assassino. Há uma tristeza passiva no personagem, em seu vagar silencioso solitário pelas ruas de Varsóvia. A solução poética é dilacerante para tratar a violência e a pena de morte, nos gestos contidos do protagonista, em contraposição à figura do exuberante e jovem advogado que vai defendê-lo. Com uma linguagem muito particular, filmando em super8, o autor explora espaços abertos e vazios da cidade, periféricos, para compor os silêncios quase onipresentes do personagem, e criar paisagens correspondentes a seus estados mentais e uma profunda melancolia que deixa de ser passiva na cena do crime.

O diretor também cria recursos cenográficos para compor paisagens correspondentes a estados emocionais de seus personagens em sua trilogia das cores; em “A liberdade é azul“ (1993) ele explora as composições musicais como discursos narrativos do corpo, na história de uma personagem que perde a família num acidente e tenta se recompor. O amor e a perda estão refletidos nos azuis que permeiam todo o filme, e que junto com a composição sonora do ex-marido, presente em muitas cenas, são sua memória viva. A música como metáfora de uma memória que não se apaga, o azul como a impossibilidade de nos livrarmos de nossa própria história. “A fraternidade é vermelha“ (1994) é recheado de vermelhos para tratar de uma amizade improvável entre duas pessoas solitárias; analisar a filmografia deste diretor é um trabalho extenso que não “cabe“ aqui, mas muitos de seus filmes podem ser pensados como cinemas do corpo, como será comentado.

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René Clair, por exemplo, explora a montagem como linguagem expressiva máxima de criação de conteúdo, "submetido" às ordens da expressão. A montagem do filme assume o papel narrativo de narrar os percalsos da vida de um ou de vários personagens, inseridos num ambiente ao qual a forma do filme se submete. Da mesma forma outros cineastas recorrem por vezes à cenografia para criar paisagens ou personagens correspondentes a estados emocionais. Seguindo o mesmo raciocínio, o polonês K.Kieslówski explora músicas temáticas como discursos narrativos do corpo (“A liberdade é azul”), Resnais trabalha com a memória do corpo vivo (“Muriel”, “Hiroshima meu amor”), Fellini aborda os sonhos (“Julieta dos espíritos”, “Oito e meio”), Murnau as inquietações e delírios existenciais (“O último homem”), Godard os próprios pensamentos de diretor (“Nossa música”, “Elogio ao amor”), etc.

Christine Greiner (2007) aponta autores que buscam compreender a complexidade de ações do corpo e de modos de sobrevivência em realidades díspares que lidam com a perda de identidade, com a violência urbana, representações da perda e discursos da morte, em processos pessoais de (in)comunicação. Os autores comentam por exemplo o conceito de zona cinzenta criado por Primo Levi (1958), que aborda um campo de indistinção onde não é clara a definição de papéis, a difusa linha de distinção entre a vida e a morte, entre o estar ou não exposto à morte, desenvolvida por Giorgio Agamben, e a necessidade de se dar visibilidade ao “outro” e a seus diferentes modos de representação, defendida por Marcos Reigota.

Greiner sugere que “muda o público e o tempo da morte, mas o aspecto performativo e comunicativo permanece.” (2007:12). A pesquisadora afirma que viver não é apenas um conjunto de fatos, mas sim possibilidades de vida, e entende nossa exposição à morte hoje como o princípio mais radical de (in)comunicação com o outro. Especialmente, ela e outros teóricos apontam para uma performance da perda.

Sinto-me muito atraída pelo termo “performance da perda”, por compreendê-lo como representante de realidades muito distintas (vivenciadas por exemplo pelo palestino, pelo muçulmano, o imigrante ilegal, o refugiado de guerra, o colonizado, o analfabeto, o mendigo, a vítima de violência, etc...), como sinônimo de uma alternativa de sobrevivência em contextos cada vez mais variados que demandam estratégias pessoais que envolvem resistência cultural, herança histeorica, certa força física e emocional, uma memória social e afetiva, além da capacidade de se adaptar, de se reinventar, ou em outras palavras, de ter a imaginação como sobrevivência.

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assassinato, cometem o crime e permanecem numa espécie de limbo comunicativo, um espaço aparentemente neutro onde não há perigo – para refugiar-se num olhar passivo da cidade, que mais se apresenta como uma coadjuvante em ambos os filmes, personagem cúmplice de uma vida vazia de afeto, que vaga pelos ambientes assépticos dos centros urbanos. Não há futuro à vista.1

Os meninos vivenciam, cada um a seu modo, performances da perda. Alex a experiencia nas sequências que antecedem a do crime, quando tem uma presença quase insignificante no desenrolar de uma vida urbana alheia que não lhe diz respeito, que não o enxerga, que não o inclui. Já Jacek, ao contrário, vivencia a perda depois da experiência com a morte (no entanto talvez já lidasse com ela antes, em seu modo de vida blasé, tão comum entre jovens de sua realidade social, se consideramos morte também a falta de uma “comunicação ativa” com o outro, que envolva uma vida comunitária, com divisão de problemas e ajudas mútuas por exemplo); depois do crime o garoto tenta se comunicar, procura os pais, ainda que sem êxito; sabemos o que pensa, acompanhamos sua agonia silenciosa pelo recurso de seu pensamento em off ao longo do filme, enquanto escreve um diário.

As duas obras têm naturalmente muitas diferenças estéticas e seus respectivos diretores-autores imprimem nelas suas ideias e representações para estes sentimentos e situações experimentadas pelos personagens. No entanto ambos Alex e Jacek vivenciam uma condição comum de invisibilidade: não dividem seu drama com ninguém, relatando o episódio; não têm participação familiar, ou parentes que sejam presentes e atuantes em suas vidas; optam pelo silêncio, pelo vagar pela cidade e observar o mundo, num estado de deriva.

Assim como não o fazem os diretores dos dois filmes estudados, não é meu intuito julgar os autores dos crimes, comentar o prejuízo social ou moral que causaram, discutir se o meio em que viviam é fator determinante dos atos, opinar sobre a Constituição daqueles países (EUA e Polônia), defender sua liberdade em função da curta idade ou relacionar seus atos à solidão, ao vazio ou à vida urbana contemporânea em suas qualidades potenciais, como o anonimato e o tédio. Procurei fazer uma leitura aberta, comentando elementos, cenas, planos e propostas de construção de sentido e de representação de sentimentos a partir do ponto de vista do diretor e dos usos dos signos audiovisuais dos quais se propuseram a dispor.

Muitas diferenças separam os dois personagens: um é condenado, o outro não. Um não verbaliza o sentimento, o outro sim (ainda que apenas para si). O primeiro abandonou a família e o segundo vive com ela (mas não consegue se comunicar em função da distância desta). E talvez o mais importante:

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o primeiro comete o crime com calma e lucidez (ou assim o percebemos), enquanto o outro o faz num susto e mata inconscientemente, num ato de defesa.

“Não matarás” se apresenta numa montagem simultânea de uma passagem da vida de nosso anti-herói, Jacek Lazar, com a de seu advogado, Piotr Balicki. O advogado se abre em forma de depoimento, narrado em primeira pessoa, sua imagem em off, enquanto acompanhamos suas ações – não há simultaneidade da imagem com o som (com excessão da cena dos pombos).

Nas sequências urbanas o tempo passa, o olhar se acomoda com o fluxo da cidade, transitório. A opção do diretor de filmar em Super8 acentua um caráter pessoal e atemporal, transferindo o relato para um tempo e um espaço quaisquer – ficamos um pouco suspensos, vagando pelas ruas de Varsóvia, como nosso personagem, sem rumo aparente.

Jacek joga uma pedra do viaduto, provocando um acidente que não é visto por ele ou por nós; só ouvem-se batida e buzina. O taxista oferece seu sanduíche para um cachorro na rua, da janela de seu carro. Jacek derrumba e machuca um homem no banheiro. O advogado passeia de moto, feliz, aborda um motorista no sinal vermelho, que lhe fecha o vidro na cara. Uma torcida passa por Jacek duas vezes na rua. Uma cigana lhe roga uma praga. E muitas vezes, como um sinal: a presença da polícia com soldados nas calçadas.

Outra cena que se mostra como uma pista é um plano de detalhe do espelho retrovisor do carro do taxista, enquadrando Jacek. Alguns momentos trazem densidade, ou pistas para percebermos enfim algum drama ou dilema pessoal, como quando o jovem pergunta na loja de fotografia se “é possível ver se a pessoa está morta numa fotografia”. No último diálogo dele com seu advogado compreenderemos que a menina da foto é sua irmã, e como sua morte lhe dizia respeito. Compreenderemos também, finalmente, o que o levara a abandonar a família para viver só, sua culpa, seu ódio, seu vazio.

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Durante a sequência do crime, enquanto os dois se debatem dentro do carro, uma bicicleta passa calmamente, depois buzina no vazio. O audio: a buzina, as pauladas. O rapaz sái do carro pensando que o trabalho está terminado. Vê pelo retrovisor (repetição do mesmo plano descrito anteriormente) que o homem sobreviveu às pauladas na cabeça. Câmera baixa, plano fechado, ele batendo.

“Jesus.”

O homem continua vivo. Plano fechado do rosto em sangue, olhos abertos. Acompanhamos então esta sequência: plano detalhe do pé do assassino; a rua em preto e branco; barro; ele arrasta o corpo vivo até a beira do lago; a camisa cobre o rosto, sufocado com sangue e falta de ar:

“Imploro.”

Câmera alta, plano fechado no rosto da vítima, sendo esmagado com uma pedra grande – cinco pedradas. Sol baixo. Ele liga o rádio do carro, que toca uma música infantil.

Este plano-sequência lembra uma direção documental, pois segue alguns preceitos desta linguagem filmográfica (luz natural, locação externa, audio diegético, sem cortes, tempo real). Mas curiosamente o diretor restringe este recurso a esta cena crucial. Kieslówski é um dos autores cuja linguagem ultrapassa delimitações simplórias, e transita bem entre ficção, documento, poesia, história, como o fazem Godard, os irmãos Dardenne, Resnais, etc., como será comentado posteriormente.

Muito curiosamente o único diálogo que o protagonista trava com alguém em todo o filme (à parte do Sr. Balicki, antecedendo o cumprimento de sua pena)2 é quando tenta dar informação a um motorista e passageiro que o abordam na rua para perguntar onde fica um lugar. Eles são estrangeiros e ele não fala qualquer outra língua além do polonês, tornando o diálogo simplesmente impossível, e reduzido a tentativas de pergunta em duas ou três línguas difentes e respostas gestuais de sua parte, quase franzindo a testa ou o queixo ou subindo os ombros em descaso.

A montagem simultânea que domina o filme como recurso narrativo do diretor se ausenta em duas partes: na última, do julgamento em diante, quando réu e advogado se encontram no mesmo espaço (fórum e penitenciária), e em meados do filme, quando ambos se encontram no mesmo café, no entanto ainda sem se conhecerem. Muito interessante esta montagem paralela: o primeiro remói o

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tempo (dando nós numa corda por debaixo da mesa), o segundo celebra com sua companheira o emprego recém obtido. E lhe diz: “Há um momento em que tudo é possível.”

Jacek nos lembra que ainda é um menino, ao menos em mais dois momentos. No café da montagem paralela descrita acima, brinca com duas meninas através do vidro – joga sorvete nelas, e elas riem. Ele sorri também, neste gesto único no filme. Em outro momento vai chamar sua amiga pra uma volta de carro, e se diverte um pouco, deixando-nos perplexos (o carro é o do taxista, recém assassinado).

Após o passeio de carro uma elipse nos leva ao seu julgamento. A cena tem início com a frase:

“A sessão está encerrada.”

O advogado se despede dele acenando-lhe um thau da janela. Ali no fórum suas vidas se encontram e põem fim à montagem simultânea que percorreu o filme.

Segue-se em tempo real a preparação da forca pelo funcionário da penitenciária. De novo, o recurso do tempo real e a inspiração documental sugerem uma crueza, um não pensar na morte, que passa por corriqueira. No fim seu superior ainda entra e lhe diz:

“Limpe o chão.”

Como um parêntesis na história, uma curta sequência em planos fechados dos dois, quando Jacek lhe pede para buscar a foto da primeira comunhão da irmã, Marysia, na loja, e levar à sua mãe.

Num plano de cinco minutos, cobre o rosto (possivelmente chora), conta da morte da irmã de doze anos, atropelada por um trator dirigido por um amigo, há cinco anos. E acrescenta:

“As coisas poderiam ter sido diferentes.”

Em contraposição ao silêncio e à calma que preenchem o quase monólogo anterior, entram na sala soldados fazendo muito barulho, gestos exagerados e movimentos rápidos. Pegam ele por todos os lados, agarrando-o e arrastando-o pra fora da cela. Algumas frases da rápida sequência que antecede sua forca:

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“A sequência deve ser executada.” (...)

“Quer um cigarro?”

E o réu responde:

“Sem filtro”.

Muitas sutilezas se repetem neste e em outros filmes de Kieslówski (na “Trilogia das cores” por exemplo). O diretor leva a marca em sua obra de espalhar sinais que se repetem não só dentro de uma obra mas entre os filmes. O livro de Slavój Zizek “Lacrimae Rerum” (2006) levanta e comenta várias delas, extensamente. Uma destas repetições em “Não matarás” é a imagem final do advogado chorando sentado dentro do carro com a porta aberta, num idêntico plano de um dos momentos do crime, quando Jacek pensa já ter se livrado do motorista e respira um pouco.

Campo verde, luz baixa. Piotr chora copiosamente, sentado no carro, com a porta aberta, como na cena do crime.

Krzysztof Kieslowski em sua obra “Decálogo” realiza dez filmes sobre os dez mandamentos cristãos, num intuito de entender porque os desobedecemos. “Não matarás”, correspondente ao decálogo 5, é posteriormente transformado no longa comentado acima. O decálogo 6, “Não cometerás adultério” também será adaptado no longa “Não amarás” (1988). O diretor polonês afirma em entrevista3 que trabalhou com nove cinegrafistas distintos nestes dez filmes, e confirma que “O meu sucesso estava na autonomia do trabalho deles.” Quer dizer, o roteiro, a direção e a montagem, executadas por Kieslowski, garantem ao conjunto do “Decálogo” uma singularidade que vem de seu modo de pensar e agir e que não se altera ao trabalhar com equipes sempre difentes. Sua marca pessoal está lá impressa no som e na imagem.

Anos mais tarde ele roteirista três filmes a partir da “Divina Comédia” de Dante Alighieri: paraíso, purgatório e inferno, mas não chega a filmá-los em razão de sua morte. Dois doss filmes homônimos viriam a ser realizados por Tom Twyker (“Paraíso”, 2002) e Danis Tanovic (“Inferno”, 2005). Nestas histórias novamente é perceptível o traço do polonês, carregando suas crenças sobre a humanidade

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e sua maneira particular de interpretar os temas que ele acha importantes, “sentimentos e coisas simples”, de acordo com ele próprio: medo, ódio, amor, morte, Deus, solidão, ciúme.

2. Paranoid park (Gus van Sant)

O pensamento claro oferece um mundo esgotado. Antonin Artaud (1961:17)

“Paranoid Park” (Gus van Sant, 2007)4 traz o estreante Gabe Nevins como Alex, garoto de 16 anos morador de Portland (Oregon, EUA), que se divide entre a escola e o skate. O filme é baseado no livro homônimo de Blake Nelson, lido por van Sant, que imediatamente o roteiriza.

A estética do filme lembra muitas vezes a linguagem do videoclipe, com a câmera passeando entre os skatistas pelas pistas, em movimento constante e ângulos diferentes, mantendo-se literalmente no fluxo, em belos e variados planos-sequência. O movimento do skate é o universo de Alex, sua vida social, seu entretenimento predileto, de observar os outros em silêncio, e também seu momento de estar sozinho e de pensar na família.

A música, bastante variada, é pontual e surge em momentos de passagem de Alex – enquanto anda no corredor da escola, indo de um lugar para outro, ou é diegética, como quando se desloca de carro (e então ela indica a passagem do tempo). E parece sempre acompanhar o seu ritmo de andar e olhar. Ela sempre surge em pequenos trechos e acaba abruptamente, como se a atenção do jovem se desviasse e ele começasse a pensar em outra coisa. Muitos cortes também são assim, não ocorrem ao fim da cena mas antes dela, simulando bem a atenção dispersa de Alex.

Alex escreve um diário desde o início do filme, e avisa: “Vou acabar colocando tudo no papel. Estou escrevendo tudo fora de ordem.” Ouvimos sua voz em off quase sempre que escreve, acompanhando seu pensamento. No entanto este recurso não é nenhum facilitador, já que a montagem do filme – assim como a ordem de seu pensamento – não é nada sequencial. Muitas vezes ele caminha até a praia, perto de casa, atravessando uma área verde, e lá se senta num banco a escrever. Várias cenas são vistas assim, em flashbacks, que ele se lembra para acrescentar à história.

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Muitas vezes a velocidade da cena é alterada dentro do mesmo plano-sequência, simulando a própria percepção do garoto das coisas e sua atenção dispersiva. Assim vemos muitos momentos, em slow motion. O audio diegético também tem falhas e interrupções.

Seus pais estão separados e vão se divorciar em breve. A mãe surge em poucas cenas curtas e nunca vemos o seu rosto. O pai, distante, participa de um diálogo também curto. Encontros familiares são brevíssimos e quase monossilábicos, e antevemos a dificuldade típica de sua idade em manter um diálogo e ao mesmo tempo a ausência dos pais. Tal ausência da família só é cortada pelo irmão de 13 anos que num momento tenta se comunicar contando-lhe uma longa piada. A criança carente de atenção ainda acredita que o recurso do diálogo vai funcionar e aproximá-los. Há também uma namorada, Jenniffer, que por duas vezes se aproxima em diálogos curtos, típicos da idade e dos jovens casais que não sabem bem o que conversar nem como proceder.

Alex é chamado na escola para prestar um depoimento a um investigador da polícia. Somos pegos também de surpresa. Do que se trata? Não sabemos de nada – ele não disse nada no diário, a esta altura do filme. Tampouco desconfiamos de algo – ele não se mostra surpreso e nem inseguro. Mas numa das cenas posteriores ele está de carro comprando sanduíches num drive-thru e então vemos que mentiu: depôs que consumiu algo e comprou outra coisa, e em outro lugar. Mas seguimos sem saber de nada.

Em sua vida os registros são como a sua memória: os amigos de skate olham e brincam com a câmera, como em registros mentais afetivos ou uma filmagem doméstica; pessoas na rua têm os olhos cobertos como em reportagens da tv; a captação da imagem é de baixa qualidade. São suas imagens pessoais, sua rotina, afetos em visualidades.

“Curti o lugar logo de cara. Os caras construiram o lugar ilegalmente, sozinhos. Skatistas bêbados, guitarristas punks, moleques largados, caras que pulavam de trens. A sua vida familiar podia ser ruim pra caramba, mas a desses caras era muito pior”, escreve sobre a primeira ida a Paranoid Park, um parque de skate, onde vai convidado pelo amigo Jared.

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A montagem, como ele avisa no diário, segue um tempo não cronológico. Passagens de cenas se repetem para dar continuidade a acontecimentos não revelados antes, ou para revelar coisas que ele pensou mas não tinham aparecido antes, como a fala de Jared fque ouvimos duas vezes, de quando chegam a Paranoid park: “Que lugar maneiro! A gente tem que voltar no sábado.” Mas de novo a cena não vai até o fim. Nova elipse já mostra Alex sozinho na casa de Jared, lavando a roupa, vestindo outra e em seguida desistindo de fazer uma ligação.

A montagem descontínua é levemente confusa, em similaridade ao seu estado mental. Em conversa com a amiga, Macy, descorimos que ele terminou com a namorada. Mas em seguida ele ainda está com ela: esta cena acontece antes, logo após sua segunda ida a Paranoid park.

Alex sai de carro com Jared para o parque, e este lhe pergunta porque ele comprou outro skate – nem Jared nem nós sabemos, pois não vimos nada.

O jovem vê o noticiário da tv anunciando uma morte não acidental de um guarda da estação de trem que fica próxima ao parque de skate e fica muito assustado, demonstrando medo (leva a mão à boca com olhos arregalados).

No fim de semana do crime Jared viajou para Oregon. Nós já sabemos que Alex foi sozinho ao parque: vimos parte da cena, interrompida pela elipse que já mostra Alex limpando e trocando de roupa.

Segunda chamada de Alex, agora com outros skatistas, pelo investigador da polícia na escola. “Eu tinha tentado apagar aquela parte da minha memória, mas a foto me fez lembrar de tudo”, ele diz em off enquanto rasga folhas do diário e simultaneamente no flashback fica sem reação com a foto nas mãos, sendo encarado pelo detetive – em slow motion. Alex levanta o braço; corta pra ele vomitando no banheiro. Agora, aos 43 minutos do filme, vemos a sequência do crime.

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A montagem sonora de muitas vozes lhe dão sugestões de como proceder e conselhos diferentes, enquanto ele caminha só pela cidade sujo de sangue. De novo uma cena se repete: agora ele está na casa de Jared, limpando-se e vemos agora a continuidade: ele entra no chuveiro e fica ali um bom tempo com a cabeça baixa, até se agachar no chão.

De novo sequências de uma captação doméstica em vhs representam seu pensamento: em movimento incessante. Montagem paralela enquanto ele está na cama pensando no que fazer. Segue cena da ligação que ele tinha interrompido antes – não consegue concluir a chamada, desliga o telefone. Pensa em ir ver o pai, mas vai para o shopping, onde vê o jornal, compra um skate (o seu foi jogado num rio depois do crime), patina com amigos e tem a primeira relação sexual com a namorada.

As sequências interruptas parecem análogas à sua atenção. Sua mente confusa e culpada, sem muito discernimento sobre como proceder ou a quem recorrer. Vai ver o pai, mas não lhe diz nada. Termina com a namorada – com a câmera subjetiva, só vemos ela em plano médio olhando pra ele; ela fala, e não ouvimos nada; ela se assusta, se aborrece, grita com ele, sái. Fim do namoro, compreensível sem qualquer recurso oral.

A amiga Macy lhe sugere contar tudo numa carta para desabafar e depois queimá-la ou dar para um amigo ler. Então aí ele começa a escrever: esta cena próxima do fim do filme daria início ao seu começo, em ordem cronológica dos acontecimentos. Ele dirige a escrita do diário a ela, mas vai à praia e queima tudo numa fogueira. Fim.

A desconexão da imagem com o som recriaria o estado de espírito do personagem. Para Danila Bustamante5 Paranoid Park “recria a realidade como obra de arte” (...) e se apresenta como “um processo de aceitação de um evento traumático do personagem”. Gus van Sant dirige sua trilogia composta pelos filmes “Last days”, “Gerry”, e “Elephant”, com Harris Savides como diretor de fotografia. Na opinião de Christopher Doyle (diretor de fotografia de “Paranoid park”) esta trilogia é “uma das execuções mais belas e completas de uma ideia”. Doyle afirma sua admiração pela trilogia de van Sant e em “Paranoid park” tenta “seguir em frente sem perder a conexão, compartilhar alguma coisa; como fazer uma jornada junto onde você leva a sua própria bagagem.” 6

5 Em trabalho realizado para a disciplina “realidade e ficção”, ministrada por mim em 09/2008 no Centro

Universitário Belas Artes de São Paulo. 6

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Doyle faz uma parceria bem sucedida em oito filmes de Wong Kar-Wai (dentre os quais “Dias selvagens”, “Felizes juntos”, “Amores expressos” e “2046”), é autor de um conjunto de obras visuais único. Sem estudos formais, agrega experiências como pastor de vacas (Israel), poceiro (India), marinheiro num navio cargueiro (Noruega) e doutor de medicina chinesa (Tailândia), dentre outras coisas, e acredita “completamente” que esta vivência foi a sua escola de cinema. Doyle exemplifica com excelência o que venho chamando de cinema do corpo. Suas experiências de vida, as relações adaptativas que seu corpo foi encontrando ao longo do tempo em lugares tão diferentes, as formas como categoriza as informações do ambiente, foram-se consolidando num trabalho altamente individualizado.

Doyle é conhecido pela espontaneidade nos sets de filmagem e por trabalhar em filmes sem roteiro (como “Amor à flor da pele”) de Kar-Wai: “Você pode fazer anotações extremamente meticulosas, mas na hora de filmar você joga fora o roteiro. Você tem que fazer isso. (...) É um pouco como fazer uma escultura, tem que se livrar da pedra pra ver o que realmente está dentro dela. (...) Você ganha e perde com isso, assim como no tai chi, a base das artes marciais. Você segue um caminho e trabalha para remover o desnecessário.

O “desapego” de Doyle com a construção formal de um filme, e sua compreensão da obra como um jeito que o corpo achou pra se organizar naquele instante, estende-se ao seu entendimento da arte como processo híbrido: “Acho que os filmes têm as mesmas qualidades da música. Têm repetição, ritmo, uma energia emocional espontânea. Como o jazz improvisado, você começa com um solo, segue para um tema, então todos tentam acabar juntos.

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3. Resíduos de uma teoria e forma

Dramaturgia é um trabalho de modulação do sentido. Marrcelo Evelin7

Minha abordagem dos filmes “Não matarás” e “Paranoid park” exclui possíveis suposições internas do autor – o que ele sentia ou vivia ao fazer o filme – o que importa é como ele dialoga com seu corpo e traz conteúdos pessoais que irão definir a forma do filme. O autor cria a obra: com seu repertório de imagens, memórias e imaginações; o autor performa no audiovisual. A performance é uma imagem (ou som) do seu corpo. A imagem que ele compõe (enquadramento, fotografia, direção cênica, direção de arte e de atores) é uma performance de seu corpo.

Os dois filmes comentados abordam duas mortes. Em ambos não há luto, não há funeral, não há cadáver, não há corpo: o acontecimento da morte é tratado com silêncio. Ele só se dá na mente dos protagonistas, autores dos crimes. Não há diálogo ou defesa dos assassinos. São mortes contemporâneas cuja abordagem trata da falta de crenças e de afetos. Angústia, abandono, abjetos: performances dos corpos dos autores das mortes na imagem.

As duas mortes são anônimas: não sabemos nada da vida dos mortos; eles não nos são apresentados com uma história ou pertencimento a um grupo social ou familiar. Portanto não são reconhecidos, o que provoca uma consciência do vazio, visível no tratamento estético de ambos diretores: imagens vazias em movimento, de ambos personagens, a pé ou de skate, da câmera fixa em planos abertos ou da câmera em movimento do ponto de vista do skate.

Não há sentimento de perda, taxista e vigia não são insubstituíveis, não são indivíduos. Num certo sentido os próprios autores dos crimes não são insubstituíveis – Jacek é sozinho, e Alex tem família que não o vê nem o escuta (quando tentar procurar ajuda dos familiares ninguém lhe dá atenção). Dois estados de potência instalados em silêncios que não comunicam: silêncios na escassez da fala, na ausência de música e de diálogos. Dois ensaios sobre a morte juvenil sob a forma de tragédias informes.

O ambiente é quem fala: o corpo estendido na paisagem, o vazio como grito. São filmes modernos: protagonistas passeiam pelas cidades quase todo o tempo, flanêurs do nosso tempo; dois corpos à deriva. Os filmes não são documentários, também não se enquadram à ficção tradicional, tratam-se

7

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mais ao certo de realidades fragmentadas. Ambos diretores são imparciais e não expõem em nenhum momento pena pelos criminosos nem pelas vítimas, menos ainda impõem um julgamento implícito de dever ou culpa ou justiça. Sentimentos situam-se à margem: dos enquadramentos, das texturas acinzentadas, dos jovens criminosos que parecem interagir mais com a câmera que com outros personagens.

A dilatação do tempo, expressa em cenas longas, planos-sequência, abertos e fixos ou em movimento constante (muitas vezes com a câmera fixada no skate) sugere um exercício de pensamento dos dois jovens. Os dois filmes (“Não matarás” e “Paranoid park”) também têm narrativas até certo ponto também abertas, no uso dos recursos como plano sequência (no primeiro em quadros fixos, no segundo em movimento) e uso restrito do recurso oral. Ambas as obras, através destas estéticas por vezes opostas, abordam o espaço íntimo de um protagonista em crise, situação subjetiva e contemplativa do universo em crise dos personagens.

Além das especificidades de cada obra comentadas anteriormente, há considerações sutis: “Não matarás” apresenta um movimento de dentro pra fora; o corpo se desloca. E Jacek é condenado à morte (e morre). Já o corpo de Alex em “Paranoid park” sugere um movimento de fora pra dentro; além disso ele pensa – o ouvimos em off. O vazio no entanto preenche ambos.

Uma diferença, explícita e primordial, está no tratamento do autor com o tema da morte. Kieslowski faz largo uso dos planos-sequência com a câmera fixa, que parece potencializar o tédio de Jacek e sua falta de perspectivas ou de um lugar aonde ir. A câmera fixa nos planos abertos é como seu olhar que contempla lá e cá e segue quase sem ação. Já van Sant opta também pelos planos-sequência mas em movimento constante da câmera, que mais parece estar num skate, sempre se deslocando, como o corpo de Alex, skatista, que vê o mundo em movimento. As visualidades criadas pelo recurso da câmera super-8 (no primeiro filme) e pela estética do videoclipe (no segundo, representando bem a vida do jovem) também conferem a estas duas obras um caráter singular.

O outro diferencial entre as duas obras refere-se ao crime e suas consequências. Jacek o faz conscientemente, no meio da narrativa, enquanto Alex mata sem querer logo no início. Também o desfecho de ambos é oposto: Jacek vai a julgamento (ainda que sejamos poupados de todo esse processo, numa elipse que já nos leva à penitenciária), é preso e condenado. Alex não. Permanece incólume “apenas” com sua consciência.

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filme: mesmo quando Jacek é morto, num último grito surdo no fim da vida. Permanece um eco, um vazio que ecoa e perdura ao fim da obra. A dilatação do discurso a partir dos dois filmes se dá ao trazer termos, conceitos, teorias, que desembocam como fenômenos do corpo – de um corpo impregnante na forma. A consciência como processo.

Os filmes de Kieslowski e van Sant tratam do afeto em uma condição ausente que parece apta a conduzir as ações de Jacek e Alex, guiados por uma consciência cada vez mais silenciosa, visível nos longos planos-sequência. A subjetividade de ambos protagonistas se dá no ambiente, na paisagem que parece abraçar estados emotivos conflituosos (o tédio e solidão de Jacek, a angústia de tentativas de comunicação frustradas de Alex), que, à deriva, tornam-se contemplativos.

Dentre outras obras, e juntamente com os dois filmes comentados acima, cria-se um olhar epistemológico do corpo. Uma narrativa do corpo no cinema é precisamente uma obra aberta: um corpo como um filme. “Não matarás” apresenta uma dilatação do tempo que é pensamento internalizado do personagem; “Paranoid park” traz o sentido por um triz – a representacão do quase.

A ação do autor permeia o filme de noções particulares. Imagens e performance que compõem a obra são ações de um corpo particular. Proponho o entendimento da obra como o discurso de um corpo gerador de imagens. Organização de conteúdos do corpo em forma de pensamento por imagens. Esta ativação (de ficções, imaginações, memórias, em forma de falas múltiplas, momentâneas e simultâneas, gerando um discurso que se perde e se repete ao longo do tempo e espaço) dialoga com a abordagem de filmes que tratam o corpo como fenômeno.

A montagem neste cinema do corpo é a performance de um pensamento. O filme é um pensamento em processo, uma ação audiovisual de um corpo sempre em estado de ensaio e potência. Acredito que as práticas audiovisuais ao longo da história do cinema apresentam uma diversidade narrativa e técnica que ultrapassa as teorias formais do cinema, que felizmente nas últimas décadas vêm abraçando estudos de autores das “novas” mídias, das mídias móveis, e de outras artes como artes visuais e cênicas. A diversidade de linguagens audiovisuais converge com a criação de narrativas corpóreas, que encontram nela um vasto território para representações de conteúdos do corpo. A seguir apresento brevemente a evolução dos principais estudos do cinema, para permitir o entendimento e a possibilidade deste cinema do corpo como emergência teórica e criatva.

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consciência, que por sua vez se relaciona a um certo silêncio, que está intrínseco numa certa paisagem que por sua vez ilustra uma certa emoção. Assim é o pensamento-ação no cinema do corpo: enredado. Do mesmo modo, a opção pelos filmes comentados é pessoal: eles interagem com os meus afetos e imagens.

À parte das influências das outras artes, como a pintura e a literatura, o chamado “primeiro cinema” parece mais fiel à representação do processamento de informações do próprio corpo, em sua organização livre e descontínua com a qual se expressa nos discursos de comunicação. De acordo com Flávia Cesarino (2005) expressa seus discursos através de uma estética que agrega várias linguagens, do circo à dança, da fotografia à música. Como no início do século XX não havia convenções ou quaisquer regras de continuidade, o corpo no cinema surgia livre em suas manifestações várias de emoções e ações, não domesticado, como sugere a autora. Em outras palavras, este cinema aproxima as linguagens do corpo e do filme, elevando-os a um universo essencialmente imaginativo.

O “primeiro cinema”, que existiu até cerca de 1906, de acordo com Flávia Cesarino (há divergências), demonstra intensa carga criativa nas expressões de seus personagens e no uso de recursos, e ao mesmo tempo um descompromisso com qualquer forma narrativa clássica ou linear. O cinema de então não era considerado sequer arte e nem era bem visto pela burguesia, para não mencionar a elite; era uma forma de entretenimento marginal e livre de qualquer censura ou moralidade. Anos se passaram até que os nickelodeons mostraram-se lucrativos para a indústria, e a partir de então criaram-se os códigos de conduta e de realização para esta mídia que até hoje domina o mercado.

O cinema passa por uma primeira fase de extrema criatividade e liberdade expressiva em suas primeiras décadas no continente europeu, até que a indústria estadunidense a partir dos anos 1920 cria categorizações e regulamenta o trabalho da equipe, especializando profissionais (que se tornam então técnicos, assistentes, cinegrafistas, roteiristas, produtores, atores e assim por diante, extinguindo aos poucos a realização mambembe e apaixonada dos primeiros realizadores com seus escassos recursos financeiros) e tornando enfim o cinema uma indústria lucrativa, traduzida essencialmente na indústria de Hollywood.

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inversamente gerou uma simplificação generalizada, da concepção do roteiro ao uso da câmera, direção de atores e evolução narrativa linear, a fim de ser compreensível para o grande público. Assim o impulso aventureiro das imagens em movimento se esvái até se tornar tal qual o conhecemos hoje, uma repetição de clichês que funcionam (a reação do espectador é em grande parte “dirigida” por cenas previsíveis) e uma sucessão de cortes e montagem velozes e cada vez mais furiosos.

Simultaneamente, aquele início de século nos EUA presencia Charles Chaplin e Buster Keaton, que instauram o cinema burlesco, a meu ver a grande contribuição deste país à história do cinema, por sua grande inventividade, e celebrando a cada obra uma reinvenção da linguagem estética e narrativa, com alta carga expressiva no uso da câmera, no contexto das ações e desenrolar das histórias (abstratas, surreais, cômicas, dramáticas...) que não tinham necessariamente um eixo cronológico e se davam por elipses temporais, espaciais e com o largo uso de lentes e efeitos imagéticos e sonoros (quando se dispunha desse recurso).

Para Xavier a tendência a interpretar as “conquistas” do cinema estadunidense de 1908 a 1914 como um cinema particular (dentro dos limites de convenções dramática ou narrativas) “condiz com o método clássico inscrito pela estética dominante cumprindo seus interesses de classe. (...) A idéia aristotélica de perfeição e organicidade dramática, a composição do enquadramento numa imagem funcional, sem ambiguidades ou espaço supérfulo na tela – como deve ser a proposta realista – se contrapõe a um cinema abstrato, como o expressionismo alemão, criticado por cineastas russos e pela vanguarda francesa, que atacam a estilização da interpretação e da cenografia. O problema é expressar uma visão de mundo que capte a essência dos fenômenos, e não só a aparência. O plano é um signo, não uma fotografia (estática)”. (Xavier, 1977:48)

Da mesma maneira, é um engodo a crença de que cinema é testemunho da existência. O realismo é próprio a um método de construção ficcional, afirma Xavier, e cada método é uma visão da realidade, ou uma representação mediada por uma subjetividade. Para Pudovkin ser realista é “estabelecer relação justa entre fenômenos.” A arte realista é forma de conhecimento da realidade exterior e independente da consciência, que envolve a imaginação no trabalho de representação artística. A arte realista é histórica: ela se relaciona com o processo da realidade objetiva. (Xavier, 1977:55)

Desde o início do século XX alguns teóricos propuseram um estudo da linguagem do cinema vinculado ao funcionamento da mente humana. Entre eles Bela Balazs e Hugo Munsterberg8, que

8

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criam analogias do filme com aspectos irracionais e racionais da mente, quando ainda muito pouco se sabia acerca do funcionamento das emoções, do processamento da atenção, imaginação, memória e sonhos na mente humana.

Munsterberg, psicólogo e teórico deste primeiro cinema, relaciona a moção à emoção e faz disso um campo para o cinema, do ponto de vista psicológico. Ele reconhece o agente subjetivo e assim acessa a dimensão da emoção fílmica. O mundo objetivo dos eventos se ajusta aos movimentos subjetivos da mente. Nas imagens em movimento, ideias imaginativas se tornam realidade.9 Para ele o cinema é um veículo de atividade psicológica e de emoções situadas no contexto em movimento (moving realm). A imagem em movimento é ela mesma uma forma de transporte, age como uma passagem.

Um dos trabalhos mais elaborados, que referencia o aspecto da racionalidade cognitiva da mente é feito por estre autor alemão das primeiras teorias do cinema da era muda. Em 1915 Munsterberg inicia suas pesquisas e propõe mostrar que a mídia do cinema, apesar de sua proveniência fotográfica, pode reconstituir imaginativamente qualquer imagem registrada; que o modo cinemático de transformar a realidade é diferente do modo teatral; e que esse modo de transformação implementa o propósito geral da arte. O teórico estadunidense Noel Carroll acrescenta que se o cinema como mídia pretende ser uma fonte de arte, ele deve fazer mais que imitar. E isso implica em mostrar que o filme não precisa copiar a realidade, nem ser reprodução mecânica de dramas teatrais. (Carroll, 1994:294)

Recursos são modelados em atos genéricos da atenção, memória e imaginação humanas, de modo que a maneira como eles operam poderia ser explicada por analogias aos processos mentais. A edição paralela no filme para Munsterberg é uma retificação da capacidade mental de dividir a atenção ou de distribuir seu interesse sobre um número de eventos, praticamente ao mesmo tempo. Mas a questão para Carroll é, por quê transformar a realidade de modo que a representação final mimetize a mente, e com isso considerá-la uma transformação artística? (Carroll, 1994:296)

A brasileira Ronsangela Rennó há vários anos trabalha com a questão da memória em várias de suas obras, apropriando-se da memória alheia, ou melhor, trabalhando com imagens como álbuns de fotografias de desconhecidos, fotos 3x4 de pessoas anônimas, geralmente criando a partir de arquivos fotográficos. Este material bruto já vem carregado de afeto, no entanto um afeto que não lhe diz

9 Este é o fundamento de “The photoplay: a psychological study”: “The photoplay tells the human history by

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respeito, e as formas de exibição de seus trabalhos também dialogam com possíveis tratamentos estéticos e apropriações, conforme são exibidos em galerias de arte (instalações como “Inmemorial”, “Bibliotheca“ e às vezes acompanhadas de objetos, como “Menos valia (leilão)”) e festivais de video (“Espelho diário“, onde ela se encarrega de filmar a própria rotina). Rennó investiga a própria noção de realidade e imaginário, nos sentidos de história e ficção, já que uma imagem num novo contexto espaço-temporal (e pessoal) adquire novas nuances de sentido.

Há uma forte tendência cultural em assimilar o cinema com noções de realidade e realismo. Outra tradição tenta conceituá-lo como análogo à mente humana, caracterizando os processos cinematográficos como se fossem modelados por processos mentais. Na 2a década do século XX já havia a tentativa de se construir uma abordagem teórica baseada nas analogias filme/mente, e ela continua a influenciar muitas teorias contemporâneas da semiótica psicanalítica. Teóricos como Christian Metz e Jean-Louis Baudry desenvolveram noções elaboradas do funcionamento do filme via analogias mentais; também abordam o filme e processos mentais irracionais.

Baudry cria noções sobre o sonho noturno, Metz sobre o sonho diurno. Elas são bastante diferentes das de Munsterberg porque abordam o filme e os processos mentais irracionais, enquanto as analogias deste último são pensadas como racionais – mas são todas sucetíveis às mesmas limitações, pontua Carroll. “A crítica se justifica ao explorar analogias mente/filme onde isso promove como a mais plausível interpretação um abjeto desinformativo, em função do nosso nível de conhecimento sobre a mente. Não aprendemos nada da afirmação de que filmes são como o daydream ou night dreams quando não sabemos nada de sonhos”, finaliza Carroll. (Carroll, 1994:296)

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Autores da história do cinema tampouco dialogam dialeticamente; muitas hipóteses foram passando e poucas foram descartadas, lembra Carroll. Ele alimenta essa proposta e nos lembra que o cinema não deve se submeter à realidade (no entendimento do senso comum): “Apesar da forte tendência cultural em assimilar o cinema com noções de realidade e realismo, há outra tradição também persistente, que tenta conceituá-lo como análogo à mente humana, caracterizando os processos cinematográficos como se fossem modelados por processos mentais. Ambos são impregnados em nosso pensamento fílmico. Para Carroll é necessário mostrar as duas coisas: que o filme não precisa copiar a realidade e nem é reprodução mecânica de dramas teatrais.”10 O fato de os filmes serem tendenciosamente narrativos está relacionado com o modo como os humanos descrevem suas ações, “picturializando-as”, descrevendo-as em palavras. “A narrativa é provavelmente nosso modo mais pervasivo e familiar de explicar a ação humana.” (Carroll, 1994:87) Esta tendência dominante nos estudos fílmicos é lacaniana; por sua vez a abordagem de Bordwell para falar dos modos como a montagem do ponto de vista atende os propósitos narrativos é cognitivista, uma alternativa à psicologia. (idem:132)

Os anos 1980 trazem a tentativa de oferecer à teoria fílmica uma alternativa, com a teoria psicanalítica-marxista-semiótica, ampliada pelo feminismo lacaniano, e os estudos de Noel Carroll e David Bordwell nos EUA. Essa alternativa cognitivista se opõe aos processos inconscientes na explanação da comunicação e compreensão cinematográficos. (Carroll, 1996:321) Eles fundam a teoria do cinema cognitivo via psicologia para compreender os efeitos fílmicos, e são uma importante alternativa ao entendimento psicanalítico e interpretativo que dominará os estudos fílmicos nos anos 1970 e 80.

Ao longo dos anos 1980 as ciências cognitivas têm impacto substancial sobre estudos do cinema. A dominância teórica até então da teoria semiótica-psicanalítica da posição-subjetiva perde seu prestígio para os estudos culturais “por sua incapacidade em produzir um espaço conceitual que sustente uma práxis”, na opinião de Allen e Smith (2004:83). Por sua vez a filosofia analítica, tida mais como abordagem do que doutrina, e o relativismo auto-refutante, como sugerem os dois, alimentam a opinião de que grande parte da teoria do cinema se relaciona a preocupações com o significado e a avaliação humanística, e julga a metodologia científica inadequada ao exame destas questões. (idem:104)

10

 

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Para o cinema a alternativa caracterizada como cognitivista explora processos cognitivos em detrimento aos inconscientes, mas para Carroll ela não é uma teoria unificada. Seus proponentes dividem algumas convicções, como o fato de seus modelos oferecem respostas melhores que os psicoanalíticos a muitas questões teóricas do cinema.

O ponto de vista subjetivo é destinado a ativar nossa capacidade de reconhecimento do modo que identificamos o estado emocional global do personagem relevante. (Carroll, 1994:130) A montagem de um ponto de vista sujetivo pode oferecer informações sobre a emoção – em termos gerais, em categorias globais; mas as emoções nos filmes são mais requintadas. Como a estrutura do ponto de vista nos leva da atribuição da emoção global para as mais específicas? Contudo, o que especifica uma emoção particular pra nós é a apreensão do motivo, que na representação pictórica em geral coincide com a causa da emoção.

O flashback no filme é análogo ou equivalente funcionalmente à memória, enquanto o flashforward corresponde à imaginação. Mas o que quer dizer isso? O close up deveria ter as mesmas características que objetos de atenção têm na consciência, mas isso não ocorre. (Carroll, 1994:301) Carroll se apresenta cético em relação ao uso de recursos como o close-up e os flashbacks: “dizer que o close up exemplifica a capacidade da mídia de objetivar os processos mentais por ser análoga à atenção, e assim por diante, é uma suposição que não parece confiável.” Ele considera “a estrutura filosófica da teoria fraca e instável”. “Flashbacks apresentam imagens sequencialmente e não são análogos fenomenologicamente à memória imagética. Talvez a sobreposição se assemelhe mais a essa memória, ainda que também não seja adequada. Do mesmo modo, se construímos suas analogias fenomenologicamente, esse argumento cinematográfico é falso.” (Carroll, 1996:298)

Para Burch, à exceção de Resnais e de alguns poucos filmes isolados, a função temporal do flashback e suas relações com as outras funções temporais nunca foram bem assimiladas. Tratava-se apenas de um recurso narrativo emprestado do romance, da mesma forma que o comentário em off (que começa também a assumir outras funções). (Burch,1969:28) Burch sugere que “ao invés de discutirmos as analogias em termos de fenomenologia, podemos pensá-las como funcionais: o close up e a atenção são funcionalmente análogos enquanto performam a mesma função (foco seletivo) em sistemas diferentes, o cinemático e o psicológico.”11

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Na 2a década do século XX já havia a tentativa de se construir uma abordagem teórica baseada nas analogias

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“As questões estratégicas, ferramentas para o quando, o como, podem estar na visualidade, no diálogo, ou implícitas na ação. A representação pictórica, a variação do enquadramento e a opção narrativa atribuem aos filmes sua acessibilidade (...). As estruturas de percepção e cognição são exemplos primários dessas características humanas inerentes. Podemos sugerir os modos pelos quais os filmes são realizados para excitar as estruturas perceptuais e cognitivas”. (Bordwell, 1996:92)

Analogias de atenção, memória e imaginação não têm força explanatória se nós temos tão pouca informação acerca da natureza e estrutura da mente. E Munsterberg não nos diz nada a respeito do funcionamento delas, conclui Carroll. (1994:302) Assim, desconstrói grande parte das argumentações de pesquisadores que se sustentam na análise fílmica a partir de analogias e metáforas12. Pra Carroll o filme está ligado a uma liberdade de dimensões psicológicas e metafísicas; ele reconstitui o mundo exterior assim como a mente faz. As formas de arte, como o filme, que mimetiza nossos processos psicológicos, ultrapassam o realismo de estados presentes sequenciais. Mas isso não nos faz diferença quando encontramos obras de arte organizadas nos modos como já negociamos as formas externas de tempo, espaço e causalidade, comenta. (idem:298)

“A psicologia humana pode ser pensada como capaz de ultrapassar o tipo de experiência de formas externas do espaço, e as formas de arte, como o filme, que mimetiza nossos processos psicológicos, ultrapassa o realismo de estados presentes sequenciais.” (Carroll, 1996:300) Bordwell e Carroll avançam a proposta de leitura do filme como um processo do corpo, proponto novas leituras e possibilidades de discurso ao analisar obras desde a perspectiva fenomenológica.

A fenomenologia nasce na segunda metade do século XIX, e parte da intencionalidade e da interpretação dos fenômenos que se apresentam à percepção. Ela propõe a extinção da separação entre "sujeito" e "objeto", opondo-se ao pensamento positivista da época. Merleau-Ponty é o filósofo expoente do pensamento fenomenológico.13 Sua investigação sobre a percepção, a partir da fisiologia, psiquiatria e psicologia traz noções importantes de forma, estrutura, intenção e sentido. Para ele o corpo é expressão e linguagem, visado enquanto fenômeno capaz de apreender o sentido do gesto - fenômeno da organização corporal. Este sentido do gesto não é dado, mas compreendido; a comunicação acontece pela reciprocidade entre as intenções de um e os gestos do outro. Na expressão emocional dos gestos são os indícios da linguagem como fenômeno autêntico; antes de sua expressão está a ausência, que o gesto ou linguagem procura preencher.

12

Metáfora para Lakoff&Johnson é entendida como produto da imaginação poética, e como todo tipo de deslocamento de pensamento e ação. (Greiner, 2010:47)  

13

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Nos anos 1950 a fenomenologia gera teorias da psicologia, música, literatura, mas não no cinema – na opinião de Ayfre e Agel. Em “As principais teorias do cinema” (1989) Amedée Ayfre e Henri Agel comentam que a fenomenologia de Sartre e Merleau-Ponty é contra a filosofia materialista e anti-humanista do estruturalismo e da semiótica, que para eles entende a arte como um produto da situação. Agel opõe a fenomenologia à semiótica: “a verdade não pode ser reduzida à lógica.” (Ayfre, 1989:194) Na opinião de ambos os semioticistas só contemplam o cinema de significado (exemplificando o cinema de Eisenstein) e negligenciam o de contemplação (no qual não é o homem que fala na tela, mas a natureza).14

A fenomenologia vê a arte como um mundo de possibilidades, e dá menos importância à razão: “a racionalidade é só um modo de comportamento, uma forma de se aproximar da realidade e responder a ela.” (Ayfre & Agel, 1989:195) As teorias são secundárias; as atividades deixam a natureza realizar-se na imaginação, de acordo com Merleau-Ponty. A arte é para o filósofo o lugar onde passamos do visível ao invisível, a exemplo dos poetas românticos; ela é “gesto formal que organiza nosso corpo e imaginação em resposta à experiência.” (apud Ayfre, Agel, 1989:195). Por fim, para Merleau-Ponty15 a arte é atividade primária (passagem da lógica para experiência) e intuitiva.

No entanto “a teoria fenomenológica do cinema é reducionista”, afirmam Ayfre e Agel. “A fenomenologia é negligente com a linguagem cinematográfica – Merleau-Ponty enfatiza o “gesto da mente” que transcende o sistema linguístico que o cria.” (Ayfre & Agel, 1989:199) Para a fenomenologia, assistir a um filme é “um processo de interpretação de signos da natureza e signos do homem, a partir de nossas perspectivas pessoais.”. Eles sugerem investigar momentos quando a

14

O teórico Jean Mitry tem como bases as fenomenologia de Husserl, Merleau-Ponty e Sartre, e a filosofia da duração de Bergson. Aproxima-se do realismo revelatório de Bazin e do cinema-discurso deste teórico, apostando que um cinema inscrito nas convenções de linguagens (ou seja, criado) é irreal. Mitry desenvolve uma psicologia das condições da percepção da imagem, e elabora considerações sobre a natureza da imagem em todas as direções: imagem e palavra, imagem fílmica e mental, imagem e lógica. Ao discernir a essência de cada fenômeno visual, tem como resultado a noção de imagem que não se descola do real, ainda que não seja “essencialmente objetiva”. Por essa razão Mitry apresenta uma crítica radical a Bazin.

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linguagem de signos do cinema se torna outro tipo de signo, com o qual “o atomismo da semiótica não pode lidar”. (idem:201)

Burch também propõe novas possibilidades do discurso fílmico desde a perspectiva fenomenológica, ou a partir do entendimento dos sentidos das ações corpóreas como provisórias. Ele também explora as ficções do corpo no discurso do filme, suscitando relações entre representações individuais e olhares com memórias e imagens. Tais considerações vão de encontro à proposta desta tese, de abordar narrativas do corpo que passam por ficções e que elaboram dialéticas em vários níveis, como os diálogos do próprio corpo no ambiente.

O acaso é entendido por Burch como um conjunto de acontecimentos manifestos dramática ou plasticamente, e não diz respeito apenas à representação ou às ações dos atores. A absorção do acaso de modo empírico ou oportunista, a exemplo dos hollywoodianos, gera possibilidades de montagem restritas, opina, e “estabelece uma composição formal de complexidade mínima”. (Burch, 1969:139)

A montagem e a articulação do espaço-tempo são discursos construídos pelo teórico de cinema Noel Burch, também de grande importância para o entendimento de um cinema do corpo. A abordagem explorada por este autor, juntamente com observações pontuais de Carroll e Bordwell, que se dedicam também à teoria da narrativa.

É o montador quem primeiro contempla os extraordinários materiais que o mundo do acaso oferece ao poder criador de sua tesoura. Alguns cineastas passam a abordar a realização de um outro ângulo. Para muitos a escolha das lentes e da posição da câmera resultam tantas possibilidades que a reestruturação da ação na montagem transforma-se em seu principal campo de ação – o momento em que sua vontade pode ser exercida com uma liberdade tão maior quanto maior for o leque de possibilidades disponíveis.

Referências

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