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DO CORPO COMO CAMPO DE EXPERIÊNCIA À LEITURA COMO EXPERIÊNCIA ESTESIOLÓGICA: UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA

que não se percebe em suas últimas obras, principalmente em O Visível e o Invisível Nesta, o filósofo se interessa pelo êxtase, pela vibração que a sensação causa na carne e, com isso, tenta estabelecer sua

DO CORPO COMO CAMPO DE EXPERIÊNCIA À LEITURA COMO EXPERIÊNCIA ESTESIOLÓGICA: UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA

As reflexões de Merleau-Ponty vai de encontro aos saberes produzidos pela ciência do corpo que o esquadrinha, o determina, o fragmenta e o molda com olhos anatômicos voltando-se para esse corpo e produzindo conhecimento com fins apenas objetivo. Enquanto os estudiosos de anatomia e fisiologia querem explicar como funciona o corpo, os estudos de Merleau-Ponty se afasta dessa leitura e quer entrar justamente em contato com o modo como as pessoas o experimentam. O que está em jogo é o modo da pessoa perceber- se e perceber o corpo como si mesmo e não como ele funciona. O corpo não é instrumento funcional, ele é um campo de experiência e de sensações.

Eu não vivo, nem sobrevivo sem o corpo. Sendo minha condição de vida e de conhecimento, ele é condição primordial da minha existência. Ao produzir continuamente sentidos, o corpo me insere ativamente no interior de um espaço social e cultural dado. O corpo não é somente biológico, ele é também social, histórico, afetivo e sinérgico, possuidor de dupla referência. “Nosso corpo, como uma folha de papel, é um ser de duas faces, de um lado coisa entre as coisas e, de outro, aquilo que as vê e toca” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 133). Esta dupla referência do corpo nos fala de uma reversibilidade que é própria do ser carnal.

Merleau-Ponty na obra “O visível e o invisível” (2009) nos instiga a aprender a ver como atos perceptivos, reversibilidade do visível e do tangível que se abre para a intercorporeidade do ser, estendendo- se para além das coisas que tocamos e vemos. Ao evidenciar a relação entre a mão que apalpa e a mão apalpada, ele anuncia o sentir como aderência carnal que se movimenta do sensível ao sentido e do sentido ao sensível. Isso decorre, segundo este filósofo, “[...] porque minhas duas mãos fazem parte do mesmo corpo, porque este se move no mundo, porque me ouço por fora e por dentro; sinto, quantas vezes quiser, a transição e metamorfose de uma das experiências na outra, tudo se passa como se a dobradiça entre elas, sólida e inabalável, permanecesse irremediavelmente oculta para mim” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 143). Esse

entrelaçamento desvela a relação que o corpo vidente-visto instaura consigo, com o outro e com o mundo da cultura e da natureza por meio do olhar implicado na reversibilidade da carne.

Trata-se da carne como enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, elemento concreto de uma maneira de ser geral. “A carne não é matéria, não é espírito, não é substância” afirma Merleau- Ponty (2009).

Merleau-Ponty introduz o conceito de carne do mundo para mostrar que há uma espécie de anterioridade de algo sobre a visão, que não é descritível em termos objetivos, pois que toda manifestação visível é membrura de um mesmo Ser. Pelo conceito de carne, Merleau-Ponty considera o sensível no duplo sentido daquilo que se sente e daquele que sente, segundo a perspectiva de uma reversibilidade do sentir e do sentido em que se atestam a diferença irredutível e sua mútua implicação. [...] a carne é realmente aquilo que afeta a si próprio, apenas sendo afetado por outro, ou seja, ela é uma espécie de envolvente-envolvido, que contém aquilo que o contém (CAMINHA, 2009, p. 345)

Por esse entendimento de carne, significa dizer que eu não somente afeto o mundo mas também sou afetada por ele. Eu não somente o vejo mas me vejo e sou vista por esse mundo. Eu não somente o toco mas também me toco e sou tocada pelas coisas. Nesse movimento, a carne é uma “espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua”. Ela é o princípio de indivisão e estofo comum a todos os seres. Na experiência perceptiva, entre aquele que percebe e o percebido, pode-se conceber o ser carnal como ser das profundidades, de várias camadas e faces, ser de latência e apresentação de certa latência. Não se trata de uma identidade, mas uma diferenciação que se apresenta como estilo e dimensionalidade.

A ideia de leitura da visualidade como experiência estesiológica emerge dessa concepção de carne proveniente desses estudos merleaupontyanos. Tomando como base essa compreensão de carne, ousamos pensar um movimento de um sujeito leitor que não somente vai ao texto imagético, mas um movimento no qual esse texto também afeta o leitor. Pensamos um leitor não somente atribuindo sentidos à visualidade, mas a própria leitura doando sentidos a esse sujeito leitor. A própria palavra, carne das letras e a própria imagem, carne da visualidade afetando e mexendo com esse leitor, o transformando e ao mesmo tempo mudando o mundo que o cerca.

Neste sentido, não há leitor da visualidade sem imagens. É como se um não pudesse existir sem a presença do outro. A experiência da leitura, neste caso, é estesiológica. A medida que leio eu construo e doo sentidos e sendo afetada por esses sentidos eu ressignifico, reinvento, recrio e me transformo. De acordo com Nóbrega (2010, p. 99), “a estesia é uma noção trabalhada por Merleau-Ponty em seus cursos de Collége de France. Essa noção anuncia um corpo que é capaz de sensação, mas também de expressão, de comunicação e de criação”. Sendo assim, o corpo que sente e tem capacidade de ação, move-se e ao mover-se ele lê e expressa comportamentos motores, silêncios, gestos simbólicos e culturais criando sentidos para a existência na relação com o outro, consigo mesmo e com o mundo. Ao criar sentidos o corpo ressignifica, muda, transforma-se.

Diferentemente da noção de sensação explicada pelo intelectualismo e empirismo, a sensação em Merleau-Ponty está ligada ao conjunto de relações, das memórias, das experiências de vida, ou seja, experiências vividas. Trata-se do corpo estesiológico que é um corpo de sensação, capaz de abrir-se para o mundo atribuindo-lhe sentidos, ressignificando-os, criando e recriando. O corpo em movimento expressa o ser e o agir no mundo com o mundo, compreendendo que a aprendizagem é corporalizada e na produção do conhecimento há uma relação interdependente entre sentir, vida, corpo, mundo e cultura.

Do ponto de vista da fenomenologia de Merleau-Ponty, o corpo pode ser comparado à arte porque diz respeito ao inacabamento do ser. Como uma obra de arte, ele é uma expressão contínua, inacabada e a obra de arte se compara a fenomenologia por ser o inacabado de uma reflexão. Sendo a obra contemplativa tanto para quem fez, como para quem a olha, ela produz novas significações, novas informações, novas excitações, situações novas que continuam a se produzir cada vez que a olhamos e somos afetados por ela, assim como

o corpo que está continuamente construindo sentidos. Assim como a arte, o corpo jamais é apreendido por completo. Uma relação indissociável entre sujeito e objeto.

Sendo a arte expressão do potencial do ser, nela o sujeito coloca seu potencial intelectual e seu potencial de emoção. Sob o olhar da fenomenologia merleaupontyana, percebe-se aqui que arte é qualquer tipo de manifestação do sujeito humano perante uma concepção de vida sensível, na qual ele estabelece um contato entre aquilo que ele imaginou, aquilo que ele percebe e aquilo que ele obtem da natureza e torna presente na obra de arte. Esse sujeito é um ser de dupla visibilidade que busca uma expressão perceptiva e a obra de arte amplifica o enigma do visível e do invisível. Conforme Merleau-Ponty (2013, p. 19) “O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no que vê então o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo”. Se por um lado a arte nos possibilita olhar para além do óbvio, por outro lado o olhar habita o corpo vidente-visto e estesiológico.

Nessa perspectiva, pelo olhar vivencia-se a leitura como uma experiência sensível do corpo implicada no campo da visualidade. A imagem seja oriunda de quaisquer artefatos da cultura visual, seja um objeto artístico ou elementos provenientes da natureza, nos afeta e somos afetados por ela. A reversibilidade da carne põe a imagem pelo avesso pondo a leitura da visualidade como acontecimento do olhar sempre aberto a infinitas interpretações, ressignificações e reinvenções.

A EXPERIÊNCIA dA LEITURA: um acontecimento do olhar

Considerando os argumentos discutidos anteriormente, rememoramos aqui e agora, vivências de leitura experienciadas pelo educador Paulo Freire no auge da sua infância. Na obra intitulada “A importância do ato de ler”, referente a um trabalho apresentado na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em novembro de 1981, Freire (2011) revive e recria a experiência vivida quando ainda não lia a palavra enquanto uma decifração de códigos linguísticos. Escutemos, então, este ícone da educação brasileira narrar sua aventura de leitura, denominada por ele de leitura do mundo:

Ao ir escrevendo este texto, ia “tomando distância” dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura do mundo”, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavra mundo”. [...] Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. [...] . Os “textos”, as “palavras”, as letras daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros [...]; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; [...] no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; [...] no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. (FREIRE, 2011, p. 20 – 21)

A escuta sensível da narrativa de Paulo Freire permite perceber que a experiência de ler não pode ser compreendida única e exclusivamente como um ato funcional e decodificável, realizado por um sujeito separado do objeto. A experiência da leitura, nesse contexto, parte do entendimento de que “as coisas se imbricam umas nas outras porque elas estão fora uma da outra” considerando a relação entre corpo-vidente e mundo percebido implicado no campo visual. Sendo assim, o aparecimento do mundo se faz na relação entre as coisas e o corpo situado nele. Movimento de reversibilidade entre visibilidade e invisibilidade. Nesse caso, a leitura é uma experiência viva fundamentalmente uma experiência visual.

Por haver esse imbricamento entre o olhar de Paulo Freire e o mundo percebido, a casa, o quintal, os pássaros, as árvores, o vento, o céu, as flores e os frutos afetam Freire de tal maneira que sua experiência de ler tem cheiros, cores, sons, sabores, texturas, gestos, movimentos. A leitura manifesta-se como uma experiência viva e vivida. No seu mundo vivido, as coisas o tocam e doam sentidos e desse campo perceptivo ele se apropria da leitura como reversibilidade da carne. E a partir das suas experiências, afirma “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 2011, p. 19). Nestas vivências nas quais os “textos”, as palavras” estão encarnadas na natureza, no lugar e no entorno onde o educador morava durante a infância, o corpo inteiro movido pelas sensações apreende a leitura com todos os sentidos como um acontecimento do olhar.

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