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O corpo como mata-borrão

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 193-196)

5.1 Concepções de saúde e doença de profissionais da AMEMG

5.1.1 Dos conceitos

5.1.1.2 O corpo como mata-borrão

No Espiritismo, o corpo é uma veste que o espírito utiliza para se depurar dos males que cometeu entrando em discordância com a Lei de Deus. Nas palavras de Kardec,

O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada vez algumas impurezas. Com o abandonar o seu invólucro corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara. Não o veem, mas compreendem-no melhor; a luz é menos difusa. (Kardec, LG: 67).

Os profissionais entrevistados tratam o corpo como mata-borrão, algo que o espírito possui para drenar e limpar suas impurezas. A doença, portanto, faz parte desse sistema de limpeza espiritual. O corpo é instrumento do espírito:

[...] tenho que usar um corpo físico, drenar essas feiuras, essas energias ruins desse corpo físico. Através do sofrimento, da doença. (M4).

Como a estrutura do corpo material é dependente dos fluidos universais e das várias camadas corpóreas do perispírito, os chamados corpos sutis, é necessário apresentar a doença no físico para depurar os outros corpos. A

doença se apresenta como recurso de depuração e preservação dos corpos sutis.

São os corpos sutis tentando se preservar. É uma preservação dos corpos sutis através da exoneração do corpo mais denso. É o que está acontecendo. O corpo físico é um “mata-borrão”. (P2).

[...] o corpo vai funcionar ali como um canal de cura. O corpo vai contar, o corpo vai expressar, o corpo ensinar. (P1).

Na concepção médico-espírita, a estrutura que está doente é a do espírito. O corpo físico assume o papel de uma espécie de “mata-borrão”, sendo, portanto, o aspecto material por onde se reflete a condição desse espírito imperfeito. Essa leitura do corpo se aproxima da que encontrou Guimarães (2006), estudando práticas terapêuticas em terreiro de Umbanda. A autora percebeu que, nos terreiros estudados, a doença provém do espírito e o corpo “é apenas um mata-borrão ou um fio terra ou ainda, uma descarga do espírito” (Op. Cit., 2006: 57).

O corpo seria o mata-borrão dessas coisas todas, para mostrar como estão essas coisas. [...] O que você vai fazer com esse corpo? E às vezes a tomada de consciência nem é feita no corpo, mas é fora do corpo. O espírito, por exemplo, que nasce com paralisia cerebral,

tem alguns que têm consciência, mas tem alguns que não têm nem consciência do que está acontecendo. Mas fora do corpo, no sono físico, no desdobramento do sono, o espírito tem alguma

consciência e ali ele pode escolher de estar revoltado por estar num corpo sem capacidade: “por que que eu estou num corpo desses?”, [....] “Será que abusei da inteligência, maltratei o mundo, matei muita gente, fiz isso e aquilo outro? Essa é a pergunta que o indivíduo precisa fazer. (M3, grifos nossos).

Em “O Livro dos Espíritos”, Kardec traz a abordagem de que “o espírito encarnado aspira constantemente à sua libertação e tanto mais deseja ver-se livre do seu invólucro”. Durante o período de sono, essa possibilidade surge, já que “afrouxam-se os laços que o prendem ao corpo e, não precisando este então da sua presença, ele (o espírito) se lança pelo espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos” (KARDEC, LE: 221). No momento do sono, a alma é liberta “parcialmente do corpo” e poderá “investigar no passado ou no futuro” (KARDEC, LE: 222). Com o adormecimento do corpo, o espírito está desperto e pode encontrar com outros desencarnados afins, bem como passar por situações de que poderá se lembrar, ou não, dependendo das emoções e sentimentos que lhe marquem – a consciência do “passeio no

mundo invisível” virá na forma de sonhos. A consciência maior ou menor do envolvimento com os desencarnados é dependente do estado evolutivo do indivíduo, mas durante o sono o espírito tem acesso aos seus amigos ou inimigos espirituais, percebendo sua vida para além do funcionamento de seu corpo físico material.

Em Kardec, encontramos que o organismo biológico é reflexo do corpo espiritual e receberá no corpo físico as mazelas construídas pela consciência ou não do espírito. A gravidade da doença é relacionada ao tipo de comprometimento da “Lei Divina”. Os diferentes tipos de agressões causam também maior ou menor comprometimento no corpo físico. Na perspectiva espírita da constituição dos vários corpos espirituais, superpostos “em níveis quânticos” diferenciados, o agravamento da infração atingirá aquele de conformidade com a gravidade do ato. Assim, em ordem crescente de agravo será: corpo físico (material) para depois atingir as camadas do perispírito, ou seja, corpo etéreo (sede da energia vital), seguido do corpo astral (modelo organizador biológico) e corpo mental (sede da mente). Nessas considerações, fundamentadas em Chico Xavier, as doenças mentais repercutem as infrações de maior agravo, significando depuração de agressões graves à lei de amor.

Quando a gente está em um processo de adoecimento mental, está refletindo um maior comprometimento das nossas atitudes, desse grande equívoco. Porque ainda não pode chegar ao corpo físico para drenar. A drenagem do corpo mental reflete um

comprometimento ainda maior, uma violação mais

comprometedora dessa lei. (P4, grifo nosso).

Em Kardec, encontramos o perispírito como órgão sensitivo do espírito. É por ele que o ser humano percebe e registra as coisas do espírito. Nas palavras do codificador do Espiritismo, encontramos que o perispírito:

... percebe coisas espirituais que escapam aos sentidos corpóreos. Pelos órgãos do corpo, a visão, a audição e as diversas sensações são localizadas e limitadas à percepção das coisas materiais; pelo sentido espiritual, ou psíquico, elas se generalizam, o Espírito vê, ouve e sente, por todo o seu ser, tudo o que se encontra na esfera de irradiação do seu fluido perispirítico. (KARDEC, LG: 288-289).

Nas obras de André Luiz, principalmente “Evolução em dois mundos”, “Missionários da Luz” e “Ação e Reação”, encontramos detalhamentos dos corpos sutis constituintes do fluido perispirítico. Tomando como exemplo uma das obras atribuídas ao Espírito André Luiz, temos:

... dos processos patogênicos inabordáveis e de todo um cortejo de males, decorrentes do trauma perispirítico que, provocando desajustes nos tecidos sutis da alma, exige longos e complicados serviços de reparação a se exteriorizarem com o nome de inquietação, angústia, doença, provação, desventura, idiotia, sofrimento e miséria. (XAVIER, AR: 142, grifo nosso).

Os dizeres dos entrevistados se sustentam nesses entendimentos, buscando atribuir explicação ou explicabilidade aos diversos processos de adoecimento que acometem o ser humano.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 193-196)