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Aqui, procuramos traduzir em palavras o processo criativo artístico- prático da pesquisa. Trata-se de uma vertente poética que se articula com os conhecimentos levantados nas duas primeiras partes desta tese e que será apresentada na forma de um espetáculo cênico, no ato de sua defesa. Esta parte visa demonstrar a equidade de importância desta vertente com a do conhecimento teórico e bibliográfico, justificada pela relevância do sensível, da empatia e da cinestesia na construção do conhecimento. Por tratar-se de uma performance - um solo de dança-teatro - e, portanto, ter existência efêmera, este escrito tem função de registrar em palavras, para a longevidade dessa experiência, embora não a substitua.

[PARTE III] 1. Preâmbulo: Dança-teatro

Na cena contemporânea, as fronteiras entre as linguagens cênicas ficam cada vez mais tênues. Por vezes, tão borradas, que temos dificuldade de categorizar sua natureza. Se olharmos para suas tradições, de forma simplista e simplificada, podemos atribuir uma principal função da dança ao movimento, do teatro à palavra e ao texto dramatúrgico e da performance à ação. Mas, bem sabemos, por exemplos conhecidos de criadores contemporâneos, como Pina Bausch e Bob Wilson, que é possível construir um teatro sem palavras e uma dança sem movimentos. Assim como fazer uma performance coreografada, um teatro performático e uma dança falada. Múltiplas combinações são possíveis, e, a elas, não é atribuída nenhum mal. Dentre as tantas combinações, a dança-teatro tornou-se, por si, um estilo independente, muito reconhecido pela pesquisa de Bausch, desde a década de 1970, na Alemanha - embora seja uma linguagem difundida internacionalmente desde Kurt Jooss. Nesta pesquisa, não me espelho na produção bauschiana, mas nas possíveis combinações entre palavra e gesto, movimento e narrativa, entre cinestesia, representação e significado.

Ao longo de minha trajetória como artista-criadora, com início em 2005, no contexto da Faculdade Angel Vianna, no Rio de Janeiro, busco aproximações com a palavra. Palavra que já vinha me encantando, desde a infância, pela poesia, tendo ousado experimentá-la por meio de intensa escrita, organizada e compilada em livro - Partituras de um movimento

impermanente - publicado pela Editora Multifoco, em 2008. Por possuir essas

duas paixões, passei um tempo buscando possíveis aproximações entre gesto e palavra, o que resultou nas criações Pisando em Sonhos (2006), A

outra margem da esfera (2007) e Se você perguntar por mim... (2008), e em

residências artísticas, oficinas, cursos livres, e em meu memorial de finalização de curso, no Bacharelado em Dança da Faculdade Angel Vianna, orientado pela professora Hélia Borges.

Exercitei diversos tipos de aproximações: pelo sentido das palavras, da musicalidade da poesia, das sensações – geradas, seja pelo movimento, seja pela leitura das imagens e das metáforas. O fio condutor para esta pesquisa era o entendimento de que, tanto dança quanto poesia, estavam livres de um compromisso narrativo linear e que podiam, por si, construir sentido através da experiência estética. Eu buscava um território de não hierarquia, onde ambas as linguagens tivessem igual valor. Ou seja, não seria uma dança a partir da poesia ou uma poesia a partir da dança. Minha intenção era buscar um espaço híbrido de convergência das linguagens e que elas pudessem alimentar-se mutuamente. Para isso, contava, também, com o pré-requisito de autoria e criação dos intérpretes, incluindo-me, situando-nos em um dos preceitos da dança contemporânea já discutido nesta tese: a existência do intérprete-criador. Confesso que a proposta não era fácil, não havia um fim específico a ser buscado, nem, tampouco, um certo ou errado. Minha intenção era cultivar um ambiente fértil de criação entre corpo e palavra, dentro de significantes poéticos.

Essa pesquisa em dança e poesia nasceu porque, tendo familiaridade com a escrita, eu usava a poesia como forma de registro para utilização em futura composição coreográfica. Ou seja, enquanto eu estava em processo criativo de algum trabalho em dança, fazia registros em forma de poesia, visto tratar-se de uma arte efêmera. A partir daí, o próprio registro tornava-se

fonte para criação e, assim, em um ciclo, as duas linguagens se retroalimentavam: dança produzindo poesia, poesia gerando dança...

Por algum motivo, sem maior entendimento, em 2009, quis emancipar- me da palavra e entrei em um processo de imersão de criação em dança, buscando a autonomia do movimento - muito influenciada pelo pensamento do Manifesto de Yvonne Rainner (1965) e das experiências do Judson Dance Group. Comecei a flertar com a linguagem do vídeo e, entre 2009 e 2012, produzi diversas videodanças e o solo Movimento sem Face, que foi o mote da pesquisa de meu mestrado (ALCOFRA, 2014) - o entendimento do uso do rosto na dança e a busca por uma expressividade corporal. No entanto, ao final do mestrado, em 2015, o solo Dança sobre Nada, apresentado como parte do processo de conclusão da pesquisa, voltava a apresentar relação com a palavra - ainda que não fosse seu foco, mote ou declaradamente importante. Evidenciou-se, entretanto, que meu processo artístico de criação traz intrínseca a relação entre essas linguagens.

Em 2017, ingressei como docente da disciplina de expressão corporal, em uma escola profissionalizante em teatro, na cidade de São Paulo, onde aproximei-me da palavra pela dramaturgia e textos teatrais. Refaço, a partir de então, meu entendimento acerca da convergência entre palavra e corpo, e me abro a possibilidades narrativas, subtextos e representações mais literais - recursos ainda inexplorados. Um novo encontro se deu e, com ele, a clareza de minha necessidade artística de unir esses dois universos, assim como das inúmeras possibilidades de aproximação e encenação.

Faço esse prólogo como justificativa para as escolhas estéticas da encenação, para uma contextualização de minha trajetória e esclarecimento de meu lugar de fala e das especificações do roteiro que se encontra ao final desta Parte III.

[PARTE III] 2. Bunker: laboratório prático de

desenvolvimento artístico de um solo de dança

O desejo de elaboração desta parte prática foi simultâneo ao desejo de imersão na pesquisa teórica. Faz parte da afirmação do conhecimento híbrido em dança, considerando a prática como pesquisa. Todavia, a pesquisa, como vimos, apresentava muitos desafios: a maternidade, as observações etnográficas, a realização de entrevistas, o levantamento bibliográfico, tudo em um tempo reduzido determinado pela realidade cotidiana da maternidade. Por esse motivo, a parte prática teve início tardio em sua realização, mas não em seu desejo e planejamento.

Desde seu embrião, a vontade quis trazer para o movimento a maternidade real, aquela que vai de encontro à que vemos nos filmes, nos contos de fada, nas novelas, nas revistas femininas. Aquela que traz as olheiras ao invés da maquiagem bem produzida, que conta as dificuldades, e não só o amor incondicional, aquela que fala da sobrecarga e da solidão, e não apenas da plenitude e da realização da mulher. A maternidade real, sem ilusões. Ainda assim, gostaria de experimentar no corpo a sensação do belo, do amor, da potência do humano, trazendo para o público esses momentos de satisfação que fazem tudo valer a pena.

Ao longo dos dois primeiros anos da pesquisa, a prática ficou só no campo das ideias. Cheguei a escrever alguns esboços que envolviam faixas pelo corpo mostrando o ventre e a utilização de elementos cênicos como terra e água. Uma das primeiras sugestões de nome era Enterrada, com base na incapacidade de mover-se para fora do puerpério, em que a mulher está focada apenas nas necessidades e urgências do bebê. No meio desse caminho, conheci a vídeodança Ama, de Julie Gautier. Nele, uma bailarina dança debaixo d'água, em um imenso tanque com paredes laterais transparentes (de onde é filmado), aparentemente em apneia. Submersa, no fundo desse tanque, ela realiza movimentos suaves e belos, com referências à estética do balé clássico. São giros, pausas e suspensões, em uma técnica precisa e difícil de realizar-se submersa em água, sem gravidade. Ao final, o vídeo é dedicado a todas as mães e à maternidade. Fiquei bastante tocada

pela criação e seus vários elementos estéticos tinham correspondência com meu processo: o fato de dançar em apneia por mais de cinco minutos, provocando sensação de sufocamento e falta de ar, que reproduz a do puerpério, quando não há tempo para respirar e realizar tarefas além das cotidianas. No entanto, ainda em apneia, a bailarina dançava de forma leve, suave e bela, representando que mesmo nesse único fôlego, há beleza e satisfação. O elemento água faz lembrar o útero e sua dança conecta-se com a liquidez do ventre. Assistir a essa vídeodança reforçou a vontade de criar, a importância da experiência estética e mostrou-me que eu gostaria de utilizar alguns desses elementos para criação: água, beleza e sensação de imobilidade.

Captura de imagem do vídeo AMA de Julie Gautier23

Captura de imagem do vídeo AMA de Julie Gautier24

A prática começou a acontecer, de fato, em 2018. Tendo o impulso do desejo, a clareza do processo, envolvendo, agora, a palavra teatral como elemento cênico, iniciei os ensaios. Nesse início, reafirmei meu interesse em pesquisar e produzir uma linguagem híbrida entre dança e teatro, em que a narrativa estivesse presente, não necessariamente explícita, de forma literal, afinando os desejos da prática com os objetivos desta pesquisa acadêmica. Nos primeiros ensaios, propus-me a experimentar a linguagem do teatro, pouco familiar ao meu corpo, a fim de aproximar-me da palavra, visto que era esse meu interesse inicial. Por isso, investiguei princípios básicos da encenação teatral, fazendo jogos com interpretações mais realistas e improvisos a partir de textos. Escolhi textos ligados à imagem feminina e à maternidade, como, por exemplo, o Guia da boa esposa, publicada pela revista Housekeeping Monthly, em maio de 1955:

1. Tenha o jantar sempre pronto. Planeje com antecedência. Esta é

uma maneira de deixá-lo saber que se importa com ele e com suas necessidades.

2. A maioria dos homens estão com fome quando chegam em

casa, e esperam por uma boa refeição (especialmente se for seu prato favorito), faz parte da recepção calorosa.

3. Separe 15 minutos para descansar, assim você estará

revigorada quando ele chegar. Retoque a maquiagem, ponha uma fita no cabelo e pareça animada.

4. Seja amável e interessante para ele. Seu dia foi chato e pode

precisar que o anime e é uma das suas funções fazer isso.

5. Coloque tudo em ordem. Dê uma volta pela parte principal da

casa antes do seu marido chegar. Junte os livros escolares, brinquedos, papel, e em seguida, passe um pano sobre as mesas.

6. Durante os meses mais frios você deve preparar e acender uma

fogueira para ele relaxar. Seu marido vai sentir que chegou a um lugar de descanso e refúgio. Afinal, providenciando seu conforto, você terá satisfação pessoal.

7. Dedique alguns minutos para lavar as mãos e os rostos das

crianças (se eles forem pequenos), pentear os cabelos e, se necessário, trocar de roupa. As crianças são pequenos tesouros e ele gostaria de vê-los assim.

8. Minimize os ruídos. Quando ele chegar desligue a máquina de

lavar, secadora ou vácuo. Incentive as crianças a ficarem quietas.

9. Seja feliz em vê-lo. O receba com um sorriso caloroso, mostre

sinceridade e desejo em agradá-lo. Ouça-o.

10. Você pode ter uma dúzia de coisas a dizer para ele, mas sua

chegada não é o momento. Deixe-o falar primeiro, lembre-se, os temas de conversa dele são mais importantes que os seus.

11. Nunca reclame se ele chegar tarde, sair pra jantar ou outros

locais de entretenimento sem você. Em vez disso, tente compreender o seu mundo de tensão e pressão dele, e a necessidade de estar em casa e relaxar.

12. Seu objetivo: certificar-se de que sua casa é um lugar de paz,

ordem e tranquilidade, onde seu marido pode se renovar em corpo e espírito.

13. Não o cumprimente com queixas e problemas.

14. Não reclame se ele se atrasar para o jantar ou passar a noite

fora. Veja isso como pequeno em comparação ao que ele pode ter passado durante o dia.

15. Deixe-o confortável. Faça com que ele se incline para trás

numa cadeira agradável ou deitar-se no quarto. Dê uma bebida fria ou quente pronta para ele.

16. Arrume o travesseiro e se ofereça para tirar os sapatos dele.

Fale em voz baixa, suave e agradável.

17. Não faça-lhe perguntas sobre suas ações ou que questionem

sua integridade. Lembre-se, ele é o dono da casa e, como tal, irá sempre exercer sua vontade com imparcialidade e veracidade. Você não tem o direito de questioná-lo.

18. Uma boa esposa sabe o seu lugar.

A partir desse texto, investiguei ações corporais com intenções distintas, ora aceitando o enunciado, ora criticando-o. Nessa parte, relacionei o conhecimento levantado pela Parte I desta tese, trazendo para o corpo a sensação dessa mulher da década de 1950 e como as lutas feministas foram desenhando um novo sujeito, tanto relacionado ao matrimônio, como em um posicionamento político e social.

Além desse texto, trabalhei com fragmentos de Hamlet Machine, de Heiner Müller (1987), especificamente o trecho A Europa da Mulher.

Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE a mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro - a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos sangrando, rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para rua, vestida em sangue (MÜLLER, 1987, p.27).

Depois de trabalhar esses textos e realizar improvisos cênicos aliados a materiais corporais, trazidos de meus laboratórios pessoais, voltei a refletir sobre a trajetória do processo para afinar o percurso da pesquisa prática com a acadêmica e realizar planos para sua realização, de acordo com os desejos iniciais. Com isso, reafirmei o lugar do subtexto e da narrativa não explícita e/ou literal. Nesse sentido, haveria de mudar o caráter dos experimentos, que recaíam sobre uma tendência realista, baseada na literalidade e na exposição dessa mulher submissa, de maternidade difícil, regida pelo patriarcado.

Querendo colocar a maternidade como tema de fundo e não como panfleto, defini o tema principal como Bunker - estrutura de refúgio e abrigo em períodos de guerra, resistente a projéteis, isolado e equipado para longos períodos de isolamento – em que eu poderia falar dos aspectos da solidão, do aprisionamento e da proteção, sem ser explícita sobre a minha experiência pessoal com a maternidade. Bunker tornou-se, então, um tema, um território e o título do trabalho. Nele, eu poderia explorar a loucura, a força, a solidão, a convicção, a covardia e a coragem - aspectos tão humanos em situações-limites, como, por exemplo, situações de guerra. Nesse sentido, o espectador poderia escolher por qual viés adentrar na dramaturgia do trabalho.

Dessa forma, seguindo minha metodologia de criação que busca, na palavra, uma materialidade para o corpo, senti necessidade de colocar minha experiência em palavras e escrevi um primeiro roteiro possível para investigar essa nova dramaturgia (exposto em um subcapítulo adiante).

[PARTE III] 3. A maternidade em Bunker

A maternidade trabalhada em Bunker é aquela oposta à maternidade idealizada, comumente difundida nas mídias, na ficção e no senso-comum. Tem como ponto de partida a experiência subjetiva da pesquisadora criadora que escreve, mas apoia-se em relatos, textos, conversas informais, ilustrações, sobre a maternidade contemporânea. Estamos vivendo um período de transição, em que, pelas conquistas políticas, econômicas e sociais, as mulheres vêm se afirmando positivamente na sociedade. No entanto, hábitos culturais demoram a se transformar especialmente quando ainda não estão devidamente esclarecidos em suas práticas. Comportamentos repressivos e, talvez, violentos contra mulheres, muitas vezes são reproduzidos sem que se note - inclusive pelas mulheres. Por isso, acredita-se que o diálogo, o esclarecimento e a ação de falar sobre o assunto é fundamental para que a sociedade reveja profundamente seus hábitos e discursos. Assim como o corpo automatiza e constrói-se a partir de padrões, também a sociedade padroniza-se. Vivemos sob uma égide patriarcal. Por meio das lutas feministas, desde o início do século XX, as mulheres vêm expondo suas dificuldades e outras perspectivas de pensamento e ação sobre o mundo. Como, às vezes, trata-se de medidas radicais, suas ações não são bem-vistas e, a elas, são oferecidas muita resistência. Como ocorre, similarmente, ao corpo que, depois de aprendido certo hábito, decorre um longo tempo para que, com uma prática continuada, consiga reorganizar-se. Nesse sentido, ainda que soe radical demais ou extremista, acredita-se ser fundamental o exercício do esclarecimento e da exposição de aspectos negligenciados no discurso comum.

Exposto isso, afirma-se, a priori, que a mãe que se coloca em cena nesta pesquisa de dança tem um amor infinito pelo filho e que, sim, tem também muito prazer e satisfação com a maternidade. Mas, esses são aspectos já dados. Espera-se que o espectador não conteste esse fato. Importa a ela contar sobre o que não é dito. Sobre as profundezas dessa vivência. O retrato de uma faceta pouco abordada da realidade.

A maternidade idealizada é aquela que acontece fora da experiência. Trata-se de um discurso de ausência, que conduz a imaginação para o lugar da expectativa positiva, sem considerar a impossibilidade de realização de muitos aspectos de sua fala. Podemos pegar, como exemplo, obras de ficção, novelas, propagandas e outras mídias que vão construindo esse subtexto do senso comum. Em todas elas, podemos destacar aspectos patriarcais que colocam a mulher como submissa ao homem, predestinada ao casamento, onde encontrará sua maior realização enquanto mulher e humana no exercício da maternidade; pensamento que vigora há alguns séculos, como bem vimos na Parte I desta tese. Nessa visão, a maternidade é fácil e bela, e a mulher, predestinada a tal fato, não encontrará maiores dificuldades. O amor, incondicional, acontece de imediato. O bebê só precisa de alguns cuidados: troca de fraldas, carinho, leite. Tudo soa natural e incondicional. O bebê, farto, contente, aparece sorrindo, gordinho, calmo, olhando nos olhos da mãe. Ou aparece dormindo, em seu berço, em uma imagem satisfatória de paz. A mulher aparece sempre bela, bem cuidada, com um sorriso estampado no rosto, satisfeita com a prole em seus braços. Se a ela foi destinado esse fim, certamente, ela dará conta de tudo. Trata-se de estereótipos sobre o feminino e sobre a mulher, reproduzidos sem filtros.

Para quem nunca vivenciou a maternidade - ou seja, nunca esteve próximo da experiência - tudo se mostra perfeito. Pode-se até imaginar algumas intempéries, mas, creio eu, nada comparado ao que, de fato, pode ser a realidade. Obviamente, sabemos que cada caso é único e, de fato, pode haver bebês como os das novelas e mães plenas com seus filhos, contudo, como dissemos anteriormente, esse fato está dado. É preciso falar sobre o que não se fala.

No discurso idealizado, não está dado que, muitas vezes, o vínculo entre mãe e bebê não se dá de imediato, e o amor vai sendo construído ao longo do tempo. É possível, inclusive, que a mãe sofra de depressão pós- parto e tenha ainda mais dificuldade para lidar com seu novo papel social. A amamentação não é um talento inato e, muitas vezes, precisa contar com ajudas externas de especialistas ou aparatos. A amamentação pode causar dor e pode demandar esforço maior do que aparenta. O bebê pode precisar mamar mais vezes do que o esperado e, pode não engordar como necessário, exigindo a introdução de outras medidas. Não é só de cuidados que vive o bebê, mas de atenção, escolhas e decisões - muitas feitas em caráter de urgência, sem prévia elaboração. O bebê, para comunicar-se, chora - mas pode chorar muito mais do que se imagina. O choro pode incomodar muito mais do que o esperado, não só pelo barulho, mas pelo que gera de angústia para a mãe e o bebê. A mãe pode não ter tempo para

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