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DANÇA, CORPO E SOCIEDADE: ASPECTOS HISTÓRICOS.

1.2 Panorama Histórico da Dança.

1.2.5. Corpo-Dança na Idade Moderna.

No período do denominado Absolutismo (na Europa ocidental e correspondente ao período entre os séculos XVI e XVIII), a Dança ganha maior valorização ainda, a ponto de Michaut (1978, p. 13), afirmar que “Todos os cortesãos e os próprios reis eram amadores apaixonados pela Dança, habituados desde jovens a esse meio”.

A época do absolutismo passa e já nos novos tempos da Modernidade, por volta dos Séculos XVIII e XIX, a Dança continua a florescer, não com o predomínio, por exemplo, da Dança clássica e, especial do Ballet. Bourcier (2006, p. 107), afirma o seguinte:

A morte de Luís XVIII marca o fim de uma sociedade; de uma cultura. Após seu reinado, o Balé de corte será mantido em estado de sobrevivência artificial: procurava-se ao mesmo tempo uma forma de espetáculo Dançando e uma técnica mais específica do que a das Danças de corte.

Os Séculos XVIII e XIX são também conhecidos como os séculos do Iluminismo, ou os séculos de engrandecimento do poder da Razão Humana que a todos deve iluminar. Isso se reflete nas artes de modo geral que querem representar o humano pensante e, na Dança também que busca uma maneira de representação pura, expressa na natureza do cenário e na suavidade dos bailarinos e bailarinas que Dançam como no que quer mostrar a figura a seguir:

44 Figura 8.

Jean- George Noverre

Fonte: Disponível em http://industrializationerajeangeorgenoverre.blogspot.com.br/ Acesso em 2 de out. 2016

Jean- George Noverre (Paris, 1727 – Saint – Germain-en-Lave, 1810) pode ser considerado com justiça o reformador da Dança (BOURCIER, 2006, p. 164 e 165).

(...). Se teve, como é normal predecessores, tanto no plano teórico quanto no das realizações, foi ele quem reuniu as noções sobre ‘Balé de Ação’ num corpo doutrinário claro, diretamente assimilável pelos Dançarinos, foi ele quem examinou os meios técnicos para uma reforma da Dança, finalmente, foi ele quem impôs as novas ideias através de suas numerosas e célebres obras (BOURCIER, 2006, p. 165).

A reforma empírica de Noverre marcou a era de ascensão e poder iluminista na qual está em evidência a loucura pela busca da razão sem medidas e a experiência de um corpo que busca a sua melhora ao Dançar com beleza, prazer e sentimento.

A busca pela precisão em tudo na Dança, não deixou de lado a busca pela expressão do prazer e do sentimento. Isso se acentua nos séculos seguintes em especial nos tempos do Romantismo. Há reações, em diversos campos, à rigidez da razão que parece querer apagar as emoções. Daí dizer (BOURCIER, 2006, p. 199):

45 A ênfase sobre o indivíduo, mais do que sobre um arquétipo social, acarreta a rejeição das regras impostas pela sociedade no século XVII: a sensibilidade tem primazia sobre a razão; o coração e a imaginação assumem o poder, sem o controle de uma autocensura.

Assim é dito sobre o Romantismo:

O Romantismo surgiu na Alemanha entre 1770 e 1790, entre os literatos e filósofos alemães, como reação ao neoclassicismo, ao excessivo valor atribuído pela ilustração ao intelecto, a razão e o requinte da civilização e que preparou o caminho ao romantismo em seu país e na Europa. Proclamou a liberdade do gênio criador e rebelou-se contra a rigidez da ilustração (GONZÁLEZ e KRAMSKY, 2003, s./p.).

Rebelião conta a rigidez da ilustração, ou seja, à tirania da razão tal como entendida pelo movimento iluminista.

Dançar, nessa nova visão romântica, é um alicerce transfigurado da alma do artista que pulsa nas veias a intenção e o significado expondo com simplicidade apenas o que está sentindo seu coração. Rosa afirma que para Rosseau “A Dança é convertida num fenômeno que supõe uma dupla interação realizada a uma só vez por intermédio do Corpo e da expansão das consciências” (s./d., p. 37).

Esta mesma autora mostra um pouco mais sobre a maneira de pensar romântica a respeito da Dança ao citar um trecho da obra de Rousseau (apud ROSA, s./d., p. 37), Nova Heloísa, na qual, na carta XXIII da segunda parte, lê- se o seguinte:

A maneira de inserir essas festas é simples. Se o príncipe está alegre, participa-se de sua alegria e dança-se; se está triste, querem alegrá-lo e dança-se. Ignoro se é moda na Corte organizar um baile para os reis quando estão de mau humor, o que sei sobre estes é que se pode admirar suficientemente sua constância estoica ao ver gaivotas ou a escutar canções enquanto se decide, atrás do palco, sobre sua coroa ou sua sorte. Mas há muitos outros motivos para dançar; as mais graves ações da vida se fazem dançando. Os padres Dançam, os soldados dançam, os deuses dançam, os diabos dançam, dança-se até nos enterros e tudo Dança por qualquer motivo.

Vê-se, por aí, o novo interesse dado à Dança a partir daí. Esta importância virá num crescendo nos séculos seguintes. Já quase no final do Século XIX, o filosofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), dentre outras

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coisas, afirma o seguinte com relação à Dança: “Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!” (NIETZSCHE, s./d., s./p.). Há, aí, como em toda a obra de Nietzsche, uma reação às concepções que vieram antes dele e, no caso, às concepções sobre o corpo e, no caso, à Dança. Feitosa (2011, s./p.), em pesquisa realizada sobre ideias relativas à Dança, assim se refere a ideia deste filósofo:

Constatei então que uma das grandes exceções era Nietzsche (1844-1900), um entusiasta do Corpo e de seus poderes. Sabemos que o pensador alemão recorria constantemente à Dança como imagem para seu pensamento, a Dança representava a tensão entre risco e disciplina, entre planejamento e improvisação, entre vontade e destino.

Feitosa (2011, s./p.), ainda no mesmo estudo, cita e analisa ideias de Paul Valéry constantes do seu texto ‘A Alma e a Dança’ (1921). A partir de sua análise afirma o seguinte comparando Valéry e Nietzsche: “Valéry, ao contrário [de Nietzsche], interroga-se sobre o sentido da Dança enquanto tal, ele ousa perguntar “O que é a Dança?": Estas informações, a partir de outras, indicam um novo interesse que começa a ser despertado em relação à Dança. Valéry já é um pensador do Século XX. Após ele, muitos outros virão e produzirão análises desta atividade que nunca morreu, por ser uma atividade própria dos seres humanos. O que, em determinadas épocas ocorreu foi, por razões culturais diversas, visões mais ou menos negativas em relação à Dança.

Um exemplo marcante de um momento no qual a Dança é questionada quanto ao seu significado e mesmo quanto à sua presença na vida social é o que relata José Sasportes no livro ‘Pensar a Dança: a reflexão estética de Mallarmé a Cocteau’ (1983).

O livro, como é dito na página 9, “tem por objeto a evolução da Dança em França de 1883 a 1928”. Trata-se não apenas de um relato, mas de considerações interessantes sobre algumas concepções relativas à Dança no cenário europeu destes 50 anos e, de maneira especial, no cenário, pode-se dizer, acadêmico ou da elite francesa. Não há no mesmo nenhuma discussão sobre a situação da Dança entre a população de modo geral e, nas denominadas camadas populares.

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O foco principal das discussões parte dos movimentos relativos ao desligamento e, como diz o autor, à libertação da Dança do que é denominado de quadro lírico, ou seja, da ópera ou, ainda, como é dito, em alguns momentos, do melodrama.

Diz o autor:

Para melhor se compreender este percurso, é conveniente recordar que o Bailado e a Ópera derivam das mesmas fontes da renascença italiana, que nascem no seio de uma estética que concebia o espetáculo ideal como o resultado da perfeita fusão das diferentes artes numa só obra. Neste contexto, a ópera cedo encontrou a sua vocação sob a forma de

melodrama, do drama musical, enquanto que o bailado levou

muito mais tempo a conquistar uma fisionomia própria. O Bailado deixou-se também prender à noção de um discurso que se devia traduzir em movimento e procurou chamar a si o canto e a declamação de modo a tornar mais explícita a história que a Dança devia ilustrar. Mas a Dança não é uma arte narrativa e o Bailado não soube encontrar a forma justa que lhe consentisse afirmar a possibilidade de uma linguagem coreográfica independente (SASPORTES, 1983, p. 9).

Estas palavras apontam para diversas considerações. A primeira delas é a de que o livro trata especificamente do que se conhece comumente por Balé (forma aportuguesada de ballet) identificado, no texto por Bailado. Não trata da Dança em geral, pois a mesma não se restringe ao Balé ou ao Bailado. A própria citação em dois momentos utiliza as palavras Dança e Bailado para indicar coisas diferentes. Mas, ao mesmo tempo, ao mencionar sobre a necessidade de o Bailado buscar uma estética coreográfica própria, indica também a necessidade de a Dança, em geral, ter definida a sua natureza no campo das artes e como uma das formas de linguagem humana. Além disso, ao afirmar que a Dança não é uma arte narrativa, para contrapor-se ao fato de o Bailado, ou o balé, ter se deixado prender “à noção de um discurso que se devia traduzir em movimento e procurou chamar a si o canto e a declamação de modo a tornar mais explícita a história que a Dança devia ilustrar”.

As posições a este respeito foram diversas e até opostas no período de abrangência do relato do livro. Algumas defendendo a participação do Bailado nas óperas, pois ali, seria o seu lugar e outros como foi o caso de Wagner, que simplesmente não aceitava isso. Aliás, os relatos dos posicionamentos de Wagner e de vários de seus (suas) seguidores (as) ganham um grande

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destaque ao longo do livro. Foi nesse ambiente que, segundo o autor do livro, aparece a figura de Mallarmé “que quis acreditar que a Dança podia ser uma arte superior” (SASPORTES, 1983, p. 11). Wagner, na verdade, não era contrário à Dança. O que ele não admitia era a presença dos bailados nas óperas. Sua posição era de que a Dança deveria ter uma característica própria enquanto arte e os seguidores de suas ideias trabalharam nessa direção. Mas, a oposição entre os que defendiam a presença do Bailado nas óperas e os que não o faziam, continuou por largo tempo.

Talvez a parte mais delicada da situação estivesse num fato relatado por Sasportes (1983, p. 16) que assim o expõe:

Os problemas da teoria estética não interessavam nem bailarinos, nem coreógrafos, que raramente se dedicaram à reflexão sobre a sua arte e, ainda menos, chegaram a conceber e a formular projetos estéticos coerentes. Desejavam ser apenas homens do seu ofício, nada mais. Deixavam assim, livre o terreno aos poetas que passaram a encarregar-se de pensar a Dança, com a naturalidade de quem iria ocupar, no domínio do Bailado, um lugar idêntico ao do libretista no campo da ópera. Atribuíram-se o papel de autores dos Ballets e julgaram-se em posição de contribuir para o renovamento da Dança. Esta ambição tinha as suas raízes nas convenções da época que reduziam o coreógrafo a um simples artesão do espetáculo, sem grande poder sobre o projeto da obra a apresentar.

Aí está um problema sério: não ter poder sobre o projeto de qualquer obra, no caso uma Dança, ou, por outra, uma coreografia. Ter poder sobre os próprios projetos significa executar com intencionalidades claras e decididas por quem os (as) realizam. Uma Dança, se individualmente concebida, deve poder refletir algo que vem da pessoa: algo de sua sensibilidade provocada por qualquer fator que seja. Realizá-la decorre de uma projeção, de um projeto (no sentido de algo a ser lançado para frente, para o futuro, próximo ou mais remoto). Nem sempre há muita clareza nos projetos, especialmente naqueles que se originam de certas sensibilidades como as emocionais. Mas, há sempre intencionalidades aí presentes. Prova disso podem ser certos dizeres quando alguém executa algo e afirma não ter gostado. Em geral se diz: “não era isso o que eu queria”. A execução, nesse caso, não correspondeu ao projetado. Fica- se, de algum modo, satisfeito quando a execução corresponde ao desejado. É

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o caso de uma realização artística como uma Dança. O mesmo se pode dizer de projetos coletivos de Danças como os bailados em grupos. Há neles intencionalidades que devem ser partilhadas por todos os (as) participantes da Dança a ser realizada. Estas intencionalidades devem refletir projetos ou projeções de sentimentos dos envolvidos na obra realizada.

Quando era negativa a postura dos coreógrafos que se satisfaziam (ou se acomodavam) a serem apenas artesãos das Danças por não participarem do projeto, ou seja, das motivações ou das intencionalidades, o mesmo se deve dizer de Danças que, mecanicamente, são “ensaiadas” com crianças ou jovens nas escolas, por exemplo.

Vale, ainda, chamar a atenção para uma observação de Sasportes relativa ao prestígio de Mallarmé e de Cocteau. Diz ele que, dado o fato, à época (em torno do final do Século XIX e começo do XX), de os poetas e músicos terem se dedicado a produzir ou libretos ou músicas para Danças, isso os levou, de alguma maneira, a idealizar conteúdos ou significação para esta arte, provocando certo movimento de busca de “certa substância estética de que a Dança, no Ocidente, se tinha esvaziado” (SASPORTES, 1983, p. 16). Mas, lamenta-se o autor, não houve quase contato, ou diálogo, desses poetas e músicos com as pessoas que Dançavam. No entanto, houve algo que influenciou o público dos espetáculos de Danças: este público aprendeu a esperar de cada apresentação algo que lhe levasse não apenas uma coreografia "mecânica", mas sim Danças com conteúdos significativos. Este aprendizado levou o público parisiense a apreciar, em 1909, as apresentações dos Balés russos que trouxeram, segundo o autor, uma revolução neste campo, como ele diz:

Este público aprendeu a esperar por uma renovação da Dança e foi este clima de expectativa que permitiu transformar num grande acontecimento histórico a dúzia de espetáculos dos

Ballets Russes, em Paris, em 1909. Foi também, neste

momento, que o coreógrafo nasceu como artista moderno, a par dos músicos, pintores e poetas que revolucionaram as artes do novo século (SASPORTES, 1983, p. 16).

Apesar desse impulso inovador do início do Século XX, os esforços pensantes a respeito da Dança, ou seja, as buscas pelos significados estéticos desta arte não prosperaram muito. Faltou, ainda, até onde o autor conseguiu

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visualizar, uma produção importante de reflexão estética como a encetada por Mallarmé e Cocteau. Ele se lamenta disso e diz ter sido negativo “... constatar que hoje, na Europa, os coreógrafos não se entregam a uma reflexão profunda, teórica e prática, sobre sua arte. Uma reflexão que seja um desenvolvimento do pensamento estético que lhes coube herdar” (1983, p. 17).

Este lamento do autor parece contradizer o que afirmara anteriormente ao dizer que, nos inícios do Século XX, o “coreógrafo nasceu como artista moderno” (vide citação acima). Na verdade, o que procura mostrar no livro é que este nascimento não prosperou ao longo do Século. Quando escreve o livro, que em 1983 constata ser isso o que ocorreu. Ou seja, no âmbito da Europa e até onde lhe foi possível averiguar, a Dança não mereceu a devida atenção da reflexão estética. Apesar de ter havido um rico momento de debates nos 50 anos descritos no livro e que deveria ter servido de recurso para novas investidas no campo da Dança. Isso, porém, não aconteceu. Daí o lamento do autor nas últimas linhas do livro: “Quem recebeu esta herança teve entre mãos um imenso espólio estético, mas, na Europa, muitos anos deverão passar até que o fogo criador e a capacidade de interrogar a Dança retomem o seu lugar” (1983, p. 166).

Este fogo criador parece ter sido despertado ao longo do Século XX no qual convivem visões negativas e positivas, caminhando, porém, para uma predominância de visões positivas a respeito desta importante atividade artística.