CAPÍTULO 3: COLAGEM CONTEMPORÂNEA
3.1. COLAGENS RECORRENTES
3.1.4. Corpo e identidade
As características da colagem - fragmentação, multiplicidade, contradição e ruptura - possuem analogia com a busca pela definição de identidade na sociedade contemporânea. Ao 99
Informações disponíveis em: http://barogaleria.com/artista/patrick-hamilton/ 100
Informações disponíveis em: http://www.dublincontemporary.com/exhibition/artist/patrick_hamilton 101
Informações extraídas do artigo Patrick Hamilton: Art and Visual Cuture, de Victor Zamudio Taylor. Disponível em: http://www.artnexus.com/Notice_View.aspx?DocumentID=16674
Figura 70: Patrick Hamilton Carretilla, 2004-2006
carrinho de mão e backlight, 55 x 125 x 66 cm Galeria Baró (São Paulo) e Galeria González y González (Santiago)
tinuamente são deveres e direitos atribuídos com insistência a todos os que aspiram ao sucesso, a dignidade e a felicidade.
Contudo, se existe uma incitação em transformar o corpo num lugar tão ra- dioso, importante e sensível como outrora havia sido a alma, é preciso lembrar que esta nova ordem se insere numa economia de mercado globalizada, na qual tudo tende a ser visto e tratado como mercadoria de rápida liquidez. Assim, esse corpo-alma não poderia escapar ao circuito do marketing e transforma-se num material totalmente disponível às metamorfoses sonhadas por cada um (SANT’ANNA, 2002, p. 103).
Os artistas desta seleção procuram pela identidade na representação visual. Assim, são criados corpos com significações individuais, culturais, sexuais e sociais, que nos levam a refletir sobre o conceito de identidade múltiplo e sempre em transformação. A autora em questão colo- ca-nos que o fato de que o corpo poder ser transformado é justamente uma das características do mundo pós-moderno:
Nesta nova ordem aprofunda-se uma tendência existente na ordem político- jurídica que é a de transformar todas as partes do corpo em imagens de marca e num marketing privilegiado do eu. Por conseguinte, o desejo de investir nas imagens corporais torna-se proporcional à vontade de criar para si um corpo inteiramente pronto para ser filmado, fotografado, em suma, visto e admirado (SANT’ANNA, 2002, p. 106).
Muitas vezes os artistas selecionados utilizam suas próprias fotografias como forma de ver-se como o outro. Outras vezes, faz-se a junção do elemento humano com objetos tecnológi- cos, referindo-se às alterações corporais cada vez mais comuns num mundo em que a aparência tomou o lugar da essência.
Em meio ao excesso de informação visual, tais artistas criam diferentes cenários e nar- rativas. Os artistas escolhidos para representar este tema são: Hew Locke, Evren Tekinoktay e Nicola Constantino.
O primeiro deles, Hew Locke, cria instalações feitas de colagem nas quais utiliza-se de elementos tão distintos quanto os provenientes do barroco, da cultura hindu ou islâmica e da arquitetura colonial. Esta foi a fórmula encontrada por ele para alocar características marginais à cultura britânica, na qual está inserido102. Por meio da mistura de materiais, Locke explora a 102
Hew Locke nasceu em Edimburgo, na Escócia, cresceu em Georgetown, Guiana Inglesa, e vive atualmente em Londres
tensão entre sua sociedade natal e a relação desta com suas antigas colônias.
Na imagem Serpent of the Nile (Sejant)[Serpente do Nilo (Sejant)](fig. 71), o artista parte da representação de um brasão real e a refaz, trajando ele próprio um grande vestido enfeitado com flores de plástico, bonecas e tigres em miniatura.
Locke combina um exame da identidade nacional à fantasia pessoal e ao estereótipo sócio-político. O título da série How do you want me? [Como você me quer?] sugere que ele pode representar um personagem de acordo com os desejos do público. A dualidade de seus personagens é parte integrante do trabalho, ou seja, enquanto ele desempenha um papel, ele também paródia a si mesmo.103
Esse fantasiar-se pode ser pensado como uma forma de fugir deste corpo que virou es- sência na sociedade contemporânea, criando uma nova maneira de dissimular ou omitir:
Na nossa cultura somática, a aparência virou essência, os “condenados da aparência” são privados da capacidade de fingir, de dissimular, de esconder os sentimentos, as intenções, os segredos, uma capacidade presente na cultura da intimidade que se tornou obsoleta. Hoje, sou o que aparento e estou, portanto, exposto ao olhar do outro, sem lugar para me esconder, me refugiar, estou to- talmente à mercê do outro, já que o que existe (o corpo que também é o self) está a mostra, sou vulnerável ao olhar do outro, mas ao mesmo tempo preciso de seu olhar, para ser percebido, senão não existo (ORTEGA, 2002, p. 198).
Evren Tekinoktay (fig. 72), em seu trabalho, vê na imagem do corpo a possibilidade de discutir a identidade feminina no mundo contemporâneo. A artista coleciona imagens popu- lares da mídia e de álbuns fotográficos de sua própria família. Dessa maneira, e ela ressignifica as imagens e apresenta-as em uma iconografia sobre a adolescência na década de 1970 e 80. 103
Informações disponíveis em: http://www.gac.culture.gov.uk/work.aspx?obj=34330
Figura 71: Hew Locke
Serpent of the Nile (Sejant), 2007 Da série How Do You Want Me?
c-print sobre alumínio, 228,50 x 178,50 cm Government Art Collection, Londres
Ao invés de oferecer a crítica feminista do sexismo presente na mídia, Tekinoktay traça uma mudança histórica na identidade feminina desde aquelas décadas até a atualidade, sem julgar seus protagonistas, ou seu resultado. Parte de sua análise relaciona-se com a criação da pílula anticoncepcional na década de 1960 e as diferenças nos comportamentos das mulheres que vieram de uma época em que este método contraceptivo não existia e aquelas que aderiram naturalmente a ele.104
Tekinoktay sobrepõe às camadas de imagens, desenhos e pinturas produzidos por ela, mesclando história da arte e cultura pop. Há ainda uma alusão a narrativas tradicionais, como os contos de fadas. Algumas das imagens utilizadas são extraídas de um projeto paralelo da artista, isto é, da divulgação de sua loja Lingerie Tekinoktay em Copenhagen.
Assim, como Hew Locke, Tekinoktay aborda em suas colagens a questão da convivência na diversidade cultural, isto porque, apesar de nascida na Dinamarca, sua origem familiar é tur- ca. Assim, ela joga com uma história secreta da feminilidade, articula as ambiguidades em torno de dois ideais da sexualidade feminina: um vinculado à maternidade, um à liberdade sexual.
Levando adiante a discussão do corpo como formação de identidade pela alteridade, acrescenta-se aqui o trabalho de Nicola Constantino (fig. 73), artista argentina presente na ex- posição Álbum: coletiva de fotografia contemporânea anteriormente mencionada.
104
Informações disponíveis em: http://artnews.org/theapproach/?exi=701&The_Approach&Evren_Tekinoktay
Black egg, 2009
colagem com técnica mista em compensado, 52 x 160 cm The approach Gallery, Londres
Figura 73: Nicola Constantino Winged Nicola
fotografia, 173 x 126 cm Galeria Baró, São Paulo
Constantino reflete sobre o autoconhecimento, colocando-se como o outro, por meio da cópia de si mesma, contextualizada em situações mais dramáticas e violentas do que o real, como por exemplo, na representação de sua própria morte.105
A maternidade, a solidão, a vida madura e artificial, a perfeição e a deformação, fazem parte do repertório abordado. Além das fotografias, ela cria instalações em que fetos de animais ou objetos são elaborados com um material similar ao da pele humana - máxima representação do corpo -, criam mistos de repulsão e beleza.
A questão do outro atingiu o ápice em sua obra com a criação de um duplo - Mi Doble, 2010 – exposição na qual apresentava um boneco de si mesma. Este clone foi utilizado na criação de um vídeo intitulado Trailer106. Uma das curiosidades foi o fato de que o processo de criação e destruição do duplo aconteceu durante a gravidez da artista. Um dos objetivos era enxergar-se grávida sob um ponto de vista “externo”.107
Segundo a jornalista Ana Martínez Quijano, a violência que permeia a história da Ar- gentina parece ressurgir na obra da artista Nicola Costantino. A carne, um produto simbólico e gerador de riqueza daquele país é o motivo central na obra da artista. Seja como alimento ou como arma de sedução, o cabelo humano, a pele e carne de animais são temas que se escondem por trás de uma linguagem polida.108
Na violência, ela revela sacrifícios de potros, cordeiros e porcos. Os conjuntos de escul- tura, réplicas exatas do tamanho real de animais mortos, tornam-se uma metáfora para vítimas humanas. A autora afirma ainda que Constantino, com precisão cirúrgica, mostra a rotina de se livrar do que uma sociedade de consumo produz de tão intolerável. Nos objetos e instalações, a atração derivada da elaboração sofisticada coincide com a repulsa que o material utilizado pela artista desperta.