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3 DA ALDEIA À SALA DE ENSAIO: SABER, PRÁTICA E CRIAÇÃO EM

3.5 DIÁRIO DA FLORESTA

3.5.3 Corpo Mítico e Corpo Real: metamorfoses

Para trabalhar teatro é necessário pensar o corpo. Como esse corpo vai ser apresentado em cena. Suas habilidades, expressão, tensão e pulsão. O corpo assume características do seu cotidiano e um dos objetivos dos trabalhos na aula de teatro é preparar o corpo para se apresentar em situações não-cotidianas.

Qual seria esse corpo indígena na cena? Como trabalhar corporalmente com os índios? Que tipo de memória corporal eles apresentariam?

Nos exercícios de introdução ao teatro é comum que se trabalhe com atividades em que os alunos representem animais: caminhem como elefantes, formigas, cobras, ursos, gatos, onças. Que façam movimentos e sons de animais e objetos. Estas atividades, aparentemente simples, acabam se tornando uma difícil

tarefa para que os alunos representem naturalmente sem cair na mímica ou estereótipos.

Nos mitos e narrativas indígenas quase sempre aparece a figura de um animal. É comum e natural que um índio se transforme em animal ou um animal vire gente: Um índio se transforme em macaco, ou uma índia em cobra, um índio em lua, uma índia em sol, uma criança em gavião, um caçador em uma lagoa.

Estas metamorfoses já fazem parte do imaginário indígena. Deste modo, representar um animal é tarefa natural. O corpo indígena em cena vai aos poucos adquirindo os movimentos, os sons, a tensão de determinados animais ou coisas.

Na cultura indígena, este corpo (homem, animal ou coisa) pode adquirir diferentes características e ao mesmo tempo representar algum momento da história

ou da vida cotidiana. Em uma aula ouvi de um aluno indígena que “antes era assim,

índio se transformava em animais e animais se transformavam em gente”.

Segundo Citro em sua obra Cuerpos Significantes, “[…]el cuerpo es aquel

sustrato común que compartimos con las mujeres o con los hombres de distintas sociedades en el tránsito del nacimiento a la muerte, aquello que nos hace

semejantes36” (2009, p.39).

No entanto, a autora explica que a materialidade comum dos corpos e a vida sociocultural constroem práticas dissimiles, ou seja, técnicas corporais cotidianas, modos de percepção, formas de ocupar o espaço, gestos, expressões de emoção, sintomas e danças e assim dá lugar a representações da corporalidade e seus vínculos diferentes com o mundo. “El cuerpo inevitablemente es atravesado por los significantes culturales y él mismo constituye un particular productor de significantes

en la vida social”37

(CITRO, 2009, p.39).

36 O corpo é aquele substrato comum que compartilhamos com as mulheres ou com os homens de diferentes sociedades do nascimento a morte, ou seja, o que nos faz semelhantes. (tradução nossa)

37

O corpo inevitavelmente é atravessado pelos significantes culturais e o mesmo constitui um produto particular de significantes na vida social. (Tradução minha)

Um corpo que mora em uma “maloca”, que caça, que come o que produz, que caminha na mata, que toma banho de rio, que faz suas necessidades de cima de uma árvore, que está em contato direto com diferentes animais, sem dúvida alguma possui diferentes maneiras de percepção do mundo, formas próprias de ocupar o espaço, de expressar a emoção, de fazer amor, enfim, gestos e ações com significados culturais diferentes.

O lugar onde se vive é produtor de um comportamento. Viver no meio da floresta amazônica tem suas especificidades e conseqüentemente é muito diferente que morar em um grande centro urbano. Segundo Le Breton (2011), as casas em que os ocidentais vivem são diversificadas e podem ser comparadas como uma máquina de habitar. Neste espaço habitado,

el cuerpo está reducido a una suma de necesidades arbitrariamente definidas, es asimilado a una forma pura, desenraiza de toda existencia, sin historia, sin cualidades, sin volumen. El cuerpo en estos espacios es concebido para “funcionar” en un espacio y no para ahí vivir38

. (LE BRETON, 2011, p.168)

Portanto, um corpo indígena que vive numa aldeia da Amazônia está enraizado de toda sua existência, com suas histórias cicatrizadas no corpo, o modo de andar, no seu volume. O corpo da narrativa é a materialidade metafórica do corpo que vive, que se transforma diariamente, que carrega sua cultura e sua história estando sempre marcado pela relação entre o lugar, corpo e o ambiente selvagem. O corpo, desta forma, é o lugar da experiência enquanto percepção e reflexão, já que se encontra imerso em lugar onde os sentidos estão em contato direto com o ambiente (S.THIAGO, 2007).

38

(LE BRETON, 2011, pag.168) O corpo está reduzido a uma soma de necessidades arbitrariamente definidas, é assimilado a uma forma pura, desenraizada de toda existência, sem história, sem qualidades, sem volume. O corpo nestes espaços é concebido para funcionar em um espaço, e não para viver aí. (tradução minha)

Neste sentido foi importante encontrar os corpos presentes nas narrativas - corpo do Pajé, do Cacique, do Caçador, do Contador de história, da índia, do índio, da anta, da onça, do sapo, da cobra, do quatipuru, da coruja, do gavião, do rio, do açaí, do catitu -, e assim foi possível buscar as características específicas destes corpos na vida e na cena e criar partituras físicas específicas que iriam para o palco.

Era possível reconhecer quem estava em cena (quatipuru, anta, catitu, etc.) a partir de um corpo se deslocando no palco/floresta. O corpo do Pajé não era o mesmo corpo do Cacique. Sem palavras, estas personagens já podiam ser reconhecidas ao se apresentarem em cena. A foto abaixo mostra o Cacique, já reconhecido na cena pela postura corporal:

Outro ponto importante está na relação entre o corpo, movimento, postura corporal e os sons emitidos por estas personagens. A partir destas partituras era possível reconhecer quais personagens se apresentavam na cena a partir da relação entre os sons produzidos e o movimento corporal. De centro modo, a construção destes corpos e vozes/sons foi sendo estabelecida pelos próprios alunos e alunas no processo de encontrar a teatralidade na narrativa.

No próximo capítulo busco descrever, analisar e refletir sobre este processo a partir das atividades de teatro realizadas com atenção às propostas que funcionaram ou não durante esta experiência teatral intercultural. Considero de extrema importância descrever estas atividades, pois elas de certo modo concretizam por meio do registro desta prática os caminhos e atalhos encontrados pelos participantes (professor/estudantes) para entender e desenvolver este processo.

Deixo um exemplo para reflexão deste capítulo e para abrir caminhos para o próximo: Peço para um indígena: você fará um pajé. Vá para cena e mostre que você é o Pajé. Peço para um aluno não indígena a mesma coisa. Onde cada um vai buscar referências para este corpo Xamã? Peço para um aluno não indígena: vá para o palco e mostre que você é um executivo. Peço para um aluno indígena a mesma coisa. Onde cada um vai buscar referências para este corpo executivo?

4 MITO-DRAMA: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA DE ENSINO E